Grandes Economistas
Adam Smith e a riqueza das nações
“Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro”.
ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da
consideração que eles têm pelo seu próprio interesse.
Dirigimo-nos não à sua humanidade, mas à sua
auto-estima, e nunca lhes falamos das nossas próprias
necessidades, mas das vantagens que advirão para eles.”
Adam Smith
Adam Smith nasceu em 1723 em Kirkcaldy, uma pequena cidade portuária da Escócia. Seu pai, também chamado Adam, era advogado de formação, e chegou a ocupar postos de certa importância na administração escocesa, e sua mãe, Margareth Douglas Smith, descendia de proprietários de terras do condado de Fife. Adoeceu e veio a falecer em 17 de julho de 1790, em Edimburgo, aos 66 anos de idade.
Há dez anos, a então professora Andréa Cury Waslander, redigiu, para a série Idéias Liberais, publicada pelo Instituto Liberal de São Paulo, da qual eu era o editor, um texto que teve por título Adam Smith e a Riqueza das Nações 220 anos depois. De acordo com esse texto, foi precisamente no dia 9 de março de 1776 que veio a público a primeira edição do livro A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas, a obra magna de Adam Smith.
Ainda de acordo com esse texto:
Segundo dos dois livros publicados pelo autor, A riqueza das nações, como ficou conhecido, não perdeu sua atualidade. Na edição do último dia 25 de maio [1996], a revista The Economist, em um excelente artigo sobre o crescimento econômico, foi buscar em Adam Smith as bases para a discussão deste tão importante assunto. Não foi sem razão que Schumpeter, no final dos anos 40, diria que A riqueza das nações foi “o mais bem sucedido dos livros não apenas de economia, mas com a possível exceção do Origin of Species, de Darwin, de todos os livros científicos aparecidos até hoje”.
Na introdução do primeiro volume de A riqueza das nações publicado em 1983 na coleção Os Economistas, da Abril Cultural, o renomado economista brasileiro Winston Fritsch, então professor e pesquisador da PUC-RJ e da UFRJ, relata:
O primeiro grande momento da carreira literária de Adam Smith viria em 1759, com a publicação da Teoria dos sentimentos morais, parte inicial de um ambicioso projeto literário que pretendia cobrir todas as áreas tratadas em seu curso de Filosofia Moral e que incluiria ainda um tratado sobre princípios de economia e economia política – o que viria a ser A riqueza das nações – e um tomo final sobre legislação e jurisprudência, que entretanto nunca seria publicado.
Adam Smith e seu contexto histórico
Depois de mais de dois séculos sob forte influência das idéias e práticas mercantilistas, que podem ser genericamente sintetizadas pelo binômio absolutismo político + intervencionismo econômico, a Europa viu nascer no início do século XVIII um movimento filosófico-cultural que exerceu enorme influência em todo o continente, o Iluminismo, que tinha por principais proposições a defesa da liberdade em todas as suas dimensões (liberalismo), o reconhecimento dos valores e dos direitos individuais (individualismo) e a crença na supremacia da razão (racionalismo). Embora as idéias iluministas tenham exercido influência em toda a Europa, ela foi mais marcante na França e na Escócia, que, por coincidência ou não, tornaram-se os berços das duas escolas de pensamento econômico surgidas na segunda metade do século, a escola fisiocrata e a escola clássica, respectivamente.
Nascido em 1723, Adam Smith pode ser considerado um produto desse contexto histórico, vindo a se tornar um dos maiores expoentes do iluminismo escocês e do pensamento econômico liberal.
Porém, reduzir apenas a isso a descrição do contexto histórico da época seria uma grosseira simplificação. Isto porque a descrição deste contexto, por mais sumária que seja, não pode omitir o fato de que a Inglaterra (e a Escócia, por extensão) vivia naquela época os primeiros estágios da revolução industrial e Smith soube como ninguém interpretar os movimentos em curso e perceber o alcance e a direção das principais mudanças.
John Kenneth Galbraith, ao defender a tese de que cada economista deve ser analisado e criticado com base no contexto histórico em que está inserido, afirma:
Pretendo ver a economia como um reflexo do mundo no qual idéias econômicas específicas se desenvolveram – as idéias de Adam Smith no contexto do trauma inicial da Revolução Industrial, as de David Ricardo em seus estágios posteriores mais maduros, as de Karl Marx na era do poderio capitalista desenfreado e as de John Maynard Keynes como uma reação ao implacável cataclismo da Grande Depressão.
Smith, após concluir os estudos secundários em Kirkcaldy, ingressou na Universidade de Glasgow, onde recebeu grande influência intelectual de Francis Hutcheson, então professor de Filosofia Moral. Antes de concluir os cinco anos necessários para sua graduação, Smith aceitou uma bolsa para prosseguir seus estudos no Balliol College, em Oxford, de onde retornou à Escócia em 1746, decepcionado com a educação recebida em Oxford e com o reduzido empenho dos professores locais, provavelmente acomodados, segundo Galbraith, pelo fato de terem salários fixos, ao invés de receberem de acordo com o número de alunos interessados em assistir suas aulas.
Depois de alguns anos sem emprego fixo, Smith inicia sua carreira de professor ministrando diversas conferências avulsas em Edimburgo até ser eleito, em 1751, para a cadeira de Lógica em Glasgow. Porém, com o súbito afastamento do professor da cadeira de Filosofia Moral e a possibilidade de optar entre as duas, foi a última que ele acabou assumindo, permanecendo no cargo ininterruptamente até 1763. Foi nesse período que Smith consolidou seu prestígio acadêmico e durante o qual teve a chance de conviver com os maiores nomes da intelectualidade da Escócia, com destaque para o grande David Hume.
Em 1763, atraído por uma pensão vitalícia de 300 libras anuais (o dobro do salário recebido na Universidade), Smith renuncia a seu posto na Universidade e aceita a oferta de Townshend, um dos mais eminentes economistas práticos da Escócia, para assumir a tutoria de seu enteado, o jovem Duque de Buccleugh. É nessa condição que, no início do ano seguinte, Smith segue viagem para a França, onde terá contato com os dois mais importantes representantes da escola fisiocrata, François Quesnay e Jacques Turgot. Foi também nessa viagem que, por ocasião de um tour pelo sul da França, Smith permaneceu por dois meses em Genebra, Suíça, quando conheceu um dos maiores intelectuais da época, François-Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire, de quem se tornou grande admirador. Ao retornar à Escócia em outubro de 1766 em razão do assassinato do irmão mais novo do Duque de Buccleugh, Smith já havia sido contaminado pelo clima cultural da ordem natural e já tinha em mente todos os elementos para a redação de seu grande livro.
Teoria dos sentimentos morais
A leitura do primeiro e menos conhecido livro de Adam Smith oferece ao leitor uma boa noção da sua visão filosófica (ou visão de mundo), que é muitas vezes o primeiro passo importante para se compreender bem a visão econômica de qualquer pessoa. Hélio Schwartsman, numa bem elaborada resenha na revista Exame afirma que o livro “é uma descrição dos supostos princípios universais da natureza humana sobre os quais se assentam as instituições sociais. Pode-se dizer que é a base psicológica sobre a qual se fundará A riqueza das nações, a obra capital de Adam Smith, editada 17 anos mais tarde”.
Nessa resenha, Schwartsman destaca a figura do espectador interno imparcial, que julga as nossas ações e as dos outros, e que surge do conflito entre o interesse próprio do indivíduo e a capacidade de formar juízos morais, incluindo juízos sobre seu próprio comportamento.
Para ilustrar esse aspecto, Schwartsman reproduz o seguinte trecho da Teoria dos sentimentos morais:
Cada pessoa, como dizia os estóicos, deve ser primeira e principalmente deixada a seu próprio cuidado. Cada uma delas é certamente, sob todos os pontos de vista, mais apta e capaz de si do que qualquer outra pessoa.
O que garante essa afirmação de Smith, afiança Schwartsman, é justamente o espectador imparcial:
Ele [o espectador imparcial] faz com que os homens, mesmo visando a seu próprio interesse, ajam de acordo com sua consciência (os juízos desse espectador). Com isso, os indivíduos acabam “se acertando” na vida em sociedade. A ação do espectador imparcial é análoga à da “mão invisível” na economia política: sem intencionalidade, mas provendo sempre o melhor com base no exercício espontâneo do egoísmo. É o testemunho da providência divina. A idéia do espectador imparcial parecerá menos ingênua ao leitor moderno se se evocar o papel desempenhado pelo superego psicanalítico na socialização.
Não pretendo, num artigo como este, me estender muito comentando a Teoria dos sentimentos morais, mas faço questão de reproduzir um trecho que, a meu ver, tem o maior significado para a compreensão da posição de Smith a respeito da intervenção do Estado na economia. Lembrando sempre que àquela época predominava o sistema mercantilista, “as tentativas de impor ordem ao sistema econômico por meio do processo político acabavam gerando”, como bem observa Eduardo Giannetti da Fonseca, “não tanto a ordem sonhada, mas discórdia, ineficiência e confusão”.
Tal descrença na eficiência de uma ordem econômica imposta de cima fica evidente no trecho que se segue:
O homem de sistema [o planejador estatal] costuma se achar muito sábio em seu próprio juízo; e ele está com freqüência tão enamorado da suposta beleza do seu próprio plano ideal de governo, que não tolera qualquer desvio, por menor que seja, em qualquer parte dele. Ele atua com o intuito de implantá-lo completamente e em todos os detalhes, sem prestar qualquer atenção, seja nos grandes interesses, seja nos fortes preconceitos, que podem se opor a ele. Ele parece imaginar-se capaz de dispor os diferentes membros de uma grande sociedade com a mesma facilidade com que a mão dispõe as diferentes peças sobre um tabuleiro de xadrez. Ele não considera que as peças sobre o tabuleiro não possuem outro movimento além daquele que a mão confere a elas; mas que, no grande tabuleiro de xadrez da sociedade humana, cada peça tem por si mesma um princípio de movimento que lhe é próprio, inteiramente distinto daquele que o poder legislativo poderia decidir imprimir a ela. Se estes dois princípios coincidem e agem na mesma direção, o jogo da sociedade humana se desenrolará com desenvoltura e harmonia, e é muito provável que seja feliz e coroado de sucesso. Se eles forem opostos ou diferirem, o jogo prosseguirá miseravelmente, e a sociedade viverá continuamente numa condição da mais alta desordem.
A visão crítica da intervenção estatal refletida nesse trecho não significa, como muitos imaginam, que Smith, por acreditar na eficiência do mercado, era favorável a uma sociedade anárquica, sem a presença do Estado. Esse aspecto será analisado a seguir, na exposição das principais idéias contidas em A riqueza das nações.
A riqueza das nações
Andréa Cury Waslander fez questão de chamar a atenção para o fato de que “o grande livro de Smith, como a maior parte dos clássicos, é mais citado do que lido”. Por isso, muito do que se fala ou se escreve a respeito de Smith e de outros grandes pensadores não é exatamente o que eles pensaram ou escreveram, mas sim a interpretação, nem sempre precisa, de uma terceira pessoa. Daí a recomendação, contida também na introdução já mencionada de Winston Fritsch, de que “no estudo da história do pensamento econômico, nada substitui o original”.
O número de idéias extraordinárias contidas em A riqueza das nações é enorme. Dividido em 5 partes (ou livros) a obra começa pelo entendimento do funcionamento da economia (livros 1 a 3) para depois apresentar reflexões sobre a economia (livros 4 e 5), incluindo no livro 5 uma discussão acerca do papel do Estado na economia. Neste artigo, no entanto, pretendo me ater a apenas três das que considero mais relevantes.
1. A crença na eficiência do mercado regido pelo sistema de preços
Eduardo Giannetti da Fonseca assinala que “as tentativas do governo de interferir na economia, manipulando e dirigindo as atividades de empresas e indivíduos, implicam algum grau de coerção e acabam, na maioria dos casos, gerando ineficiência e redução do bem-estar”. Tais tentativas, prossegue Giannetti, “terminam contribuindo para o descrédito da própria autoridade estatal. Não raras vezes, isso leva o governo a nova intervenção, com o objetivo de corrigir as falhas da intervenção anterior e eliminar os efeitos negativos – ainda que não intencionais – por ela gerados”. Assim, conclui Giannetti, “deflagra-se uma espiral de intervenções que se auto-alimenta. É a escalada intervencionista”.
Diante das constantes evidências de prejuízos provocados pela intervenção governamental, Smith chamou a atenção para os efeitos positivos da ação do mercado, o outro tipo básico de resposta ao problema da coordenação das ações dos agentes econômicos numa dada sociedade.
Recorro, uma vez mais, ao Prof. Eduardo Giannetti da Fonseca, em função da clareza, do alcance e da profundidade de sua análise, que, com tudo isso, não deixa de ser acessível ao leitor não especializado.
Do outro lado [da questão da coordenação] estava o livre mercado, ou seja, um sistema no qual os indivíduos são livres para tentar satisfazer seus objetivos à luz dos seus próprios recursos e conhecimentos, sem uma disciplina ou plano imposto de fora pela autoridade estatal. À primeira vista, este seria o caminho mais curto e óbvio para a desordem – para a mais completa confusão, desperdício e anarquia. Não obstante, e ao contrário do que se poderia imaginar a princípio, esse sistema possuía uma lógica interna de funcionamento e seu resultado estava longe de ser caótico. Enquanto a ordem imposta de fora pelo Estado conduz à desordem, a desordem aparente do mercado conduz a seu oposto. Ela geraria não mais desordem, mas uma ordem espontânea e constituída de dentro pelo próprio entrechoque anárquico das partes.
Como observou Adam Smith, “cada homem, desde que não viole as leis da justiça, fica perfeitamente livre para perseguir seu próprio interesse a sua maneira, e colocar sua diligência e seu capital em competição com os de qualquer outro homem”.
Para desespero dos adeptos do intervencionismo governamental, nem sempre com intenções confessáveis, o que se observa é que essa lógica vem provando ao longo dos tempos que, mesmo não sendo perfeita, costuma gerar muito menos problemas do que a lógica do Estado. Os lamentáveis acontecimentos de corrupção e malversação dolosa de recursos públicos que estamos assistindo no Brasil nos últimos meses, envolvendo membros do primeiro escalão do governo do presidente Lula, são evidências claras da extraordinária capacidade de antevisão de Adam Smith.
Para o Prof. Eduardo Giannetti da Fonseca, a principal contribuição de Adam Smith à ciência econômica reside em
mostrar em detalhe, no Livro 1 de A riqueza das nações, como a interação das atividades de um grande número de indivíduos e empresas, cada qual buscando apenas defender o que acredita ser o seu próprio interesse, conduz à formação de uma ordem espontânea, dotada de uma lógica interna consistente e capaz de garantir uma alocação eficiente dos recursos produtivos (terra, capital e trabalho) da comunidade.
A exemplo de dois tenistas se enfrentando numa partida, prossegue Giannetti, “os agentes econômicos, transacionando livremente no mercado, cooperam competindo entre si e a tarefa de coordenação é realizada de modo espontâneo pelo sistema de preços”. O Estado fica, desse modo, desobrigado do dever de supervisionar a economia, pois, como observou Adam Smith, este é
um dever que quando ele tenta cumprir o expõe a inumeráveis enganos, e para cujo desempenho adequado nenhum conhecimento ou sabedoria humanos jamais poderiam ser suficientes; o dever de superintender a atividade das pessoas privadas, e dirigi-las aos empregos mais propícios ao interesse da sociedade.
Concluo este item, novamente, citando o Prof. Giannetti:
Reconstruir passo a passo a análise smithiana do funcionamento e das propriedades do mercado regido pelo sistema de preços é algo que extrapolaria os limites deste trabalho (e, evidentemente, deste artigo). O que importa frisar é que dentro da lógica do mercado, embora o indivíduo seja livre para escolher seus próprios meios para realizar seus próprios fins, isso não significa que exista uma total ausência de restrições externas a seu comportamento. É a natureza da disciplina – e não sua inexistência – que diferencia o mercado do Estado enquanto resposta ao problema da coordenação.
2. O papel do Estado
Como já mencionei anteriormente, e ao contrário do que se poderia supor – e, de fato, muitos, erroneamente, supõem – Adam Smith está longe de se alinhar entre os pensadores mais radicais que defendiam o desaparecimento do Estado. Em seu texto de dez anos atrás, ao abordar este aspecto, Andréa Cury Waslander também recorreu ao Prof. Eduardo Giannetti da Fonseca:
É preciso lembrar que Adam Smith, ao contrário do que fariam filósofos como Marx e Herbert Spencer no século XIX, jamais flertou com a idéia de um possível (ou desejável) desaparecimento do Estado. No livro 5 da Riqueza das nações, ele discutiu as três funções básicas nas quais o exercício da autoridade política é imprescindível – segurança externa, administração da justiça e provisão de bens públicos – e defendeu, ainda, uma maior participação do setor público na educação popular, com o intuito de compensar, ao menos parcialmente, o empobrecimento existencial, ético e intelectual (“alienação”) provocado pela crescente especialização das funções fabris mediante a divisão interna do trabalho.
Examinando um pouco mais detalhadamente a visão smithiana sobre o papel do Estado, é interessante observar que há mais de duzentos anos Adam Smith já propunha soluções semelhantes àquilo que os manuais modernos de administração chamam de parceria. No excelente livro Adam Smith: el hombre y sus obras, E. G. West afirma que Smith
não examina o sistema de mercado livre abstratamente, mas no contexto de um adequado marco legal no qual o governo tem funções bem definidas. […] Smith busca pragmaticamente aquelas instituições que são adequadas em determinadas circunstâncias. As forças do mercado só são benéficas sob algumas destas circunstâncias, sem que seja possível traçar uma linha divisória. Smith observa, por exemplo, que pode ocorrer um sistema de preços sem um mercado livre ao estilo do laissez-faire. De fato, examina detidamente as circunstâncias em que um sistema é melhor que o outro, ou quando é melhor ter uma mescla de ambos. Assim, argumenta que no caso da educação pública, o governo deve subsidiar os edifícios escolares, porém que uma boa parte dos salários do professor deve ser proveniente de honorários privados. As estradas, pontes, canais e portos devem financiar-se parcialmente com cobrança aos usuários e parcialmente com ingressos procedentes do Tesouro público.
3. A divisão do trabalho e a propensão do homem à troca
Escrito numa época em que a divisão do trabalho era ainda incipiente e provocava sérias dúvidas em pessoas ou famílias que tinham o costume de se envolver, direta ou indiretamente, na produção de quase todos os bens e serviços de que precisavam se utilizar, Adam Smith utilizou os primeiros capítulos de seu grande livro para convencer a todos das vantagens da divisão do trabalho. Foi com esse objetivo que fez uso do famoso exemplo da fábrica de alfinetes:
Um operário não treinado para essa atividade (que a divisão do trabalho transformou em uma indústria específica) nem familiarizado com a utilização das máquinas ali empregadas (cuja invenção provavelmente também se deveu à mesma divisão do trabalho), dificilmente poderia talvez fabricar um único alfinete em um dia, empenhando o máximo de trabalho; de qualquer forma, certamente não conseguirá fabricar vinte. Entretanto, da forma como essa atividade é hoje executada, não somente o trabalho todo constitui uma indústria específica, mas ele está dividido em uma série de setores, dos quais, por sua vez, a maior parte também constitui provavelmente um ofício especial. Um operário desenrola o arame, um outro o endireita, um terceiro o corta, um quarto faz as pontas, um quinto o afia nas pontas para a colocação da cabeça do alfinete; para fazer uma cabeça de alfinete requerem-se 3 ou 4 operações diferentes; montar a cabeça já é uma atividade diferente, e alvejar os alfinetes é outra; a própria embalagem dos alfinetes também constitui uma atividade independente. Assim, a importante atividade de fabricar um alfinete está dividida em aproximadamente 18 operações distintas, as quais, em algumas manufaturas são executadas por pessoas diferentes, ao passo que, em outras, o mesmo operário às vezes executa 2 ou 3 delas. Vi uma pequena manufatura desse tipo, com apenas 10 empregados, e na qual alguns desses executavam 2 ou 3 operações diferentes. Mas, embora não fossem muito hábeis, e portanto não estivessem particularmente treinados para o uso das máquinas, conseguiam, quando se esforçavam, fabricar em torno de 12 libras de alfinetes por dia. Ora, 1 libra contém mais do que 4 mil alfinetes de tamanho médio. Por conseguinte, essas 10 pessoas conseguiam produzir entre elas mais do que 48 mil alfinetes por dia. Assim, já que cada pessoa conseguia fazer 1/10 de 48 mil alfinetes por dia, pode-se considerar que cada uma produzia 4.800 alfinetes diariamente. Se, porém, tivessem trabalhado independentemente um do outro, e sem que nenhum deles tivesse sido treinado para esse ramo de atividade, certamente cada um deles não teria conseguido fabricar 20 alfinetes por dia, e talvez nem mesmo 1, ou seja: com certeza não conseguiria produzir a 240ª parte, e talvez nem mesmo a 4.800ª parte daquilo que hoje são capazes de produzir, em virtude de uma adequada divisão do trabalho e combinação de suas diferentes operações.
A explicação de Smith para o extraordinário aumento da produtividade propiciado pela divisão do trabalho é também genial e merece ser reproduzida:
Esse grande aumento da quantidade de trabalho que, em conseqüência da divisão do trabalho, o mesmo número de pessoas é capaz de realizar, é devido a três circunstâncias distintas: em primeiro lugar, devido à maior destreza existente em cada trabalhador; em segundo, à poupança daquele tempo que, geralmente, seria costume perder ao passar de um tipo de trabalho para outro; finalmente, à invenção de um grande número de máquinas que facilitam a abreviam o trabalho, possibilitando a uma única pessoa fazer o trabalho que, de outra forma, teria que ser feio por muitas.
Além da divisão do trabalho, o outro conceito básico para a explicação de Adam Smith para o enriquecimento das nações é a propensão do homem à troca. A seu ver,
é a grande multiplicação das produções de todos os diversos ofícios – multiplicação essa decorrente da divisão do trabalho – que gera, em uma sociedade bem dirigida, aquela riqueza universal que se estende até às camadas mais baixas do povo” e “assim como é por negociação, por escambo ou por troca que conseguimos uns dos outros a maior parte dos serviços recíprocos de que necessitamos, da mesma propensão ou tendência a permutar que originalmente gera a divisão do trabalho.
Portanto, como assinala Andréa Cury Waslander, é “a divisão social do trabalho, originada a partir da propensão do homem à troca, e não da decisão humana, que gera a riqueza das nações. Mas, qual a razão que leva os homens à realização de trocas?”
Segundo o próprio Adam Smith, as diferentes necessidades humanas é que fazem com que as trocas sejam necessárias:
Sem a ajuda e cooperação de muitos milhares não seria possível prover às necessidades, nem mesmo de uma pessoa de classe mais baixa de um país civilizado, por mais que imaginemos – erroneamente – ser muito pouco e muito simples aquilo de que tais pessoas necessitam.
Se a divisão social do trabalho é resultado da propensão do homem à troca, ela é limitada pela extensão dos mercados. Nas palavras de Adam Smith,
como é o poder de troca que leva à divisão do trabalho, assim a extensão dessa divisão deve sempre ser limitada pela extensão desse poder, ou, em outros termos, pela extensão do mercado. Quando o mercado é muito reduzido, ninguém pode sentir-se estimulado a dedicar-se inteiramente a uma ocupação que ultrapassa seu consumo pessoal pela parcela de produção do trabalho alheio, da qual tem necessidade.
Considerações finais
Por mais que me esforçasse, não consegui ser mais sucinto na apresentação deste que é considerado, por muitos, o “pai da economia”. E, a rigor, muita coisa está ainda faltando para que se tenha uma noção, mesmo pálida, de sua enorme contribuição, não só para a ciência econômica, como para o conhecimento geral da humanidade.
Obviamente, Adam Smith – como qualquer ser humano – também cometeu imprecisões ou erros, muitos dos quais apontados por aqueles que o sucederam. Tanto algumas de suas outras extraordinárias contribuições, notadamente no que se refere à sua teoria do crescimento econômico, como algumas de suas imprecisões, como por exemplo na teoria do valor, serão focalizadas em futuros artigos nestas mesmas Iscas Intelectuais.
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