O tempo e a economia III
A história se repete?
“Se quisermos progredir, não devemos repetir
a história,mas fazer uma história nova”.
Mahatma Gandhi
Na profusão de análises retrospectivas e prospectivas surgidas no período de passagem do ano, apareceram as inevitáveis comparações do desempenho da economia brasileira com o de outros países, em especial com o da Argentina. E, ao contrário da nossa economia, que fechou o ano com um crescimento pífio, mas com os fundamentos macroeconômicos estáveis e aparentemente sólidos, no nosso vizinho as coisas não se apresentaram da mesma forma. O final do ano foi marcado pela saída do ministro da Economia, Roberto Lavagna, principal responsável pela condução da política econômica no governo do presidente Néstor Kirchner. Em seu lugar assumiu Felisa Miceli, que estava na presidência do Banco de la Nación Argentina, o maior banco do país. Ela se tornou a primeira mulher a ocupar o posto na Argentina. E logo que assumiu, a nova ministra acenou com a possibilidade de medidas como “alinhamento de preços” e “acordo de cavalheiros nas negociações com empresários e trabalhadores” para conter a inflação que fechou o ano com a inflação superando a meta de 10,5%, porém, com tendência ascendente.
Foi o suficiente para que muitos analistas utilizassem expressões como “já vi esse filme antes, e os resultados não foram nada bons”.
Li e ouvi de diversas fontes comentários desse tipo na passagem de 2005 para 2006, o que me fez retornar ao tema da relação entre o tempo e a economia, já abordado por mim nesta coluna em novembro e dezembro últimos. Vou me ater a duas sensações muito comuns nessa relação: no artigo de hoje, à de que a história se repete; e no da próxima semana, à de que o tempo parece andar cada vez mais rápido.
A primeira sensação já foi abordada no artigo de novembro passado. Uma ex-aluna e assídua leitora desta coluna, no entanto, me pediu para ser mais claro, examinando o assunto em mais detalhe e com um tom mais pessoal, como costumo fazer em minhas aulas. Como sou daqueles que acredita que o leitor tem sempre razão, retorno ao tema procurando explicá-lo o mais próximo possível da abordagem feita em aula.
Para tanto, recorro a um trecho de um livro de história do pensamento econômico que é, ele mesmo, um exemplo vivo de como as coisas evoluem sempre, embora possam guardar significativas semelhanças com o passado. Na qualidade de professor já veterano dessa disciplina, costumo receber das editoras ofertas de exemplares de novos lançamentos para eventual indicação aos alunos. Trata-se de uma prática bastante inteligente e simpática, infelizmente não seguida por todas as editoras. Nem sempre tenho a oportunidade de examinar os livros que me chegam imediatamente após recebê-los. Muitas vezes deixo-os em quarentena para uma leitura mais atenta num momento de maior tranqüilidade.
Com o livro cujo trecho cito a seguir, ocorreu algo inusitado. Ao dar uma primeira folhada no mesmo, tive plena certeza de que já o conhecia. Intrigado, dei uma examinada mais detalhada e percebi que o livro apresentava a mesma metodologia e a mesma divisão nominal dos capítulos do livro de Oser e Blanchfield que, por muitos anos, indiquei como livro-texto para meus alunos de HPE, mas que se encontrava esgotado há um bom tempo. Intrigado, segui com a leitura das páginas prefaciais, não querendo admitir tão flagrante plágio. Para minha tranqüilidade, a explicação encontrava-se ali:
As pessoas que adotarem este livro reconhecerão nele o legado de Jacob Oser. Tem sido uma honra, para mim, dar continuidade ao trabalho do professor Oser nesses últimos doze anos.
Estava explicado. Stanley L. Brue, autor do livro que eu acabara de receber, não quis reinventar a roda. Antigo assistente e admirador da obra do professor Oser, ele utilizou o mesmo livro que ele (assim como eu) considerava ótimo, fez pequenas adaptações, incluiu algumas das mais importantes contribuições para a evolução recente do pensamento econômico e colocou à disposição do público interessado um “novo” e atualizadíssimo manual de HPE. Resolveu o problema dele – e o meu, já que pude continuar utilizando um livro-texto que atende muito bem aos objetivos que estipulei para o meu curso.
O trecho que se segue é um dos que, a meu juízo, melhor ilustra a falsa impressão de que a história se repete:
O pensamento econômico tem exibido um significativo grau de continuidade durante os séculos. Os fundadores de uma nova teoria podem recorrer às idéias de seus predecessores e desenvolvê-las ainda mais ou podem reagir em oposição a idéias anteriores que estimulam seu próprio pensamento em novas direções. […] Várias idéias modernas apresentam alguma semelhança com conceitos de épocas passadas nunca adotados ou repudiados há muito tempo. […] Isso não deve sugerir que a história se move em círculos e que voltamos para o momento em que estávamos em períodos anteriores. Em vez disso, a história do pensamento econômico [assim como a história, de uma forma geral] parece se mover em espirais. As teorias e políticas econômicas geralmente retornam, sim, para teorias e políticas semelhantes de eras anteriores, mas estão em diferentes planos, em condições muito diferentes.
A analogia com a geometria me parece excelente. Imaginar a evolução da história como uma sucessão de círculos separados no tempo seria o mesmo que dizer que a história não evolui de forma contínua, mas com intervalos entre momentos diferentes. Já a idéia da espiral confere à analogia a continuidade que a evolução do tempo, dinâmica por sua própria natureza, deve possuir. Por mais que ocorram situações semelhantes, ou que se adotem medidas parecidas com as do passado, elas estarão em momentos diferentes, o que significa que as pessoas envolvidas não serão as mesmas ou, mesmo que o fossem, estariam em momentos diferentes de suas existências, com outros anseios e outras necessidades.
Vale a pena, a título de ilustração, repetir o trecho da música cuja letra reproduzi integralmente no artigo de novembro passado:
Nada do que foi será
de novo do jeito que já foi um dia
tudo passa
tudo sempre passará
a vida vem em ondas
como um mar
num indo e vindo infinito
tudo que se vê não é
igual ao que a gente viu há um segundo
tudo muda o tempo todo no mundo…
Como temos também a sensação de que as coisas estão ocorrendo de forma cada vez mais rápida (tema do artigo da semana que vem), fica reforçada a primeira sensação, ou seja, a de que a história se repete, só que agora com uma velocidade muito maior. A rigor, isso faz parte de uma visão cíclica que cada um de nós desenvolve a respeito da percepção do tempo. O ano civil, determinado pelo calendário gregoriano, marca um ciclo determinado, de percepção generalizada, tanto das pessoas como das empresas. As pessoas percebem isso pela passagem do seu aniversário (por mais que queiram não admitir), das datas dos aniversários dos familiares e das pessoas queridas, dos feriados e das datas festivas e, assim como as empresas, pela necessidade de declarar o imposto de renda, pagar o IPVA, o IPTU, a taxa das entidades profissionais e outras dezenas de taxas, tributos, impostos e afins, principalmente no Brasil, “o país dos impostos”, como bem observa a campanha da Jovem Pan.
A par desse aspecto determinado pelo calendário, cada um de nós cria um ciclo próprio em função dos temas ou assuntos de maior interesse pessoal. Os fanáticos por futebol, por exemplo, criam o ciclo das copas. O fanático por esportes em geral, cria o ciclo olímpico. E assim por diante. Como o fanático por futebol é, muitas vezes também, fanático por esportes em geral, o ciclo de quatro anos fica reduzido para um ciclo de dois anos, já que a cada dois anos há uma competição de grande interesse, a Copa do Mundo ou os Jogos Olímpicos.
Bem, mas se essas competições são antigas, por que a sensação de que se repetem com maior rapidez só surgiu há pouco tempo?
Provavelmente porque a terceira revolução tecnológica, definida por Eduardo Giannetti da Fonseca como a das “tecnologias ligadas à busca, processamento, difusão e transmissão de informações; inteligência artificial; engenharia genética” mexeu de forma definitiva com a nossa própria maneira de perceber o mundo, principalmente nas suas dimensões de tempo e de distância. Assim, vivendo em meio a uma impressionante tempestade de informações, somos remetidos quase que permanentemente ao assunto do ciclo pessoal de cada um de nós. Não esperamos quatro anos pela próxima Copa do Mundo. No ano seguinte ao final de uma, já se iniciam os jogos das eliminatórias da próxima. Da mesma forma, entre uma edição e outra dos Jogos Olímpicos, ocorrem diversos tipos de torneios classificatórios – os pré-olímpicos -, mexendo com as emoções das pessoas. E, diferentemente, do que ocorria tempos atrás, tudo isso é mostrado em tempo real para milhões de telespectadores espalhados pelo mundo todo.
É interessante assinalar como isso ocorreu num espaço de poucas décadas. Quando conto certas passagens aos meus alunos, falando sobre este e outros aspectos ligados à percepção da passagem do tempo, eles ficam me olhando como se estivessem diante de um dinossauro ou algo do gênero.
Encerro o artigo de hoje me permitindo contar mais um caso de ordem pessoal, e já antecipando em parte a abordagem da próxima semana.
No último Natal, presenteei meu pai com o livro O marechal da vitória, que conta a biografia de Paulo Machado de Carvalho, um dos grandes empreendedores do século recém encerrado, que além de ter criado um importante grupo no segmento das comunicações – TV Record e Rádio Pan-americana, atual Jovem Pan – foi o chefe da delegação da seleção brasileira na conquista dos primeiros dois títulos de sua história: na Suécia, em 1958; e no bi, no Chile, em 1962 (à qual meu pai foi assistir com três grandes amigos daquela época).
Grande admirador do “Dr. Paulo”, meu pai começou imediatamente a leitura. E dois ou três dias depois me contou como foi feita na época “a extraordinária operação de logística” que permitiu que a Record transmitisse, 48 horas depois, o vídeo-tape das partidas do Brasil, disputadas no então considerado longínquo país andino. Lembro-me perfeitamente da expectativa com que aguardava a transmissão dos jogos em VT, às vésperas de completar sete anos, mas já gostando muito de futebol!
Desde então, tenho refletido sobre isso e acho que estou entendendo melhor a reação dos meus alunos. Para quem cresceu num mundo em que ter acesso a todas as coisas em tempo real é a coisa mais natural do mundo, existem coisas que eu conto que realmente devem parecer jurássicas.
Referências e indicações bibliográficas
BRUE, Stanley L. História do pensamento econômico. Tradução de Luciana Penteado Miquelino. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005.
Cairncross, Frances. O fim das distâncias: como a revolução nas comunicações transformará nossas vidas. São Paulo: Nobel, 2000.
CARDOSO, Tom e ROCKMANN, Roberto. O marechal da vitória. São Paulo: Girafa, 2005.
GIANNETTI DA FONSECA, Eduardo. Globalização, transição econômica e infra-estrutura no Brasil. Texto preparado para o Seminário “Competitividade na infra-estrutura para o Século XXI”, promovido pelo Instituto de Engenharia, São Paulo, realizado em 24/09/96, reproduzido em Idéias Liberais, Ano IV, N° 62, 1996.
OSER, Jacob e BLANCHFIELD, William C. História do pensamento econômico. Tradução de Carmem Terezinha Santoro dos Santos. Revisão técnica de José Paschoal Rossetti. São Paulo: Atlas, 1983.
Referência musical
Como uma onda. Lulu Santos e Nelson Motta.
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