Interpretações do Brasil II
A teoria da dependência
“Há dois lados da divisão internacional do trabalho: um
em que alguns países especializaram-se em ganhar, e outro
em que se especializaram em perder. Nossa Comarca do
mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi
precoce: especializou-se em perder desde os remotos
tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram
pelo mar e fincaram os dentes em sua garganta. Passaram
os séculos, e a América Latina aperfeiçoou suas funções.”
Eduardo Galeano
No primeiro artigo desta série sobre as correntes de interpretação da realidade brasileira, publicado há pouco mais de um mês, abordei a corrente patrimonialista. Na oportunidade, afirmei que a referida corrente surgiu como uma espécie de contraposição à teoria da dependência e à percepção dela decorrente de que a responsabilidade maior pelo subdesenvolvimento dos países latino-americanos devia-se à exploração a que eram submetidos pelos países desenvolvidos e não aos problemas internos desses países. Afirmei, naquele artigo:
Esse tipo de ponto de vista [típico da teoria da dependência], que praticamente nos isentava de qualquer responsabilidade pelo subdesenvolvimento da região, jogando toda a culpa pelo nosso atraso nas costas dos países desenvolvidos, incomodou alguns pensadores e estudiosos que enxergavam nessa postura uma forma muito confortável de encarar a questão. Sendo assim, e agindo a princípio de forma assistemática, já que desenvolviam suas pesquisas e seus trabalhos em instituições e locais diferentes, acabaram dando origem a uma corrente de interpretação que se convencionou chamar de patrimonialista e que tem no deslocamento do foco central de sua análise da realidade brasileira e latino-americana de fora para dentro dos países da região uma de suas marcas características.
A teoria da dependência ganhou destaque com a publicação do livro Dependência e desenvolvimento na América Latina, de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto. No Prefácio à nova edição publicada pela Editora Civilização Brasileira (2004), Fernando Henrique Cardoso inicia dizendo:
A trajetória dos livros é caprichosa. Este livro foi escrito inicialmente sob a forma de um relatório, a ser encaminhado a Raúl Prebisch. As versões iniciais foram feitas, provavelmente, em 1965, mas o texto só tomou forma a partir de 1966. […] Propusemos neste livro um esquema de interpretação com ênfase na dinâmica política entre as classes e grupos sociais, no interior de cada país. Também demos um papel mais relevante às opções ideológicas e às alternativas que o movimento da história abria em cada situação específica. Ao mesmo tempo, insistimos nas variações no modo de relacionamento das economias dos países periféricos com as economias desenvolvidas. Mostramos que esses distintos modos criavam teias de relações políticas e de interesse que, unindo setores dos dois tipos de economias – as desenvolvidas e as subdesenvolvidas –, moldavam formas distintas de desenvolvimento político e social em cada país da região.
Tendo por bases teóricas a visão estruturalista da CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina (onde trabalhavam os autores quando o livro foi escrito) e o imperialismo da visão marxista, a teoria da dependência aplica o binômio centro/periferia à análise da realidade brasileira.
Nesse sentido, supõe que os países periféricos (subdesenvolvidos) tornam-se dependentes dos países centrais (desenvolvidos) e, em razão dessa dependência, são submetidos a uma exploração crescente, que vai reforçando cada vez mais essa conexão entre dependência e exploração, a ponto de se constituir num ciclo que se retroalimenta sistematicamente.
Esse ciclo de dependência e exploração se faz presente em três dimensões: econômica, política e cultural.
A dimensão econômica da dependência e exploração pode ser subdividida em três formas. A primeira é a comercial, decorrente das relações entre países centrais e periféricos resultante da divisão internacional do trabalho. Nela, os países centrais especializaram-se na produção de bens de consumo duráveis e de bens de capital, enquanto que os países periféricos especializaram-se na produção de bens primários, em especial, alimentos e matérias-primas. Como os preços desses produtos evoluíram de forma assimétrica, os países periféricos foram sendo obrigados a produzir (e exportar) quantidades cada vez maiores de bens primários para continuar a importar o mesmo volume de bens de consumo duráveis e de bens de capital. Tal situação, estendendo-se no tempo por longos períodos, constitui-se num processo de transferência de riqueza dos países periféricos para os países centrais. Esse mecanismo tornou-se conhecido como “deterioração dos termos de intercâmbio” ou “deterioração das relações de trocas” e é o ponto alto da interpretação dependentista. A segunda forma é a financeira e se explica pela exportação dos resultados dos países periféricos para os países centrais. Essa exportação de resultados consiste em diferentes formas de transferência de recursos financeiros em direção aos países centrais, entre as quais os pagamentos de royalties, as remessas de lucros das empresas multinacionais e a mais grave delas, o pagamento de elevado montante de juros, onerando pesadamente a balança de serviços. A terceira forma de exploração e dependência (dentro ainda da dimensão econômica) é a tecnológica e pode ser explicada pelo atrelamento dos países periféricos à tecnologia dos países centrais: além de não desenvolverem tecnologias próprias, os países periféricos acabam muitas vezes utilizando máquinas e equipamentos sucateados, ou seja, já superados nos países centrais, e ainda pagam royalties por sua utilização.
A dimensão política, por sua vez, tem na internacionalização dos centros de decisão a sua face mais visível. Pressionados pelo ciclo de exploração e dependência, os países periféricos acabam se tornando excessivamente vulneráveis, o que faz com que muitas das decisões políticas que adotam não reflitam necessariamente o ponto de vista da maior parte de suas respectivas populações. Tal fenômeno pode ser observado tanto na política interna como na política internacional, quando a posição desses países é fortemente influenciada pelos países centrais por ocasião de tomadas de decisão em organismos multilaterais como a ONU, a OMC ou o FMI.
Por fim, a dimensão cultural pode ser explicada pela assimilação dos valores, hábitos, ideais e comportamentos dos países centrais por parte das populações dos países periféricos. Essa influência acentuou-se a partir do extraordinário avanço das telecomunicações e, por que não, da informática.
O quadro que se segue é uma tentativa de resumir, de maneira esquemática, o ciclo supra descrito de exploração e dependência:
Duas observações e um comentário, a título de conclusão.
1ª observação
Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (posteriormente seguidos por outros autores de considerável destaque na época, tais como André Gunder Frank, Eduardo Galeano e Theotônio dos Santos) souberam captar o sentimento em voga sobretudo nos meios acadêmicos latino-americanos na segunda metade da década de 1960, período em que vários países da região se encontravam sob regimes políticos autoritários, com governos militares. Como bem observa Fernando Henrique Cardoso:
Ocorre que a palavra dependência, na época, era mágica. […] O livro foi lido no contexto de vários outros trabalhos políticos e acadêmicos que martelavam a noção de dependência quase como um sinônimo de relação imperialista. Como se a dinâmica das sociedades dependentes fosse determinada mecanicamente pelos interesses e pelos objetivos dos países dominantes. Tudo, ou quase tudo, se “explicava” como conseqüência da lógica do capital monopolista ou dos desígnios dos governos imperialistas.
Esta forma de interpretar o livro levou a uma visão estreita e reducionista que via padrões de uniformidade em países que se achavam em níveis de desenvolvimento tão distintos como, por exemplo, Brasil, Argentina, Bolívia, Nicarágua ou Haiti. Os autores do livro jamais tiveram essa visão ingênua e procuraram sempre destacar a necessidade de diferentes ações de política econômica para a superação do subdesenvolvimento em função, precisamente, do distinto grau de desenvolvimento em que se encontravam os vários países do continente.
2ª observação
Embora duramente criticado em campanhas eleitorais “por ter mandado apagar o que escreveu”, Fernando Henrique Cardoso jamais negou a paternidade da teoria da dependência, embora reconhecesse que tinha uma nova visão de mundo, coerente com a própria dinâmica que caracteriza a evolução política, econômica e social. Esse aspecto, aliás, e realçado no final do já aludido Prefácio: “se o escrevesse hoje, acrescentaria algo, tentaria aprofundá-lo, teria de torná-lo mais atual, considerando a evolução histórica, mas não o mudaria essencialmente”.
Uma das razões da sobrevivência do livro – e da própria teoria da dependência – reside talvez no fato de ter sido inovador, antecipando-se a expressões que só viriam a se disseminar décadas mais tarde, como globalização ou mundialização, como preferem os franceses. Esse aspecto também é ressaltado por Fernando Henrique Cardoso:
[…] ao descrever o que chamamos de “a nova dependência”, [o livro] fez uma das primeiras caracterizações do que se designa hoje “globalização”. Na época, sequer a expressão “empresas multinacionais” era usual. Em geral, ainda se falava em trustes e cartéis.
Na tentativa de explicar o processo de mundialização que estava em seu início – e de nos contrapormos às teses sobre a inevitabilidade da estagnação econômica, como conseqüência da contradição entre interesses imperialistas e desenvolvimento econômico dos países periféricos -, salientamos o que era mais evidente: o mercado interno estava se ampliando em alguns países graças aos investimentos industriais externos. Chamamos esse processo de “internacionalização do mercado interno”. Expressão insuficiente para qualificar o que estava começando a ocorrer.
Não obstante mostrarmos, na análise da “nova dependência”, os primórdios do que hoje se chama de globalização, apesar de não ter sido possível obviamente descrever o que era apenas uma nuvem no horizonte: o processo de integração financeira e a dispersão em escala mundial do processo produtivo, facilitados, mais tarde, pela internet.
Comentário final
Em que pese o respeito que tenho pela figura do presidente Fernando Henrique Cardoso, quer pelo intelectual, quer pelo político e estadista, e embora eu reconheça que o livro Dependência e desenvolvimento na América Latina “surfou nas ondas do sucesso acadêmico” e se tornou um clássico sobre a teoria da dependência, não posso deixar de registrar que, a meu juízo, há um equívoco de origem. A exemplo de tantas outras que surgiram – e surgem – de tempo em tempo, a teoria da dependência é apenas uma nova roupagem para uma velha e desgastada visão de mundo que remonta ao início do capitalismo, numa época chamada de mercantilista, e que pode ser resumida pela expressão “jogo de soma zero”. De acordo com essa visão, uma nação só pode enriquecer graças ao empobrecimento de outra(s). Esta era exatamente a concepção adotada pelos economistas da escola mercantilista: acreditando que a riqueza nacional derivava do estoque de metais preciosos que cada nação possuía, e sendo fixo o volume total de metais existente no mundo, o enriquecimento de uma nação passava necessariamente pela troca (comércio) ou pela conquista (invasões, guerras de anexação, contrabando, pirataria etc.).
Desde o século XVIII, primeiro com os fisiocratas e depois com os economistas da escola liberal clássica, tal visão de mundo encontra-se claramente superada. Afinal, parece-me evidente que a produção, e não só a troca, está na base da riqueza de qualquer nação. E nada impede que, graças ao esforço, ao trabalho, à criatividade e à competência de cada nação, várias delas possam enriquecer simultaneamente, se que para isso haja necessidade do empobrecimento de outra(s). Incrível como, de tempos em tempos, surjam tentativas de ressuscitar essa visão de mundo assentada no “jogo de soma zero”.
Referências e indicações bibliográficas
CARDOSO, Fernando Henrique e FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina. São Paulo: Civilização Brasileira, 2004.
FRANK, Andre Gunder, CHEW, Sing C. e DENEMARK, Robert Alen (organizadores). The underdevelopment of development – Essays in honor of Andre Gunder Frank. USA: Sage, 1996.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Tradução de Galeno de Freitas. 8ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Quinhentos anos de periferia: uma contribuição ao estudo da política internacional. 2ª ed. Porto Alegre/Rio de Janeiro: Ed. Universidade/UFRGS/Contraponto, 2000.
LENIN, Vladimir Ilitch. El Imperialismo, Fase Superior de Capitalismo. Moscou. Editorial Progreso, 1981.
SANDRONI, Paulo. Dicionário de economia do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2005.
SANTOS, Theotônio dos. A teoria da dependência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
THUROW, Lester. Cabeça a cabeça. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
Referências e indicações webgráficas
MACHADO, Luiz Alberto. Interpretações do Brasil I – O caráter patrimonialista. Disponível em http://www.lucianopires.com.br/iscasbrasil/iscas/abre_isca.asp?cod=715.
MACHADO, Luiz Toledo. A teoria da dependência na América Latina. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141999000100018.
MEDEIROS, Rodrigo. Os caminhos brasileiros na eleição presidencial de 2002: superação ou aprofundamento da dependência? Disponível em http://www.economiabr.net/colunas/medeiros/dependencia.html.
MELO, Adriana Sales de. Repensando a relação entre dependência, desenvolvimento e educação. Disponível em http://www.bibli.fae.unicamp.br/gepalc/aasm01.htm.
OURIQUES, Nildo. André Gunder Frank – A genial trajetória de um intelectual anti-acadêmico. Disponível em http://www.ola.cse.ufsc.br/analise/20050607_genial.htm.
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