Mario Vargas Llosa (1936 – 2025)
“O liberalismo é inseparável do sistema democrático como regime civil de poderes independentes, liberdades públicas, pluralismo político, direitos humanos garantidos, eleições, e mercado livre como mecanismo para alocação dos recursos e criação de riqueza.”
Mario Vargas Llosa
Recebi, com enorme tristeza, a notícia do falecimento de Mario Vargas Llosa, ocorrida em Lima no dia 13 de abril. Nascido em Arequipa, no Peru, Vargas Llosa tornou-se um cidadão do mundo graças á competência revelada como escritor de diversos estilos literários: romance, contos, ensaios, crônicas, críticas literárias, biografias, peças de teatro e artigos de jornais. Tal competência o levou a conquistar diversos prêmios, sendo o mais famoso deles o Nobel de Literatura em 2010.
Confesso ter sido um dos que vibraram com a notícia de que a Academia Sueca, contrariando uma tendência ideológica, que naquela época vinha contemplando autores da esquerda “multicultural”, havia concedido o Prêmio Nobel de Literatura a Mario Vargas Llosa, um escritor alinhado com o pensamento liberal.
Interessei-me profundamente por Mario Vargas Llosa desde que li Conversa na catedral, no longínquo ano de 1980. Embora não fosse de fácil leitura, sobretudo para alguém desacostumado a seu estilo, o livro me encantou pela forma como descrevia a realidade política do Peru, país que eu havia tido a oportunidade de conhecer em 1971, num giro do time de basquete do Mackenzie por diversos países da América Latina, numa época em que minhas prioridades absolutas eram a bola e as quadras de basquete.
De lá para cá, tive chance de ler muitos outros livros de Vargas Llosa: Tia Julia e o escrevinhador (também lido em 1980), Pantaleão e as visitadoras (lido em 1981), A guerra do fim do mundo (lido em 1982), Quem matou Palomino Molero? (lido em 1987), Peixe na água: Memórias (lido em 1995), A festa do bode e Travessuras da menina má (lidos em 2007), Elogio da madrasta, Cartas a um jovem escritor e Sabres e utopias, um conjunto de artigos cujo subtítulo é Visões da América Latina (lidos em 2010), A tentação do impossível: Victor Hugo e Os Miseráveis e A civilização do espetáculo (lidos em 2013), Os filhotes (lido em 2014), Cinco esquinas (lido em 2016), O chamado da tribo (lido em 2019), Tempos ásperos (lido em 2020) e, finalmente, Dicionário amoroso da América Latina (lido em 2022).
Como se pode observar pelas datas das leituras de seus livros, não se tratou de uma leitura sistemática, uma vez que está repleta de intervalos maiores ou menores, além não seguir a sequência cronológica da publicação das obras. Mas foi uma leitura que esteve comigo por mais de quatro décadas, ao longo das quais foi possível acompanhar a transição do jovem e sonhador marxista para o liberal maduro e realista em que se converteu a partir de uma determinada época de sua vida, ao se decepcionar com algumas das experiências revolucionárias que haviam alimentado seus sonhos juvenis, tais como a soviética e a cubana. Tal transição me levou a escrever o artigo Peixe na água: trajetória de uma transição, publicada na Revista Facom da Faculdade de Comunicação da FAAP.
Aliás, não foi fácil fazer essa transição, quer pelos conflitos internos que tiveram que ser vencidos, quer pelo enorme patrulhamento que sofreu de boa parte de artistas, intelectuais e jornalistas fortemente influenciados pelas ideias de Marx e de seus seguidores. Esse aspecto mereceu destaque no discurso de aceitação ao Prêmio Nobel, em Estocolmo[1]:
Quando jovem, como muitos escritores da minha geração, fui marxista e acreditava que o socialismo seria o remédio para a exploração e as injustiças sociais que dominavam o meu país, a América Latina e o resto do Terceiro Mundo. Minha decepção com o estatismo e o coletivismo e a minha passagem para o democrata e liberal que sou – que tento ser – foi longa, difícil e ocorreu aos poucos por causa de episódios como a conversão da Revolução Cubana, que me entusiasmou de início, ao modelo autoritário e vertical da União Soviética, dos testemunhos dos dissidentes que conseguiam vazar dos muros do gulag, da invasão da Tchecoslováquia pelos países do Pacto de Varsóvia e graças a pensadores como Raymond Aron, Jean-François Revel, Isaiah Berlin e Karl Popper, aos quais devo a minha revalorização da cultura democrática e das sociedades abertas. Esses mestres foram um exemplo de lucidez e galhardia quando a intelligentsia ocidental parecia, por frivolidade ou oportunismo, ter sucumbido ao feitiço do socialismo soviético, ou pior ainda, à diabólica e sanguinária revolução cultural chinesa.
Um fato serviu para aumentar meu interesse pela vida e pela obra de Mario Vargas Llosa. Em 1995, o Instituto Liberal do Paraná o convidou para uma palestra em Curitiba. Impressionado com a qualidade da mesma, perguntei a ele se podia publicá-la na série Ideias Liberais, uma publicação quinzenal do Instituto Liberal de São Paulo. Ele me falou que não a tinha por escrito e que havia sido feita de improviso. Expliquei a ele que a palestra havia sido gravada e que eu me proporia a fazer a degravação e a tradução para o português, submetendo o resultado final a ele, previamente, para que aprovasse a publicação. Uma vez de acordo, fiz o trabalho a que me havia proposto e ao receber o texto para aprovação ele me respondeu dizendo que, embora não fosse um expert em português, acreditava que a tradução estava muito boa. Quando publicada, A cultura da liberdade transformou-se num dos maiores sucessos de toda a série, obrigando o Instituto Liberal a fazer algumas reimpressões da mesma.
Difícil destacar alguma coisa em particular da obra de Vargas Llosa, já que ela é integralmente valiosa e relevante. Contudo, gostaria de fazer algumas menções especiais.
Embora a América Latina – e o Peru, em especial – permeie todo o trabalho de Vargas Llosa, a descrição feita por ele, em A festa do bode, do governo de Trujillo na República Dominicana, e, através dele, dos desmandos e das corrupções que caracterizaram as diferentes ditaduras que proliferaram em nosso continente é, apesar de trágica, simplesmente fenomenal.
Já que me referi à América Latina, segue um trecho de um artigo de 1988 reproduzido em Sabres e utopias:
Uma das atitudes latino-americanas mais típicas quando se procura explicar os nossos males tem sido a de atribuí-los a maquinações perversas urdidas no exterior pelos ignominiosos capitalistas de sempre ou – mais recentemente – pelos funcionários do Fundo Monetário Internacional ou do Banco Mundial. Embora seja principalmente a esquerda que insiste em promover essa “transferência” freudiana de responsabilidade pelos males da América Latina, o fato é que esse tipo de atitude se encontra muito difundido. […] Tal postura constitui o principal obstáculo que nós, latino-americanos, temos diante de nós para romper o círculo vicioso do subdesenvolvimento econômico. Se os nossos países não veem que a principal causa das crises em que se debatem está neles próprios, em seus governos, em seus mitos e costumes, em sua cultura econômica, e que por isso mesmo, a solução do problema virá principalmente de nós mesmos, de nossa capacidade de lucidez e de decisão, e não de fora, o mal jamais será conjurado.
Do discurso de aceitação ao Prêmio Nobel de Literatura, além do trecho já citado, faço questão de me referir a mais dois.
O primeiro sobre as convicções liberais de Vargas Llosa:
Não devemos nos intimidar ante os que querem tirar a liberdade que conquistamos na longa façanha da civilização. Defendamos a democracia liberal que, com todas as suas limitações, ainda significa o pluralismo político, a convivência, a tolerância, os direitos humanos, o respeito à crítica, a legalidade, as eleições livres, a alternância de poder, tudo aquilo que nos tirou da vida selvagem e nos faz aproximar – embora nunca cheguemos a alcançá-la – da formosa e perfeita vida fingida pela literatura, aquela que só inventando, escrevendo e lendo podemos merecer. Ao enfrentarmos os fanáticos homicidas defendemos o nosso direito de sonhar e de tornar nossos sonhos realidade.
O segundo sobre a evolução verificada na América Latina na direção da consolidação das instituições democráticas, que têm permitido que a região comece, lenta e timidamente, a superar aquele vício supracitado de buscar culpados externos para todos os seus males:
Pela primeira vez em nossa história temos uma esquerda e uma direita que, como no Brasil, Chile, Uruguai, Peru, Colômbia, República Dominicana, México e quase toda a América Central, respeitam a legalidade, a liberdade de crítica, as eleições e a renovação no poder. […] Padecemos de menos ditaduras do que antes, somente Cuba e sua candidata a substituí-la, Venezuela, e algumas pseudo democracias populistas e palhaças, como as da Bolívia e da Nicarágua.
Deixei para o final a menção ao livro Cartas a um jovem escritor. A coleção, deliciosa de se ler, é constituída de nomes consagrados em diferentes campos do saber e do fazer, que dão sugestões a novatos que pretendem enveredar nesses respectivos campos. Entre os nomes que deram seus depoimentos nessa coleção encontram-se Fernando Henrique Cardoso (Cartas a um jovem político), Ozires Silva (Cartas a um jovem empreendedor), Ivo Pitanguy (Cartas a um jovem cirurgião), Gustavo Franco (Cartas a um jovem economista), Marília Pera (Cartas a uma jovem atriz), Bernardinho (Cartas a um jovem atleta), Laurent Suaudeau (Cartas a um jovem chef), Roberto Duailibi (Cartas a um jovem publicitário) e outros. De todos eles, acredito que foi Mario Vargas Llosa o que melhor captou a intenção do idealizador da coleção, pois em seu livro não se limitou, como a maioria dos outros, a fazer uma reconstituição da sua própria trajetória, escrevendo cartas verdadeiras sobre o significado e as formas de escrever um bom livro. Com os exemplos que ele utiliza para ilustrar cada “carta”, trata-se, de quebra, de uma notável relação de sugestões de leituras. Fica como minha recomendação de leitura tanto para os que querem como para os que não sonham nem nunca sonharam se tornar escritores.
Referências
CARDOSO, Fernando Henrique. Cartas a um jovem político: para construir um país melhor. Rio de Janeiro: Alegro, 2006.
FRANCO, Gustavo H. B. Cartas a um jovem economista: conselhos para seus planos econômicos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
GLEISER, Marcelo. Cartas a um jovem cientista: o universo, a vida e outras paixões. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
REZENDE, Bernardo Rocha de (Bernardinho). Cartas a um jovem atleta: determinação e talento – o caminho da vitória. Rio de Jabneiro: Campus, 2007.
SILVA, Ozires. Cartas a um jovem empreendedor: realize seu sonho, vale a pena. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.
VARGAS LLOSA, Mario. Conversa na catedral. Tradução de Olga Savary. São Paulo: Francisco Alves, 1977.
_______________ A cultura da liberdade. São Paulo: Instituto Liberal, Série Ideias Liberais, N° 22, Ano II, 1995.
_______________ Tia Júlia e o escrevinhador. Tradução de José Rubens Siqueira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
_______________ Quem matou Palomino Molero? Tradução de Remy Gorga Filho. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.
_______________ A guerra do fim do mundo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
_______________ Pantaleão e as visitadoras. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
_______________ Peixe na água: Memórias. Tradução de Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
_______________ Sabres e utopias: visões da América Latina. Seleção e prefácio de Carlos Granés. Tradução de Bernardo Ajzenberg. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.
_______________ Cartas a um jovem escritor: toda vida merece um livro. Tradução de Regina Lyra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.
_______________ Elogio da madrasta. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
_______________ Travessuras da menina má. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
_______________ A festa do bode. Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman. Rio de Janeiro: ARX, 2001.
_______________ A tentação do impossível: Victor Hugo e Os Miseráveis. Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
_______________ A civilização do espetáculo. Tradução de Ivone Benedetti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
_______________ Os filhotes. Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2012.
_______________ Cinco esquinas. Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016.
_______________ O chamado da tribo. Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019.
_______________ Tempos ásperos. Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2020.
_______________ Dicionário amoroso da América Latina Tradução de Wladir Dupont e Hortencia Lencastre. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
[1] VARGAS LLOSA, Mario. Elogio de la lectura y la ficción. Discurso de aceitação ao Prêmio Nobel de Literatura proferido no dia 7 de dezembro de 2010. Disponível em http://www.elpais.com/articulo/cultura/Elogio/lectura/ficcion/elpepicul/20101208elpepicul_2/Tes?print=1.
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