Grandes Economistas
A extraordinária contribuição de David Ricardo
“O trabalho, como todas as outras coisas que
são compradas e vendidas e cuja quantidade
pode ser aumentada ou diminuída, tem seu
preço natural e seu preço de mercado. O preço
natural do trabalho é aquele necessário para
permitir que os trabalhadores, em geral,
subsistam e perpetuem sua descendência,
sem aumento ou diminuição.”
David Ricardo
David Ricardo nasceu em Londres, no dia 18 de abril de 1772. Foi o terceiro de 17 filhos de uma família holandesa de classe média, descendentes de judeus expulsos de Portugal (sefarditas). Seguindo os passos do pai, tornou-se operador da Bolsa de Valores de Londres, onde acumulou fortuna. Rompeu com a família (e com a religião judaica) aos 21 anos e se casou com uma jovem “quaker”. Morreu, prematuramente, em 11 de setembro de 1823, aos 51 anos de idade.
Abro este meu artigo com uma convicção plena: é muito difícil condensar a extraordinária contribuição de David Ricardo para a teoria econômica (ou economia política, como certamente preferem alguns) num texto com as características que devem prevalecer nestas Iscas Intelectuais.
Um contra argumento a essa afirmação seria de que o mesmo pode ser dito a respeito de qualquer outro grande economista. De certa forma, isso é verdade. Porém, com Ricardo a dificuldade assume um nível mais elevado graças à abrangência de sua análise. Como bem observou o Prof. Paul Singer, na apresentação dos Princípios de economia política e tributação para a coleção Os Economistas, publicada pela Editora Abril:
Quase não há problema teórico atualmente debatido pelos economistas, como o da teoria do valor, da repartição da renda, do comércio internacional, do sistema monetário, que não tenha como ponto de partida as formulações expostas, no começo do século XIX, por David Ricardo.
Apontado como o mais legítimo sucessor de Adam Smith, Ricardo não foi um acadêmico como a maior parte dos outros grandes economistas. Descrito por Galbraith como “o único rival sério de Smith quanto ao título de fundador da teoria econômica, Ricardo era judeu, era um corretor da bolsa de valores, membro do Parlamento, dono de soberba inteligência e de péssima oratória”. Ao contrário de Adam Smith e de seu grande intérprete francês Jean Baptiste Say, que tinham uma visão geralmente otimista quanto às perspectivas da humanidade, Ricardo e Malthus jamais foram considerados otimistas. “Foi graças a [Thomas Robert] Malthus e Ricardo que a economia se transformou numa ciência sombria”, sentencia Galbraith em sua célebre A era da incerteza.
Diante da completa impossibilidade de cobrir pelo menos parte da extensa contribuição de Ricardo, abordo, a seguir, alguns dos aspectos que considero mais relevantes, relacionados às teorias do valor, da renda e do comércio internacional, para, no final, me estender um pouco mais detalhadamente em sua obra magna, tecendo uma série de considerações baseadas num texto, até onde eu saiba inédito, do professor a amigo Élsior Moreira Alves.
Teoria da renda
É na elaboração da teoria da renda que se nota a forte influência de Malthus sobre o pensamento ricardiano, uma vez que suas conclusões refletem claramente a preocupação de Malthus decorrente da desproporção entre o crescimento da população e o da produção de alimentos. Paulo Sandroni, no Dicionário de economia do século XXI, descreve assim a abordagem de Ricardo:
Em sua análise dos problemas econômicos, construiu um modelo teórico fundamentado numa economia predominantemente agrícola, procurando determinar as leis que regulam a distribuição do produto entre as diferentes classes da sociedade e localizando no trabalho o valor de troca das mercadorias. Apesar disso, acreditava que os custos do capital podem influenciar os preços e que o aumento dos salários sobre os preços relativos depende da proporção desses dois fatores de produção. Para Ricardo, a renda relaciona-se com o aumento da população. Acreditava que a maior demanda acarretada por esse aumento da população exige o cultivo de terras menos férteis, nas quais o custo de produção é mais elevado do que em terras mais férteis. Mas custos e lucros deveriam ser mantidos no mesmo nível dos dois casos, pois, de outro modo, as terras de pior qualidade deixariam de ser cultivadas. Mesmo com essas medidas, no entanto, os arrendatários das melhores terras acabariam tendo uma maior receita, independente do trabalho e do capital aplicados na produção. Essa diferença em seu favor (ou o excedente sobre o custo da produção) constituiria a renda da terra apropriada pelo proprietário. Assim, a renda de determinada terra seria a diferença entre o valor da colheita dessa área fértil e da colheita de outras menos férteis. Com o inevitável crescimento da renda diferencial da terra, os proprietários rurais iriam se apossando de maior percentual do excedente econômico, em detrimento dos capitalistas.
O estado estacionário
Dando continuidade à sua análise, observa o Prof. Paulo Sandroni, enfatizando o caráter liberal do pensamento ricardiano:
Ricardo previa a ocorrência de um “estado estacionário”, resultante do crescimento populacional e responsável pelo cultivo de terras cada vez menos férteis. Ao chegar a determinado limite, o lucro seria tão baixo que a acumulação de capital simplesmente cessaria, prejudicando o desenvolvimento econômico. Para adiar esse “estado estacionário”, seria necessária a aplicação de um programa econômico liberal.
A lei de ferro dos salários
O mesmo pessimismo subjacente à concepção do “estado estacionário” pode ser observado na forma como Ricardo – novamente influenciado por Malthus – enxerga a tendência permanente de queda nos salários. Reproduzindo Galbraith:
Da mesma forma que seu amigo [Malthus], David Ricardo previa um contínuo aumento da população, e a população de Malthus tornou-se o operariado de Ricardo. Entre os operários haveria tamanha concorrência na procura de emprego ou trabalho, de um lado, e de comida, de outro lado, que tudo ficaria reduzido a um simples processo de subsistência. Era o destino da humanidade.
Numa “sociedade em evolução”, tal fato poderia ser adiado e, como um momento de reflexão sugerirá, na Inglaterra do século XIX, essa era uma restrição importante. Mas as restrições de Ricardo nunca alcançaram as suas generalizações majestosas. No mundo ricardiano, os trabalhadores receberiam o mínimo necessário à subsistência, nada mais do que isso. Era a chamada lei de ferro e fogo dos salários.
Essa tendência, de acordo com Marx, será mantida e até agravada em razão do contínuo progresso tecnológico e do contingente de trabalhadores desempregados por ele gerado. Denominado exército industrial de reserva, constitui-se num fenômeno inerente e absolutamente necessário à própria produção capitalista.
Teoria do valor
Mesmo os mais ferrenhos defensores das idéias de Adam Smith admitem que, na análise do valor, o grande economista escocês apresentou uma teoria caracterizada por ambigüidades. A teoria do valor-trabalho, resgatada mais tarde por Marx, quando se torna o ponto de partida da teoria da exploração (mais-valia), supõe que em toda e qualquer troca de mercadorias tende a haver uma troca de quantidades iguais de trabalho, utilizado na sua produção. Sendo assim, como explica Paul Singer, “um maço de cigarros vale vinte caixas de fósforos, porque o tempo de trabalho necessário à produção do primeiro seria vinte vezes maior do que aquele utilizado para produzir a segunda”.
Foi essa teoria do valor (e não a ambígua teoria de Adam Smith) que se consagrou como a teoria clássica do valor, cuja influência na teoria econômica foi absoluta até a segunda metade do século XIX, quando ocorre a chamada revolução marginalista defendendo a tese de que o valor de uma mercadoria não depende das horas de trabalho necessárias à sua produção – uma medida objetiva –, mas sim do grau de satisfação que essa mercadoria é capaz de proporcionar para o consumidor – uma medida subjetiva. Desde então, essas duas concepções teóricas têm ocupado espaço destacado na arena do debate teórico da economia.
A teoria das vantagens comparativas
Adam Smith havia desenvolvido a teoria das vantagens absolutas para explicar o funcionamento do comércio internacional. Em contraposição, Ricardo formulou a teoria das vantagens comparativas (ou dos custos comparativos), segundo a qual cada país tende a se especializar nos ramos em que tem maiores vantagens, isto é, em que seus custos de produção são menores do que os de seus concorrentes. Com isso, procurou demonstrar, como bem observa Paulo Sandroni, “a vantagem de um país importar determinados produtos, mesmo que pudesse produzi-los por preço inferior, desde que sua vantagem, em comparação com outros produtos, fosse ainda maior”.
Encerro essa breve análise da teoria das vantagens comparativas transcrevendo um interessante comentário de Todd Buchholz, no delicioso Novas idéias de economistas mortos:
Embora as teorias de Ricardo sejam ensinadas pelo mundo todo, são as nações européias da década de 1990 que melhor testarão o legado de Ricardo. Se elas cumprirem o seu compromisso de 1992 de derrubar todas as barreiras comerciais remanescentes entre elas, Ricardo conseguirá uma vitória parcial. Para uma vitória completa, os países do Mercado Comum devem também manter o seu segundo compromisso – não erguer fortalezas no seu litoral que impediriam países tais como os Estados Unidos e o Japão [e os países da América Latina] de participar do seu dinâmico programa de prosperidade. Até aqui os resultados estão misturados. Durante a última metade da década de 1980, enquanto o comércio dentro do Mercado Comum deu um salto de 15%, o comércio com os países não-membros caiu em cerca de 10%. Ricardo ficaria desapontado, mas esperançoso.
Princípios de economia política e tributação
Escrevendo seu livro mais importante já no primeiro quartel do século XIX, Ricardo não vive mais o clima cultural da ordem natural, pregado pelos fisiocratas, por Smith e por Say.
Não é fácil entender o pensamento econômico de Ricardo. Seu livro Princípios de Economia política e tributação, de 1817, apresenta uma série de dificuldades: 1o) Por se tratar de um livro cujo conteúdo faz uma crítica à Riqueza das nações, de Smith; 2o) Porque diversos capítulos aparecem sem conexão uns com os outros, o que faz pressupor tratar-se de um livro feito “à prestação”, ou seja, à medida que Ricardo vai sentindo necessidade de aprofundar determinados assuntos, vai acrescentando capítulos novos. Em função dessa dificuldade, a leitura de seu livro conduz muitas vezes os leitores a duas conclusões de prismas diferentes. Uns pensam que a linha básica da obra consiste em mostrar que a teoria do valor-trabalho explica todos os fatos econômicos, já que esse fator é o mais elementar, do qual os outros parecem derivar e, assim, o sistema de Ricardo seria a explicação de como o fator trabalho subentende todos os outros fatores como seu princípio organizador. Para outros, a linha básica da obra consiste em mostrar quais as leis que determinam a distribuição da renda entre as classes sociais e sua relação com as circunstâncias gerais da sociedade. As duas problemáticas acima se encontram presentes, a bem da verdade, do princípio ao fim do pensamento ricardiano. Ocorre, porém, que para percebê-lo parece necessário que se confronte sua obra com A riqueza das nações de Adam Smith. Isto porque, contendo seu livro uma série de críticas à Riqueza, é preciso ter em mente a estrutura do livro criticado para perceber o alcance do pensamento de Ricardo. Por esse ponto de vista – ainda que isto não esteja especificado em seu livro – o seu pensamento deve obedecer ao seguinte plano:
A. Enfoque sobre o capital em vez do trabalho como causa principal da riqueza das nações;
B. Obstáculos ao crescimento das nações: a renda diferenciada e o trabalho;
C. Medidas para superar os obstáculos;
D. O papel do Estado no direcionamento do capital e desobstrução dos obstáculos.
Nessa seqüência fica mais fácil entender como Ricardo, através de sua teoria econômica, põe à prova a harmonia do racionalismo.
De fato, ao se aceitar a teoria da renda de Ricardo, tornam-se discutíveis tanto a ordem natural dos fisiocratas, como a harmonia entre os interesses privados e o geral. Assim, não haveria harmonia, mas conflito. Aliás, na época em que seu grande livro foi publicado, o problema preponderante era o conflito entre os interesses da indústria e da agricultura, razão pela qual em sua obra Ricardo ia em auxílio à tese industrialista, em prejuízo daquela defendida pelos proprietários rurais.
Com base nisso, pode-se afirmar que Ricardo concordava com Smith quanto ao conceito de riqueza nacional: “o montante de bens e serviços à disposição dos consumidores” (quanto maior esse montante, maior a riqueza).
Ricardo, no entanto, não vê o crescimento dessa riqueza como algo retilíneo e sem conflitos como imaginava Smith. Para ele, esse crescimento não era retilíneo, mas sim passível de obstrução. Ricardo procura mostrar que a causa principal do crescimento da riqueza das nações é a acumulação de capital. Essa acumulação, por sua vez, vai depender da taxa de juros, pois, segundo Ricardo, tanto os agricultores como os industriais são, antes de tudo, investidores, e, como tal, não podem viver sem lucros, da mesma forma que os trabalhadores não vivem sem salários. O motivo que os leva a acumular diminui com a redução do lucro e cessará por completo quando seus lucros forem tão pequenos a ponto de não lhes garantir uma compensação adequada pelo esforço e risco que devem necessariamente correr pelo emprego do seu capital numa atividade produtiva. O empresário estará, por conseguinte, desviando-se constantemente de uma para outra atividade, procurando sempre melhor rentabilidade pelo emprego do capital.
Referências e indicações bibliográficas
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Referências e indicações webgráficas
http://www.eumed.net/cursecon/economistas/ricardo.htm.
http://cepa.newschool.edu/het/.
http://pt.wikipedia.org/wiki/David_Ricardo.
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