“Spotlight – Segredos Revelados”

 Por Humberto Pereira da Silva

Spotlight

Spotlight – Segredos Revelados é um filme americano (vencedor do Oscar de melhor filme em 2016) que se inicia com a advertência de que se baseia em fatos reais. No caso, o escândalo de pedofilia envolvendo religiosos católicos em Boston. O episódio veio à tona em 2002, após ampla investigação do jornal “The Boston Globe”. Como resultado do escândalo, o arcebispo de Boston, Bernard Law, foi afastado pela cúria romana.

O escândalo de pedofilia na diocese de Boston, à época, foi amplamente divulgado pela mídia internacional, que pressionou a hierarquia católica a tomar posição. O que as reportagens publicadas pelo “The Globe Boston” revelaram com grande ênfase é o problema da cumplicidade, tanto das autoridades eclesiásticas, quanto da comunidade, com respeito ao encobrimento do caso. Ele não era propriamente desconhecido, mas abafado.

A advertência feita de início instiga um alerta que não se pode perder de vista. Todo filme, ou obra de arte em sentido amplo, que se baseia em fatos reais, é uma construção erguida a partir de recortes da realidade. Não sendo, pois, um espelho que reflete os acontecimentos como de fato ocorreram.

Nesse sentido, com respeito a Spotlight, é de vital importância não misturar o tema que sustenta a trama – casos de pedofilia na diocese de Boston e a cobertura do “The Globe Boston” – e a maneira como a trama é narrada. Esse alerta tem o objetivo de lembrar ao espectador que um filme oferece um olhar, um ponto de vista, mas jamais apreende a realidade em si mesma.

Por isso, pincelemos alguns pontos para reflexão oferecidos por Spotlight. Esse filme põe em cena três aspectos do mundo no qual vivemos e que nos afetam diretamente. Primeiro, o movimento da imprensa livre, portanto da liberdade de expressão; segundo, a complexa estrutura de poder e de influência da Igreja Católica; terceiro, as conveniências no jogo entre aparência e transparência na esfera pública.

A condução da narrativa em Spotlight é focada no trabalho de investigação do jornal. Sob esse aspecto, o filme é minucioso ao mostrar o cotidiano jornalístico, seus humores e, principalmente, como decisões são pautadas por princípios éticos tácitos. De um lado, ao não envolver nomes ou pessoas sem base documental suficiente; de outro, ao não escamotear que a prática jornalística – expressa pelo editor do jornal – não se orienta para afugentar leitores e anunciantes.

Ora, a liberdade de expressão nos conformes de uma sociedade aberta pode e deve tocar em temas delicados, como o de acusação de pedofilia por membros da Igreja Católica (por extensão, o próprio filme realça essa condição). Mas também, deve-se ter em mente, a liberdade de expressão em Spotlight joga com a denúncia, e sua dimensão moral, tanto quanto com a forma mercadoria: o escândalo, a notícia, vende.

Daí então um dilema inevitável moral: como escapar à constatação de que uma empresa jornalística visa o lucro frente a um caso de denúncia? Se fosse líquido e certo que a comunidade de Boston rechaçaria e boicotaria as reportagens o “The Globe Boston” insistiria em sua publicação? Como acentuei, Spotlight oferece um olhar, um ponto de vista. Para um observador com um olhar viciado, o sentido moral da denúncia se impõe, mas não a conveniência da publicação conforme os condicionantes do mercado: as reportagens não afugentam assinantes e anunciantes, eis o cálculo do editor.

À medida que o foco narrativo se centra no trabalho de investigação do jornal, Spotlight deixa de lado a complexa estrutura de poder e de influência da Igreja Católica. Claro, aqui não se está a exigir mais do que o filme mostra, mas apenas realçar que a trama tem em vista a importância da imprensa livre numa sociedade aberta. Em suma, os casos de pedofilia na Igreja Católica dão ocasião para que seja tratada a autonomia de um órgão de imprensa.

Assim sendo, o poder e a influência da Igreja – e seus eventuais efeitos nocivos – ficam no ar, quase como se simultaneamente evidentes e nebulosos. Quer dizer: se se perder do horizonte o papel da imprensa e se entender que Spotlight desvenda a incômoda ocorrência de pedofilia na Igreja Católica, deve-se a admitir não haver nesse filme imagens do que se estaria desvendando.

Com isso, o que Spotlight não aborda – e aqui igualmente não se está a exigir mais do se mostra – é o ambivalente jogo entre aparência e transparência na esfera pública. A publicação das reportagens gera mal-estar, mas sendo sua transparência inevitável, resta à Igreja fazer o que faz há dois milênios: sem transparência, manter sua aparência de unidade interna por meio de uma estrutura de poder na qual sua influência não é afetada (a esse respeito, o carisma do Papa Francisco não deixa dúvida).

De sorte que Spotlight é um ótimo filme sobre jornalismo, a prática jornalística. Nisso sua relevância mais destacável. O indigesto tema da pedofilia no seio da Igreja Católica é tão somente um atalho para a exibição da prática jornalística séria, e não inescrupulosamente leviana, sensacionalista, espetacular…

  Humberto Pereira da Silva

 

  Humberto Pereira da Silva é professor de Filosofia no curso de Artes Visuais e de Técnicas de Pesquisa no de Economia na FAAP. Também exerce a atividade de crítico de cinema, sendo colunista regular da Revista de Cinema e do site Cinequanon. É autor dos livros “Ir ao cinema: um olhar sobre filmes” (Musa Editorial, 2006), “Pragmática da linguagem e ensino de ética: quando dizer não é fazer” (Paco Editorial, 2012) e “Glauber Rocha: cinema, estética e revolução” (Paco Editorial, 2016).