Grandes Economistas
Quesnay e os fisiocratas
“Os proprietários, o soberano e toda a nação têm o maior
interesse em que o imposto seja inteiramente baseado
na renda das terras, de modo imediato; qualquer outra
forma de taxação seria contra a ordem natural, porque
seria prejudicial à reprodução e ao imposto; o imposto
recairia sobre si próprio. Tudo na terra está sujeito às
leis da Natureza e os homens são dotados da inteligência
necessária para as conhecer e observar; mas a multiplicidade
dos objetos exige grandes combinações que tornam muito ampla
a base de uma ciência evidente, cujo estudo é indispensável
para que os equívocos sejam evitados na prática.”
François Quesnay
François Quesnay nasceu em 1694. Descendente de proprietários de terras (Schumpeter sustenta que o pai era um advogado de relativo sucesso), foi educado para ser médico e fez fortuna por meio de sua habilidade em medicina e cirurgia. Foi elevado ao posto de médico da corte de Luís XV e Madame de Pompadour. Faleceu em 1774.
Na primeira metade do século XVIII a Europa foi fortemente influenciada pelas idéias de um movimento filosófico-cultural que revolucionou a maneira de pensar predominante até então. Esse movimento foi o Iluminismo e suas principais proposições foram:
- a defesa da liberdade em todas as suas dimensões – liberalismo;
- a afirmação dos valores individuais – individualismo; e
- a crença na supremacia da razão – racionalismo.
O Iluminismo reuniu os maiores intelectuais da Europa da época, entre os quais Voltaire, Diderot, Montesquieu, Rousseau, Condorcet, John Locke, David Hume e tantos outros. O maior legado escrito deixado pelo Iluminismo foi a Grand Encyclopédie, para a qual Quesnay contribuiu com dois verbetes: fermiers (fazendeiros), em 1756, e grains (cereais), em 1757.
Embora tenha tido influência em toda a Europa, o impacto do Iluminismo foi mais marcante na França e na Escócia, talvez não por coincidência, os países que se tornaram os berços das duas escolas de pensamento econômico que, na segunda metade do século, viriam a ser os baluartes do liberalismo: a Escola Fisiocrata e a Escola Clássica.
Nesse sentido, é possível dizer que a Escola Fisiocrata (ou Fisiocrática) constitui-se no braço econômico francês do Iluminismo.
A Escola, a rigor, teve uma influência localizada (já que não extrapolou os limites da França) e efêmera, pois sua influência iniciada com a publicação do verbete de Quesnay em 1756 se estende até 1776, quando seu membro mais influente politicamente, Turgot, perdeu seu cargo de controlador geral das Finanças (equivalente a ministro das Finanças). Esse caráter efêmero da influência da Escola Fisiocrata fica nítido na citação que se segue, de Joseph A. Schumpeter:
A fisiocracia não existia em 1750. Entre 1760 e 1770, Paris inteira, além de Versalhes, falava dela. Em 1780, quase todo mundo (exceto os economistas profissionais), já havia se esquecido dela.
Em que pese esse caráter pontual e passageiro, a Escola Fisiocrata é apontada por um número razoavelmente expressivo de historiadores como a primeira escola de pensamento econômico propriamente dita, embora esse crédito seja dado pela maior parte dos estudiosos à Escola Clássica, certamente porque sua influência foi muito maior e mais duradoura do que a da escola francesa.
Entre os que apontam a Escola Fisiocrata como pioneira, encontra-se Paul Hugon:
É a primeira escola econômica. Seus representantes são franceses que, juntos, trabalharam na elaboração de uma explicação geral da vida econômica. Suas obras se situam entre 1756 e 1778. Reúnem-se em volta de um chefe, Doutor Quesnay. Médico da Corte e do Rei, é Quesnay um sábio que por volta de 1756 – conta então 62 anos -, orienta suas pesquisas para os problemas econômicos. Mirabeau, o pai do tribuno da Revolução, Mercier de la Rivière, conselheiro do Parlamento, o abade Baudeau, le Tronse, representante do Parlamento de Orléans, Dupont de Nemours, secretário da Escola, e Turgot, o futuro ministro de Luís XVI, são seus discípulos principais. Reúnem-se em Versalhes e trabalham com paixão, sinceridade e aquela fé na força da razão, peculiar à filosofia da época.
Controvérsia à parte, o fato é que Adam Smith, numa etapa de sua vida em que trabalhou como tutor do jovem duque de Buccleuch, viajou com seu pupilo para a França, onde entrou em contato direto com as idéias dos fisiocratas, em especial com as de Quesnay e as de Turgot, que, na condição de ministro das Finanças de Luís XVI, pôde colocar em prática algumas das idéias defendidas pelos fisiocratas.
François Quesnay foi, em sombra de dúvida, o maior expoente dos fisiocratas, cujas idéias podem ser entendidas a partir da decomposição da própria palavra que dá nome à escola:
Fisio = natureza e Cracia = governo
Portanto, Fisiocracia significa governo da natureza e daí podem ser depreendidos os quatro principais postulados defendidos pelos seus adeptos:
- Ordem natural – os fisiocratas introduziram a idéia de ordem natural ao pensamento econômico. Achavam que o funcionamento da economia correspondia a uma ordem natural. De acordo com essa idéia, as leis da natureza governam as sociedades humanas da mesma maneira que as descobertas de Newton governam o mundo físico. Todas as atividades humanas, portanto, deveriam ser mantidas em harmonia com essas leis naturais. O objeto de todo estudo científico era descobrir as leis às quais todos os fenômenos do universo estavam sujeitos. Na esfera econômica, as leis da natureza conferiam aos indivíduos o direito natural de usufruir os frutos de seu próprio trabalho, desde que isso fosse consistente com os direitos dos outros.
- Laissez-faire, laissez-passer – essa expressão, creditada a Vincent de Gournay, e que na tradução literal quer dizer “deixe fazer, deixe passar”, significa na verdade “deixe as pessoas fazerem o que quiserem sem a interferência do governo”. Ela expressa a reação à excessiva intervenção governamental na economia, uma prática que estava fortemente enraizada nos países europeus após mais de dois séculos de predomínio das idéias mercantilistas. Para os fisiocratas, portanto, os governos nunca deveriam estender sua interferência nos assuntos econômicos além do mínimo absolutamente essencial para proteger a vida e a propriedade e para manter a liberdade de adquirir. Assim, os fisiocratas se opunham a quase todas as restrições feudais, mercantilistas e governamentais, favorecendo a liberdade de comércio interno, bem como o livre-comércio exterior. Paradoxalmente, Gournay era um dos beneficiários do sistema mercantilista, exercendo a função de inspetor de qualidade dos produtos de acordo com as marcas registradas (ou seja, uma espécie de fiscal). Espantado com o exagerado grau de detalhamento das leis que regulavam a produção e o comércio, acabou por cunhar a expressão que até hoje é utilizada como símbolo do liberalismo.
- Ênfase na agricultura – os fisiocratas acreditavam que a indústria, o comércio e as profissões eram úteis, mas estéreis, simplesmente reproduzindo o valor consumido na forma de matérias-primas e subsistência para os trabalhadores. Para eles, a indústria apenas alterava a essência e o comércio apenas transferia de lugar uma riqueza que havia sido produzida genuinamente pela agricultura, ou, em maior extensão, pela natureza. Sendo assim, somente a agricultura (e, possivelmente, a mineração) era produtiva, pois produzia um excedente, um produto líquido acima do valor dos recursos utilizados na produção. Para sintetizar usando uma expressão que está na moda, os fisiocratas pensavam que apenas a agricultura era capaz de agregar valor ao produto.
- Reforma tributária – os fisiocratas estavam interessados em reformar a França, que estava passando por desordens econômicas e sociais, causadas principalmente por uma perversa combinação de muitas das piores características do feudalismo e do mercantilismo. A tributação estava desordenada e era ineficiente, opressiva e injusta, constituída de uma multiplicidade de tarifas, impostos, subsídios, restrições e regulamentações que prejudicavam a produção e o comércio. A recomendação dos fisiocratas era de que toda a renda do governo deveria ser obtida através de um único imposto, para todo o país, sobre as atividades agrícolas (a serem pagos, portanto, pelos proprietários de terras).
Com base nesses postulados, François Quesnay elaborou em 1758, a pedido de rei da França, um modelo econômico que representava o funcionamento da economia francesa e que se constituiu na obra magna dos fisiocratas, o Tableau économique. Dividindo a sociedade em três classes, a produtiva, a proprietária e a estéril, Quesnay procurou demonstrar o fluxo circular de produção, circulação e distribuição da riqueza numa economia ideal e livremente competitiva, partindo para tal dos conhecimentos que ele tinha do funcionamento do organismo humano, como observa Stanley Brue:
Para Quesnay, a sociedade era semelhante ao organismo físico. A circulação de riqueza e bens na economia era como a circulação do sangue no corpo. Amos estavam de acordo com a ordem natural e ambos poderiam ser compreendidos por meio de análise cuidadosa.
Embora seja visto hoje por muitos como mera curiosidade literária, o Tableau constituiu-se na mais profunda e ousada obra do pensamento econômico até então aparecida. Mirabeau chegou a classificá-la, como a invenção da escrita e do dinheiro, uma das mais importantes descobertas do cérebro humano. E, a rigor, como afirma Eric Roll, ele “é perfeitamente simples e lógico, se considerarmos a base do sistema fisiocrático e o método de abstração empregado por Quesnay”.
O grande John Kenneth Galbraith, no livro (e no vídeo) A era da incerteza, dá grande destaque à extraordinária inovação representada pelo Tableau économique de Quesnay:
A economia rural francesa foi exaltada com incrível imaginação por Quesnay em seu famoso Tableau économique, uma tentativa de mostrar, em termos quantitativos, o relacionamento das principais peças do sistema econômico nacional – mostrar quanto os fazendeiros e lavradores, os latifundiários e donos de terras, os comerciantes recebiam uns dos outros em mercadoria e qual a renda que davam, uns aos outros, por essas transações.
Adam Smith foi um dos que muitos que não se impressionaram com o Tableau économique. Para ele, continua Galbraith, “os conhecimentos de economia só eram bons quando tinham indiscutível utilidade […] e para os cálculos de Quesnay ele não via qualquer utilidade prática”.
Na conclusão de seu comentário, Galbraith afirma que a concessão do Prêmio Nobel de Economia em 1973 a Wassily Leontief por sua análise interindustrial, mais conhecida como análise de insumo-produto, significou uma verdadeira redenção para François Quesnay, uma vez que a matriz insumo-produto é uma idéia que descende diretamente, embora de forma distante, do Tableau économique, uma extraordinária antecipação dos modelos econométricos tão badalados nos dias de hoje.
Na apresentação a François Quesnay na coleção Os Economistas, Roberto Campos recomenda um pouco de cautela.
O Quadro econômico é um distante e rudimentar precursor da análise de equilíbrio geral – que constitui, aliás, uma tradição latina, desenvolvida depois por Walras e Pareto, de vez que a tradição britânica, quase até o nascimento da macroeconomia keynesiana, versou muito mais sobre a distribuição e o equilíbrio parcial. Já se tornou costumeiro, também, atribuir ao Quadro econômico de Quesnay uma embrionária inspiração da moderna análise de relações interindustriais de Wassily Leontief. Há mesmo quem, com excesso de boa vontade, atribua a uma das formulações do Quadro econômico o chamado formato em ziguezague – uma antevisão do multiplicador keynesiano. Entretanto o formato em ziguezague, que se limita à circulação do produto líquido, seria um precursor do multiplicador keynesiano, enquanto que o Quadro Geral, que abrange a circulação da reprodução total, estaria na raiz das matrizes intersetoriais desenvolvidas modernamente por Leontief. Trata-se, entretanto, como fez notar Michel Lutfalla, de uma precária assimilação. Pois Guillebert, antes de Quesnay, teria sido antevisor real do multiplicador keynesiano pela sua ênfase sobre o consumo (Quesnay privilegiava os investimentos, assim considerados os salários da classe produtiva) e sobre o “encadeamento das despesas”, conceito assimilável à propensão marginal a consumir do moderno keynesianismo.
Polêmica à parte, parece-me justo reconhecer que Quesnay e a Escola Fisiocrata tiveram um papel fundamental para a evolução do pensamento econômico, na medida em que foram os responsáveis pela fundamentação filosófica do liberalismo, conquanto a sua consagração só tenha se consumado com Adam Smith e a Escola Clássica.
Por fim, gostaria de registrar que a Escola Fisiocrata é muito mais lembrada pelos seus erros do que por sua efetiva contribuição. Entre os erros cometidos por seus adeptos, o mais enfatizado diz respeito à esterilidade da indústria e do comércio. Trata-se, no caso, de um erro de consistência, e ele foi constatado já na época por Adam Smith. Mas os fisiocratas são acusados também por erros que só vieram a ser constatados com o desenrolar da história. Pelo fato de terem enfatizado a agricultura na mesma época em que a Inglaterra iniciava a sua revolução industrial, há quem – e não é pouca gente – que atribua aos fisiocratas a responsabilidade pelo fato de que a Inglaterra, e não a França, viesse a se tornar a nação mais poderosa do mundo no século XIX. Trata-se, no caso, do que pode ser chamado de “críticos de obra feita”, ou seja, de pessoas que se aproveitam do conhecimento da situação posterior para criticar as tomadas de decisão de épocas anteriores. Algo muito mais comum do que se pensa…
Referências e indicações bibliográficas
GALBRAITH, John Kenneth. A era da incerteza. Tradução de F. R. Nickelsen Pellegrini. 6ª ed. São Paulo: Pioneira, 1984.
KUNTZ, Rolf. Capitalismo e natureza. São Paulo: Brasiliense, 1978.
LUTFALLA, Michel. Prefácio da edição Calmann-Levy (1969) do Tableau économique des Phisiocrates, p. 28, 30, 35 e 37.
QUESNAY, François. Quadro econômico dos fisiocratas. Apresentação de Roberto Campos. Tradução de João Guilherme Vargas Netto. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Economistas).
ROTHSCHILD, Emma. Sentimentos econômicos. Tradução de Zaida Maldonado. Rio de Janeiro: Record, 2003.
SANDRONI, Paulo. Dicionário de economia do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2005.
VERGARA, Francisco. Introdução aos fundamentos filosóficos do liberalismo. Tradução de Catherine M. Mathieu. São Paulo: Nobel, 1995.
Livros texto de História do Pensamento Econômico
BRUE, Stanley L. História do pensamento econômico. Tradução de Luciana Penteado Miquelino. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005, pp. 33 – 45.
FUSFELD, Daniel R. A era do economista. Tradução de Fábio D. Waltenberg. São Paulo: Saraiva, 2001, pp. 27 – 28.
HUGON, Paul. História das doutrinas econômicas. 14ª ed. São Paulo: Atlas, 1984, pp. 89 – 100.
HUNT, E. K. História do pensamento econômico: uma perspectiva crítica. Tradução de José Ricardo Brandão Azevedo e Maria José Cyhlar Monteiro. Revisão técnica de André Villela. 2ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, pp. 32 – 36.
OSER, Jacob e BLANCHFIELD, William C. História do pensamento econômico. Tradução de Carmem Terezinha Santoro dos Santos. Revisão técnica de José Paschoal Rossetti. São Paulo: Atlas, 1983, pp. 37 – 48.
ROLL, Eric. História das doutrinas econômicas. Tradução de Cid Silveira. 2ª ed. São Paulo: Editora Nacional, 1962, pp. 116 – 126.
SCHUMPETER, Joseph A. Historia del análisis económico I. Tradución de Lucas Mantilla. México: Fondo de Cultura Económica, 1984.
______________ Fundamentos do pensamento econômico. Tradução de Edmond Jorge. Revisão técnica de Maria José C. Monteiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968, pp. 46 – 70.
SCREPANTI, Ernesto e ZAMAGNI, Stefano. Profilo di Storia del Pensiero Economico. Roma: La Nuova Italia Scientifica, 1991, pp. 59 – 62.
Referências e indicações webgráficas
Sobre o Iluminismo:
http://www.saberhistoria.hpg.ig.com.br/nova_pagina_31.htm
http://www.mundoeducacao.com.br/iluminismo/
Sobre a Grand Encyclopédie:
http://1enciclopedia.com/Encyclop%C3%A9die
Sobre François Quesnay:
http://cepa.newschool.edu/het/
http://www.cobra.pages.nom.br/fm-quesnay.html
Sobre a Escola Fisiocrata:
http://cepa.newschool.edu/het/
http://www.tiosam.com/enciclopedia/enciclopedia.php?title=Fisiocracia
http://www.esfgabinete.com/dicionario/?completo=1&conceito=Escola%20Fisiocrata
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