Grandes Economistas

 

A fina ironia de John Kenneth Galbraith

galbraith

 

“Especificamente, o planejamento industrial exige

que os preços estejam sob controle. A tecnologia

moderna reduz a segurança do mercado e aumenta

o comprometimento de tempo e capital que se exigem

na produção. Por essa razão, não se podem deixar os

preços aos caprichos do mercado não dirigido.”

John Kenneth Galbraith

 

John Kenneth Galbraith nasceu no condado de Elgin, em Ontário, Canadá, no ano de 1908. Naturalizado norte-americano, vive em Cambridge, Massachusetts, na área residencial da Universidade de Harvard, da qual é professor emérito. Ainda lúcido, segue refletindo e escrevendo sobre os problemas econômicos da atualidade, com toda a sabedoria acumulada ao longo de seus 97 anos de idade.

 

Poucos (talvez nenhum) economistas tiveram uma influência tão forte sobre o meu interesse pela economia quanto John Kenneth Galbraith. Seguramente porque ele possui uma qualidade muito rara entre os economistas: a de escrever de forma clara e com estilo agradável, tornando prazerosa a leitura de seus inúmeros livros e artigos.

Este aspecto não escapou ao Prof. Gesner de Oliveira que, tendo a incumbência de fazer a apresentação de Galbraith para a coleção Os Economistas, iniciou da seguinte forma:

Para vender um livro de Economia é preciso, muitas vezes, saber “dourar a pílula”. Uma capa atraente, sumários que prometam a síntese mais bem feita das grandes questões econômicas etc. Mas é provável que o leitor não especializado se sinta frustrado logo nas primeiras páginas de seu novo produto. Sob títulos pomposos de “Teoria da Produção”, e de “Teoria do Capital”, “Teoria do Lucro” etc. não é raro surgirem textos áridos e abstratos que se remetam apenas remotamente à discussão econômica cotidiana. Já alguns guias de leitura mais acessíveis são privados do aval de qualidade e rigor científico da Academia.

A obra de John Kenneth Galbraith constitui uma notória exceção. Os redutos acadêmicos mais vetustos tiveram que incluir seu nome, e seus livros dispensam qualquer esforço adicional de marketing por parte dos editores.

Segundo Galbraith, “há poucas idéias úteis em Economia, se é que há, que não se podem exprimir em linguagem clara”. Trata-se de um exagero. Não são muitos os que conseguem dar conta de objetos tão complexos quanto as modernas economias industriais de maneira acessível.

Apesar de seu extraordinário êxito em termos editoriais – Galbraith é um dos economistas mais lidos de todos os tempos e seu livro A era da incerteza foi transformado pela BBC numa série em vídeo que foi transmitida em dezenas de países – seu enquadramento entre os maiores economistas contemporâneos está longe de se constituir numa unanimidade, tanto é que ele não foi até hoje agraciado com o prestigiado Prêmio Nobel de Economia, tema de interessante artigo do Prof. David Warsh no livro Economic principals: masters and mavericks of modern economics.

Entre os motivos que podem explicar este “esquecimento” eu me arriscaria a destacar dois. O primeiro, mencionado por muitos analistas, seria decorrente da falta de contribuições originais de Galbraith para a evolução da teoria econômica. De acordo com essa linha de argumentação, ele seria muito mais um divulgador de idéias do que um proponente de alguma idéia que tenha se constituído num ramo de pesquisa de contribuição significativa para a economia. Além disso, Galbraith ousou escrever sobre temas muito variados, como se pode verificar na extensa lista de livros de sua autoria indicados no final deste artigo, não tendo tempo, por isso, para um trabalho mais sistemático e profundo sobre um mesmo tema. De certa forma, esse mesmo tipo de crítica foi feito a Stuart Mill, cuja importância para a evolução da teoria econômica também é questionada por alguns analistas (poucos, felizmente!). Procurarei pôr em xeque este motivo mais adiante, neste artigo.

O segundo, jamais admitido, seria conseqüência da combinação de dois fatores: 1) a forma crítica com que ele se refere à chamada sabedoria convencional; e 2) ao estilo irônico e “politicamente incorreto” com que ele muitas vezes trata a economia e os próprios economistas, aspectos que também serão retomados mais à frente.

Examinando um pouco a trajetória pessoal de Galbraith, cabe destacar desde logo que ele teve papel importante tanto na esfera real como na esfera acadêmica, não sendo, portanto, merecedor do incômodo rótulo de “economista desocupado”, utilizado por alguns ministros menos polidos desgostosos por críticas que lhes são dirigidas. Tendo se especializado inicialmente em economia agrícola, foi diretor do Gabinete de Administração de Preços, em Washington, numa de suas primeiras funções exercidas em diferentes gestões do Partido Democrata. Nessa área, ligada à economia agrícola, foi também consultor da Federação dos Agricultores dos Estados Unidos. No final da Segunda Guerra, Galbraith coordenou um amplo estudo governamental sobre as economias alemã e japonesa. Apesar de ter colaborado, como já assinalado, com diversas gestões do Partido Democrata, foi ao presidente John Kennedy – a quem conheceu em Harvard – que ele prestou colaboração ais efetiva, tendo exercido forte influência na formulação de seu programa de governo, além de ter sido embaixador dos Estados Unidos na Índia.

Essa destacada trajetória pessoal permitiu-lhe não apenas participar de grandes acontecimentos, mas também travar relações de conhecimento pessoal com alguns dos mais notáveis personagens da história do século XX, tais como os economistas John Maynard Keynes, Joseph A. Schumpeter, Paul M. Sweezy, Paul Baran, Wassily Leontief, W. W. Rostow e Theodore W. Schultz, o primeiro ministro da Índia, Jawaharlal Nehru, Harry Luce, um dos maiores nomes do mundo das comunicações, além de vários presidentes dos Estados Unidos. Memoráveis relatos desses acontecimentos e dessas e outras pessoas ilustres com quem ele travou relações podem ser vistos em três dos livros indicados ao final: Uma vida em nossos tempos; Uma visão de Galbraith sobre pessoas, políticos, poder militar e as artes; e Contando vantagem.

Na esfera acadêmica, Galbraith lecionou inicialmente na Universidade de Toronto. Depois de se radicalizar nos Estados Unidos, esteve em Berkeley, posteriormente em Princeton, para, finalmente, se fixar em Harvard, onde se tornou catedrático e professor emérito. Além das atividades já mencionadas nas esferas real e acadêmica, Galbraith também se dedicou ao jornalismo, escrevendo para a revista Fortune nos anos de 1943 e 1944. Foi ainda presidente da American Economic Association.

Embora não seja fácil enquadrá-lo numa única escola dentro da história do pensamento econômico, arrisco-me a fazer algumas considerações a esse respeito. Tendo rompido precocemente com a corrente teórica dominante da escola neoclássica, baseada nas idéias de William Stanley Jevons, Leon Walras e, principalmente, Alfred Marshall, Galbraith teve duas influências marcantes em sua produção teórica: a primeira delas foi da chamada escola institucionalista, cujo maior expoente foi Thorstein Veblen, autor de A teoria da classe ociosa; a segunda foi da escola keynesiana, uma vez que além de se declarar (em A era da incerteza) seguidor das idéias de Keynes, manteve relações com dois dos mais importantes de seus discípulos, Joan Robinson e Lorde Kohn. O Prof. Gesner de Oliveira refere-se também ao contato com o polonês Michal Kalecki, “cujos trabalhos sobre a determinação dos níveis de renda e emprego são bastante convergentes com as proposições keynesianas”.

Como legados dessas duas escolas Galbraith herdou um forte interesse pelo papel preponderante – positivo e negativo – das elites, evidente em A sociedade afluente, e pela influência relevante das instituições sobre o desempenho da economia, aspecto primordial daquela que é por ele mesmo considerada a sua obra mais importante, O novo estado industrial, onde chama a atenção para algo essencial à compreensão da economia moderna, o poder da tecnoestrutura, conseqüência da dissociação entre a propriedade do capital e a gestão efetiva nas grandes corporações empresariais contemporâneas. Por trás de todas as suas análises, a clara recusa à aceitação da eterna idéia-força do liberalismo, a crença no laissez-faire e na eficiência da economia de mercado. Galbraith ficou fortemente influenciado pela Grande Depressão, que teve início com a quebra da Bolsa de Nova York em 1929, e que provocou uma queda de 1/3 na produção norte-americana, além de ter determinado o desemprego de ¼ da força de trabalho dos Estados Unidos. Ao abordar o assunto em vários de seus livros (1929, o colapso da Bolsa; Moeda, de onde veio, para onde foi; A era da incerteza; O pensamento econômico em perspectiva: uma história crítica; Uma breve história da euforia financeira; e A economia das fraudes inocentes. Verdades para o nosso tempo) Galbraith questiona a hipótese predominante de que o crack da Bolsa foi conseqüência de uma crise geral de superprodução e chama a atenção para o que ele chama de choque de especulação, também responsável, noutras épocas, por agudas recessões econômicas.

Prometi, linhas atrás, contestar a crítica de que Galbraith não teve nenhuma contribuição relevante para a evolução da teoria econômica. A análise que ele faz do poder, não só econômico, mas também político, das grandes corporações e da tecnoestrutura responsável por sua gestão é, por si só, fundamental para a compreensão da economia contemporânea, fator, aliás, que se torna cada vez mais relevante nestes tempos de economia globalizada.

Prometi, também, voltar ao segundo motivo capaz de explicar por que Galbraith não foi agraciado com o Prêmio Nobel, sua ironia e “impertinência”. Vou me valer de duas citações para tanto.

A primeira encontra-se em O pensamento econômico em perspectiva: uma história crítica e refere-se às previsões cada vez mais freqüentes de alguns economistas:

Todos haverão de concordar que a economia, da maneira como é praticada, preocupa-se obsessivamente com o futuro. A cada mês nos Estados Unidos, homens e mulheres reputadamente cultos e inteligentes espalham-se pela nação para apresentarem suas opiniões sobre as perspectivas econômicas, e também sobre o panorama político e social. Milhares lhes darão ouvidos. Os administradores e suas empresas pagarão caro pelo privilégio de conhecerem estas visões e, se forem sábios, tratarão os conhecimentos assim adquiridos com inteligente descrença. A qualificação mais comum dos prognosticadores econômicos não é o saber, mas sim o não saberem que nada sabem. Seu maior trunfo é que todas as previsões, certas ou erradas, são logo esquecidas. Há por demais delas e, se o lapso de tempo for suficiente, não só a memória do que foi dito terá desaparecido, como também um número apreciável daqueles que fizeram ou ouviram tais prognósticos. Como observou Keynes, “A longo prazo estaremos todos mortos”.

Obviamente, os responsáveis pela concessão do Nobel, que muitas vezes justificaram suas indicações nos últimos anos pelas contribuições de economistas que fazem amplo uso da econometria e de métodos quantitativos para estimações econômicas, não devem se sentir nem um pouco à vontade com a ironia contida nesse comentário.

A segunda citação encontra-se em A era da incerteza. A certa altura, Galbraith alerta para o fato de que raramente os economistas, quando se encontram, conseguem chegar a algum consenso. A seguir, conclui de forma arrebatadora: “O que é ótimo, pois é muito provável que estivessem todos errados”.

É por essas e outras que considero a leitura dos textos de Galbraith uma das mais deliciosas experiências da minha carreira como economista. E, por que não, da minha admiração pela economia, ciência lúgubre, mas, acima de tudo, apaixonante e repleta de desafios.

Referências e indicações bibliográficas

GALBRAITH, John Kenneth. A economia e a arte da controvérsia. Tradução de Gilberto Paim. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1959.

______________ O desenvolvimento econômico em perspectiva. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1962.

______________ O novo estado industrial. Apresentação de Gesner José de Oliveira Filho. Tradução de Leônidas Gontijo de Carvalho. Revisão de Aldo Bocchini Neto. São Paulo: Abril Cultural, 1982 (Os Economistas).

______________ A era da incerteza. Tradução de F. R. Nickelsen Pellegrini. 6ª ed. São Paulo: Pioneira, 1984.

______________ Anatomia do poder. Tradução de Hilário Torloni. São Paulo: Pioneira, 1984.

______________ Uma vida em nossos tempos. Tradução de Wamberto H. Ferreira. 2ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986.

______________ A sociedade afluente. São Paulo: Pioneira, 1987.

______________ 1929, o colapso da Bolsa. Tradução de Oswaldo Chiquetto da 5ª edição americana baseada na tradução de Carlos Nayfeld da 3ª edição americana. São Paulo: Pioneira, 1988.

______________ O pensamento econômico em perspectiva: uma história crítica. Tradução de Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Pioneira/Editora da Universidade de São Paulo, 1989.

______________ Uma visão de Galbraith sobre pessoas, políticos, poder militar e as artes. Selecionado e editado por Andrea D. Williams Tradução de Carlos Alberto Malferrari. São Paulo: Pioneira, 1989.

______________ O professor. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Trajetória Cultural, 1990.

______________ A cultura do contentamento. Tradução de Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Pioneira, 1992.

______________ Uma breve história da euforia financeira. Tradução de Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Pioneira, 1992.

______________ Uma viagem pelo tempo econômico. São Paulo: Pioneira, 1994.

______________ Moeda, de onde veio, para onde foi. Tradução de Antonio Zoratto Sanvicente. Revisão de Janete Yunes Elias. 2ª edição atualizada. São Paulo: Thomson Pioneira, 1997.

______________ Contando vantagem. Tradução de Flávia Villas-Boas. Rio de Janeiro: Record, 2000.

______________ A economia das fraudes inocentes. Verdades para o nosso tempo. Tradução de Paulo Anthero Soares Barbosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

GALBRAITH, J. K. e SALINGER, Nicole. A economia ao alcance de quase todos. Tradução de F. Nickelsen Pellegrini. São Paulo: Pioneira, 1980.

GALBRAITH, J. K. e MENSHIKOV, S. Capitalismo, comunismo & coexistência: de um passado amargo a esperanças melhores. Tradução de Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Pioneira, 1988.

SANDRONI, Paulo. Dicionário de economia do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2005.

SCREPANTI, Ernesto e ZAMAGNI, Stefano. Profilo di Storia del Pensiero Economico. Roma: La Nuova Italia Scientifica, 1991, p. 403.

VEBLEN, Thorstein. A teoria da classe ociosa: um estudo econômico das instituições. Apresentação de Maria Hermínia Tavares de Almeida. Tradução de Olívia Krähenbühl. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Economistas).

WARSH, David. Why Galbraith won’t receive the Nobel Prize. Em Economic principals: masters and mavericks of modern economics. New York, NY: The Free Press, 1992, pp. 123 – 126.

Referências e indicações webgráficas

http://cepa.newschool.edu/het/profiles/galbraith.htm

http://www.blupete.com/Literature/Biographies/Philosophy/Galbraith.htm

http://en.wikipedia.org/wiki/John_Kenneth_Galbraith