Grandes Economistas
Hayek e a Escola Austríaca
“Afirmei que o socialismo constitui uma ameaça
para o bem-estar presente e futuro da raça humana,
no sentido de que nem o socialismo nem qualquer outro
substituto da ordem de mercado que conhecemos
poderão sustentar a atual população mundial.”
F. A. Hayek
Friedrich August von Hayek nasceu em Viena, no dia 8 de maio de 1899, e faleceu em Freiburg, Alemanha, no dia 23 de março de 1992.
Friedrich Hayek pertence à quarta geração de economistas da Escola Austríaca, porém ao receber o Prêmio Nobel de Economia em 1974 foi responsável por dar a ela um destaque que talvez jamais tenha sido alcançado pelas gerações precedentes.
A Escola Austríaca surgiu com a chamada revolução marginalista ocorrida entre 1871 e 1874, com a publicação de obras de três diferentes autores que desenvolviam suas pesquisas e seus trabalhos em diferentes países, sem que cada um tivesse conhecimento do trabalho dos outros. Juntamente com William Stanley Jevons, na Inglaterra, e Leon Walras, na Suíça, Carl Menger, na Áustria, reafirma os princípios básicos do liberalismo econômico (que sofriam na época forte ataque dos autores socialistas, em especial de Karl Marx, que publicara sua obra magna, O Capital, em 1867), com uma importante novidade: a ênfase na utilidade para a determinação do valor das mercadorias, o que acentuava o caráter subjetivo do mesmo, em contraposição ao caráter objetivo da visão tradicional, segundo a qual o valor é determinado pela quantidade (tempo) de trabalho necessário à produção de cada mercadoria.
Vale destacar, desde logo, que ao contrário das correntes de Cambridge (ou inglesa) e de Lausanne (ou suíça), que enveredaram para a economia matemática, fazendo amplo uso de métodos quantitativos na análise econômica, a Escola Austríaca optou por uma abordagem mais filosófica, procurando colocar ênfase nos fundamentos ou razões que estão por trás das decisões dos agentes econômicos.
Fica, portanto, evidenciado um antagonismo intransponível entre as duas tradições do pensamento econômico: enquanto a tradição socialista faz uso de uma metodologia que sobrepõe o coletivo (as classes sociais) ao indivíduo, considerando em suas análises basicamente as relações de classes (dominante versus dominada), a tradição liberal faz uso de uma metodologia eminentemente individualista, considerando, como foco central de suas análises, as tomadas de decisão de cada agente econômico, seja ele um indivíduo (pessoa física), seja ele uma empresa (pessoa jurídica).
Cada uma dessas correntes surgidas com a revolução marginalista teve continuidade, posteriormente, com sucessivas gerações. A de Cambridge com Alfred Marshall, principal expoente da chamada síntese neoclássica (registre-se aqui uma controvérsia nos manuais de História do Pensamento Econômico: enquanto para alguns autores a Escola Marginalista se confunde com a Escola Neoclássica, para outros, elas devem ser entendidas como duas Escolas distintas), e Cecil Pigou; e a de Lausanne, com Vilfredo Pareto. A Escola Austríaca, por sua vez, teve como destaques da segunda geração Friedrich von Wieser e Eugen von Böhn-Bawerk; da terceira, Hans Mayer, Leo Illy e Ludwig von Mises; da quarta, juntamente com Hayek, Fritz Machlup, Oskar Morgenstein e Paul N. Rosenstein-Rodin; e da quinta, que se estende aos dias de hoje, Israel Kirzner e Ludwig Lachmann, além de Murray Rothbard, que se tornou o maior expoente do libertarianismo, uma visão ultraliberal da economia que só teve (alguma) repercussão nos Estados Unidos.
Nascido em Viena, Hayek migrou para a Inglaterra, onde passou os anos mais produtivos de sua vida, em especial como professor da London School of Economics. Não se pense, porém, que foi uma vida fácil. Muito pelo contrário. Mantendo-se fiel aos princípios do liberalismo numa época que os intervencionismos como o keynesianismo e os totalitarismos todos os matizes ganhavam destaque – nazismo, fascismo, socialismo, comunismo – Hayek foi considerado ultrapassado quando publicou, em 1944, o livro O caminho da servidão, onde alertava para a ameaça que todas essas formas de intervencionismo representavam à liberdade individual.
Três anos depois, em 1947, Hayek tomou a iniciativa de reunir os mais importantes representantes do pensamento liberal – entre os quais Milton Friedman, Maurice Allais, Frank Knight, Karl Popper, Henry Hazlitt, George Stigler, Lionel Robbins, Ludwig von Mises e tantos outros – para um encontro em que seriam discutidas as condições e as perspectivas do mundo a partir da retomada da paz, com o fim da 2ª Guerra Mundial. Teve início, assim, a Mont Pelerin Society, que existe até os dias de hoje, servindo de estímulo a centros de pesquisa (think tanks) em todo o mundo – como o Instituto Liberal, no Brasil, o Institute of Economic Affairs, na Inglaterra, a Heritage Foundation e a Atlas Foundation, nos Estados Unidos – e que reúne, a cada dois anos, os mais expressivos representantes do liberalismo, com o mesmo objetivo de discutir alternativas para os grandes problemas contemporâneos. Sem sede fixa, a Mont Pelerin Society (cujo nome deriva do local, na Suíça, onde o encontro se realizou) possui membros de diversos continentes e de diversas correntes do pensamento liberal, com destaque, entre os que vieram mais tarde a se agregar, para James Buchanan, Gary Becker e Ronald Coase, todos ganhadores do Prêmio Nobel de Economia.
Hayek, aliás, foi um dos principais inspiradores desses três eminentes economistas, que têm, em comum, o fato de terem privilegiado em sua abordagem teórica uma relação estreita entre a economia, o direito, a filosofia e a política.
Diversos autores destacam esse aspecto da contribuição de Hayek para o desenvolvimento da teoria econômica, entre os quais Eamonn Butler, José Manuel Moreira (em Portugal), além de Og Leme, Ubiratan Iório de Souza, Fabio Barbieri e Ricardo Feijó (no Brasil). Sem desmerecer o trabalho de qualquer um deles, reproduzo a seguir um trecho do argentino Juan Carlos Cachanosky, por considerá-lo de grande clareza para o entendimento deste aspecto:
“Alguns filósofos distinguem entre dois tipos de ordens: (1) ordens criadas e (2) ordens espontâneas. Esta é uma distinção muito velha que vem da Antiga Grécia, mas que Hayek recuperou e desenvolveu ampla e detalhadamente. Uma ordem criada é a que foi desenhada pelos homens, por exemplo, um edifício, um avião, um relógio, um computador etc. Por haverem sido desenhados por homens, podem ser conhecidos até os mínimos detalhes. Os homens podem saber como funciona e para que serve cada uma de suas partes, podem modificá-los e melhorá-los. Pode-se dizer que os homens têm um domínio total sobre o funcionamento deste tipo de ordens.
Em troca, as ordens espontâneas não são produto da mente humana. São ordens cujo funcionamento a mente trata de descobrir através de métodos científicos. As leis da física, os sistemas planetários, não são ordens desenhadas pelos homens; pelo contrário, os homens tratam de descobrir quais são os princípios que governam estas ordens. É o estudo científico que permite ir explicando por que ocorrem as coisas e como funcionam estas ordens. Por exemplo, os homens podem criar as condições para que cresça uma árvore, mas não podem construir uma árvore tal como constroem um relógio ou um computador.”
Feita essa distinção, Hayek afirma que antes de se discutir sobre a superioridade de qualquer sistema econômico há que se ver qual a visão de mundo existente por trás de cada um deles. Considerando, pois, os dois tipos de ordens supra mencionados, Hayek mostra que o sistema capitalista, que tem origem no liberalismo individualista que se consagrou no século XVIII, não foi construído pelo homem. Ao contrário, foi resultante de um processo natural de aperfeiçoamento a partir dos sinais emitidos pela interação de milhões de pessoas nas transações efetuadas em mercado. Nesse sentido, há uma clara correlação entre ordem espontânea e capitalismo. Já os sistemas econômicos que defendem a intervenção estatal para sua construção ou aperfeiçoamento – quer a intervenção plena (sistema socialista), quer a intervenção parcial (sistema intervencionista, segundo Cachanosky, ou sistema misto, para diversos outros autores) – supõem que os homens pode ordenar eficazmente a alocação dos fatores de produção, corrigindo, desta forma, o que eles chamam de falhas de mercado. Assim sendo, constata-se claramente uma correlação entre ordem criada e esses sistemas econômicos.
Evidentemente, num artigo desta natureza, é impossível chamar a atenção para todas as contribuições importantes de Hayek. Para tanto, é indispensável a leitura de seus livros mais importantes, em especial de dois deles, Os fundamentos da liberdade, Lei, legislação e liberdade e Arrogância fatal. Neles, ficarão claras algumas das mais relevantes e oportunas dessas contribuições, entre as quais:
1ª) A concepção de mercado como um processo de permanente descoberta e aprendizado, que amortece as incertezas (já que nenhum agente tem conhecimento pleno de todas as variáveis envolvidas nas transações econômicas) e tende sistematicamente a coordenar os planos formulados pelos agentes econômicos. Como bem observa o professor Ubiratan Iório de Souza, “como as diversas circunstâncias que cercam a ação humana estão ininterruptamente sofrendo mutações, segue-se que o estado de coordenação plena jamais é alcançado, embora os mercados tendam para ele”.
2ª) O alerta contra o uso inadequado e oportunista de determinadas palavras, sobretudo do adjetivo social, diante de expressões que, a seu juízo, não podem ser entendidas fora desse contexto, tais como justiça, democracia, direito, política etc. Para Hayek, não faz nenhum sentido pensar em justiça ou democracia a não ser dentro de uma perspectiva social, como observa, uma vez mais, o professor Ubiratan Iório de Souza:
“Hayek, em seu derradeiro livro, em um capítulo a que deu o sugestivo título de Our Poisoned Language (A Nossa Linguagem Envenenada), com o objetivo de mostrar o quanto o adjetivo “social” tem de poder mágico, deu-se ao trabalho de enumerar 167 substantivos que costumam ser utilizados com essa mitológica palavra. Para certificarmo-nos de que não houve qualquer exagero de sua parte, basta tomarmos algumas poucas palavras, por exemplo, “preocupação”, “consciência”, “política”, “justiça” e “reforma” e verificarmos o quanto elas ganham em apelo ao lhe acrescentarmos o charmoso objetivo… Da mesma forma, há as expressões “social-democracia” e “liberalismo social” que, na melhor das hipóteses, não passam de pleonasmos, uma vez que, simplesmente, não existem nem uma “democracia não-social” nem um “liberalismo não-social”. A democracia e, principalmente, o liberalismo dispensam adjetivos. São o que são e ponto final. Mesmo porque a verdadeira caridade requer ação e não mero discurso.”
Espero ter conseguido mostrar, neste artigo, a notável contribuição de um dos maiores nomes de toda a história do pensamento econômico, embora não tenha o merecido reconhecimento, a exemplo do que ocorre com a Escola Austríaca, que continua sendo considerada, na maioria das vezes, apenas como uma ramificação menor das Escolas Marginalista e/ou Neoclássica. Tal aspecto, aliás, não escapou ao professor José Manuel Moreira:
“De que forma tudo isto afetará a vitalidade de uma escola que continua em processo de aprendizagem e descoberta, é algo que não sabemos. Sabemos, isso sim, que tudo isto é sinal de vida de uma tradição do pensamento econômico que, de forma vigorosa, continua aberta à fertilidade do desconhecido e do imprevisto: a um processo onde cada um de nós aprende novas coisas e alcança novas idéias e projetos. Uma tradição que soube transformar a epistemologia (que trata do crescimento do conhecimento) num dos mais promissores ramos da economia. Uma tradição que, ao insistir no caráter espontâneo (descentralizado) da evolução (e cooperação) das instituições humanas, por oposição aos sistemas artificiais (deliberadamente organizados e impostos, isto é, réplicas dos planos de ditadores benevolentes), cedo se deu conta de que o conhecimento não está na origem da amorosa Diversidade da Criação, mas é também a principal (e nem por isso menos desperdiçada) fonte da desejada Riqueza das Nações.”
Por fim, um relato que evidencia não apenas o espírito arguto de Hayek, mas também o caráter pendular da história econômica e da história do pensamento econômico. Em 1989, um comentarista econômico francês perguntou a Hayek como ele se sentia sendo tão tardiamente reconhecido pelo valor de seu trabalho, uma vez que recebeu o Prêmio Nobel no ano de 1974, em grande parte graças ao acerto de suas previsões feitas trinta anos antes quando da publicação de O caminho da servidão. Com muita calma, ele respondeu: “Na economia as coisas são assim mesmo: quando eu era novo, o liberalismo era velho; agora que eu estou velho, o liberalismo é que voltou a ser novo”.
Referências e indicações bibliográficas
AVENA, Armando. Hayek e o caminho da servidão. Em A última tentação de Marx.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998, pp. 49 – 55.
BARBIERI, Fábio. A teoria do processo de mercado na escola austríaca moderna. São Paulo: Instituto Liberal, Série Idéias Liberais, Ano V, N° 101, 2001.
BICHIR, Antônio Sérgio (Org.). Antologia Liberal. São Paulo: Inconfidentes, 1991.
BOETTKE, Peter J. Where did economics go wrong? Modern economics as a flight from reality.Critical Review. Vol. 11, N° I, Winter 1997, pp. 11 – 64.
BUTLER, Eamonn. A contribuição de Hayek às idéias políticas e econômicas de nosso tempo. Tradução de Carlos dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1987.
CACHANOSKY, Juan Carlos. Planificação e dirigismo econômico. Perspectiva Econômica, Vol. 30, N° 90, Julho/Setembro de 1995, pp. 49 – 69.
FEIJÓ, Ricardo. Economia e Filosofia na Escola Austríaca: Menger, Mises e Hayek. São Paulo: Nobel, 2000.
FRIEDMAN, Jeffrey. Hayek’s Political Philosophy and his Economics. Critical Review. Vol. 11, N° I, Winter 1997, pp. 1 – 10.
GIANNETTI DA FONSECA, Eduardo. O outro Hayek. Em As partes & o todo. São Paulo: Siciliano, 1995, pp. 124 – 131.
HAYEK, Friedrich August von. O caminho da servidão. Tradução e revisão de Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro. 5ª ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990.
______________ Os fundamentos da liberdade. Brasília: UNB, 1983.
______________ Law, legislation and liberty. Chicago: The University of Chicago Press, 1983.
______________ A arrogância fatal: os erros do socialismo. Tradução de Ana Maria Capovilla e Cândido Mendes Prunes. Revisão de Ann Leen Birosel. Porto Alegre: Instituto de Estudos Empresariais/ Editora Ortiz, 1995.
IORIO DE SOUZA, Ubiratan Jorge. Economia & Liberdade: a escola austríaca e a economia brasileira. São Paulo: Inconfidentes, 1995.
KIRZNER, Israel. Competição e atividade empresarial. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1986.
LEME, Og. Sumário executivo de O caminho da servidão. Encarte especial da revista Think Tank, Ano I, Número 4 – junho/98.
MISES, Ludwig von. Ação humana – Um tratado de Economia. Tradução de Donald Stewart Jr. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990.
MOREIRA, José Manuel. Filosofia e metodologia da economia em F. A. Hayek ou a redescoberta de um caminho “terceiro” para a compreensão e melhoria da ordem alargada da interação humana. Porto: Publicações da Universidade do Porto, 1994.
______________ Hayek e a história da escola austríaca da economia. Porto: Edições Afrontamento, 1994.
SANDRONI, Paulo. Dicionário de economia do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2005.
TRAMBAIOLI, Margarida. A teoria austríaca dos ciclos econômicos. São Paulo: Instituto Liberal, Série Idéias Liberais, Ano II, N° 16, 1994.
ZANELLA, Fernando C. O mercado como processo: a abordagem austríaca. São Paulo: Instituto Liberal, Série Idéias Liberais, Ano I, N° 9, 1994.
Referências e indicações webgráficas
http://cepa.newschool.edu/het/
http://nobelprize.org/economics/laureates/1974/hayek-cv.html.
http://en.wikipedia.org/wiki/Friedrich_Hayek#Life
MONT Pelerin Society. Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Mont_Pelerin_Society.
PRUNES, Cândido. Hayek: a história de um Nobel de Economia. Disponível em http://www.institutoliberal.org.br/biblioteca/galeria/Galeria%20de%20autores.htm.
SHORT History and Statement of Aims. Disponível em http://www.montpelerin.org/aboutmps.html.
THE PRETENCE of Knowledge. Discurso de Friedrich A. Von Hayek na cerimônia de entrega do Prêmio Nobel de Economia, no dia 11 de dezembro de 1974. Disponível em http://nobelprize.org/economics/laureates/1974/hayek-lecture.html.
THE ROAD to Serfdom in cartoons.Disponível em http://www.mises.org./TRTS.htm
No Comment