Interpretações do Brasil VIII

 

Desenvolvimentistas X ???

 

“Quando nos deparamos com um “desenvolvimentista” –

geralmente, um ignorante em economia especializado em

tagarelar sobre assuntos econômicos –, o melhor que

podemos lhe dizer é que procure um pediatra, porque o

“desenvolvimentismo” é, sem dúvida, uma doença

infantil. É a catapora da América Latina.”

Ubiratan Iorio 

 

O amigo internauta pode estar estranhando o título do presente artigo. Ocorre que não é fácil saber a quem os autointitulados desenvolvimentistas se opõem, uma vez que aparentemente, suas críticas dirigem-se a todos os que procuram fazer a defesa de uma política econômica caracterizada pelo equilíbrio fiscal e monetário.

O termo “desenvolvimentistas” ganhou espaço e sua relação de integrantes ganhou adeptos com a disseminação das teses dirigistas depois de dois fortes abalos sofridos pela economia capitalista: a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial. Segundo o Prof. Deepak Lal, professor de Economia Política do University College, de Londres, os desenvolvimentistas partem da idéia de que os princípios da economia neoclássica tradicional têm pouca validade no Terceiro Mundo, o que dá origem à busca de uma nova teoria econômica “heterodoxa”, especialmente aplicável nessa região. Existe, portanto, uma clara afinidade entre heterodoxos e desenvolvimentistas.

No Brasil, em particular, os desenvolvimentistas ganharam espaço nos últimos 25 anos, nos quais a economia brasileira não conseguiu repetir os mesmos expressivos índices de crescimento observados nas décadas precedentes, quando foi considerada pelo respeitado Prof. Angus Maddison como a economia de melhor desempenho, numa amostra que englobava cinco países desenvolvidos – Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França e Japão – e cinco não desenvolvidos – Rússia, China, Índia, México e Brasil – no período compreendido entre 1870 e 1970.

Para os chamados desenvolvimentistas, a obtenção de altas taxas de crescimento econômico e, subseqüentemente, de desenvolvimento, é uma questão de voluntarismo: basta querer, que é fácil de se atingir.

Convenhamos, uma enorme bobagem. Parecem esquecer que a economia possui restrições impostas pela própria escassez relativa dos chamados fatores de produção, além de ser constituída não só de variáveis controláveis, mas também de não controláveis, sobre as quais, evidentemente, nenhum condutor de política econômica, por mais boa vontade que tenha, possui domínio ou capacidade de administrar plenamente. Além disso, parecem imaginar que são monopolistas do desejo de ver seu país crescer e que os defensores de políticas monetárias e fiscais equilibradas são todos antipatriotas, que torcem pelo fracasso de seus respectivos países.

O Prof. Ubiratan Iório, da UERJ, foi bastante incisivo num comentário a esse respeito, em artigo publicado pelo Jornal do Brasil (23.01.2006). Afirma ele:

Sempre que leio ou ouço alguém proclamar-se um “desenvolvimentista”, ou afirmar que o economista Fulano ou o presidente Beltrano também é ou o foi, a reação é de tristeza. Sim, porque se a estultice, mesmo quando aparentemente revestida de boas intenções, entristece, quando se torna endêmica, entristece muito mais. Ora bolas, desenvolvimentistas todos somos, ou o leitor conhece quem vibre com o atraso do país, que sinta prazer em ver altos índices de desemprego ou que estoure de felicidade quando observa o que o Brasil poderia ser e o que efetivamente é – a não ser o PT, quando era oposição? Declarar-se “desenvolvimentista”, portanto, é uma redundância gramatical, um pleonasmo!

Quem também foi muito feliz ao examinar a postura voluntarista dos desenvolvimentistas foi o ex-ministro Maílson da Nóbrega. Com a experiência de quem já teve a responsabilidade de ocupar o cargo de ministro da Fazenda, numa das épocas mais difíceis de nosso passado recente, afirma:

Existem duas visões enraizadas nas elites sobre o desenvolvimento. A primeira é a de que o desenvolvimento pode, caso se deseje, ser gerado pela ação do Estado. A segunda é a de que o Ministério da Fazenda e o Banco Central, ao se fixarem na questão da estabilidade, estariam contra o desenvolvimento e seriam insensíveis às necessidades de criação de empregos.

As duas visões, a rigor, estão completamente equivocadas.

A primeira, por ter uma noção tão romântica como insensata sobre a real capacidade do Estado em promover o desenvolvimento. Repleta de saudosistas que adorariam a volta de políticas decrépitas mas favoráveis a seus interesses pontuais, essa visão foi magistralmente descrita por Rogério Werneck em O Estado de S. Paulo (28.05.1999):

O que parece permear o “desenvolvimentismo” é uma visão arraigada, extremamente cara a uma parte ponderável de nossas elites […] a visão de que o desenvolvimento econômico é apenas uma questão de vontade, descortino e ousadia na mobilização de potentes instrumentos de intervenção de que dispõe o Estado.

A segunda, por sua vez, parte de uma noção, também equivocada, da importância da estabilidade econômica e dos papéis do Ministério da Fazenda e do Banco Central. Como bem observa, uma vez mais, Maílson da Nóbrega:

A idéia de que o Ministério da Fazenda e o Banco Central não sabem pensar em outra coisa além da estabilidade também está vinculada a visões antigas do papel que exerceram no desenvolvimento. Por isso, no seu esforço para evitar a volta da inflação, recebem nomes que parecem desprezíveis aos olhos dos críticos, como os de “monetaristas” e “fiscalistas”. É como de seus titulares possuíssem uma visão impatriótica e até mesmo mórbida sobre a necessidade de promover o desenvolvimento.

Evidentemente, muitos dos autodenominados “desenvolvimentistas” jamais tiveram sobre seus ombros a responsabilidade de conduzir os destinos da economia de seus respectivos países, tendo que administrar recursos escassos, eleger prioridades o tempo todo, equilibrando necessidades de curto, médio e longo prazos. Alguns, no entanto, tiveram oportunidade de ocupar cargos de primeiro e segundo escalão na estrutura governamental. E, nos períodos em que lá estiveram, nem conseguiram promover o crescimento expressivo do País, nem fazer com que a inflação retornasse, consistentemente, a padrões considerados civilizados, como procurei lembrar em artigo recente nestas mesmas Iscas Intelectuais, intitulado Memória curta – Inflação pra ninguém botar defeito. Porém, criticar é muito mais fácil do que construir e realizar!

Diante disso, e na iminência de um novo mandato do presidente Lula, é bom relembrar os ensinamentos de Maílson da Nóbrega a respeito dos papéis dos principais órgãos da área econômica:

Em qualquer país sério, o Ministério da Fazenda cuida das finanças do Tesouro Nacional e o Banco Central zela pela estabilidade da moeda e do sistema financeiro. Políticas fiscais prudentes e moeda estável formam o ambiente para que as forças do desenvolvimento atuem na geração de crescimento e do bem-estar. Mesmo quando o Estado exerce um papel saliente, como o de apoio à agricultura e ao desenvolvimento tecnológico, as respectivas ações têm curso em outras áreas do governo e obedecem ao princípio da restrição orçamentária. Gasta-se o que está no Orçamento.

Em reforço a esses ensinamentos de Maílson da Nóbrega, acredito ser importante acrescentar algumas observações feitas por Martin Wassel no prefácio do livro A pobreza das teorias desenvolvimentistas, de Deepak Lal:

Duas lições sobre como não se desenvolver (grifo meu) emergem claramente da análise do Sr. Lal. Em primeiro lugar , exemplos de “falhas do mercado” não justificam, por si só, a intervenção governamental; existe também a “falha burocrática”, que pode tornar as coisas piores; e quando se trata de países pobres com uma oferta muito limitada de mão-de-obra treinada para assumir os comandos da economia, há maior probabilidade de ocorrer a falha burocrática. Em segundo lugar, a linhagem keynesiana das teorias das teorias desenvolvimentistas, com sua preocupação macroeconômica  com grandes agregados, desviou a atenção do papel microeconômico do mecanismo de preços ma promoção de uma utilização eficiente de recursos escassos. Se algum conselho de política pode ser tirado sem erro da experiência de desenvolvimento das últimas décadas, esse conselho é: “Não se engane nos preços!” Quase todos os desastres originaram-se do recurso generalizado à administração “política” de preços, principalmente através da manutenção artificial de taxas de câmbio demasiadamente altas, e de preços (especialmente de produtos agrícolas) demasiadamente baixos, racionando o crédito a taxas de juros reais negativas, e sujeitando as importações de artigos de luxo a tarifas proibitivamente altas.

Considero de suma importância tais considerações no dia imediatamente posterior ao da vitória de Lula no segundo turno da eleição presidencial. No calor da vitória, os discursos, tanto do presidente como o de seus principais assessores, deram ênfase à idéia de que o segundo mandato será marcado pelo elevado crescimento econômico, por juros mais baixos e por uma taxa de câmbio que espelhe um real menos valorizado. Desejo, sinceramente, mesmo tendo votado em Geraldo Alckmin, que esses objetivos sejam alcançados de forma responsável e consistente, e não por mero voluntarismo, a fim de que os brasileiros, em especial os menos favorecidos, não voltem a viver o inferno da inflação, situação em que são os principais prejudicados.

Sejam lá quais forem os ocupantes do Ministério da Fazenda e do BC neste segundo mandato, espero que tenham sempre em mente que o desenvolvimento não é simplesmente uma questão de querer ou não querer. E que se lembrem também de que cabe ao Ministério da Fazenda e ao Banco Central fazer exatamente o que têm procurado fazer nos últimos anos: cuidar das finanças do Tesouro, da estabilidade da moeda e da representação do país nos foros multilaterais. Sem dar ouvidos àqueles que, sem ter a responsabilidade de “tocar” o País, menosprezam tais atividades.

Concluo citando, pela última vez, as palavras de Maílson da Nóbrega, com a certeza de que a elas fazem eco as vozes de quase todos os que exerceram, com responsabilidade, cargos de primeiro escalão da área econômica:

Muitos acham que é pouco [cuidar das finanças do Tesouro, da estabilidade da moeda e da representação do país nos foros multinacionais] e sob o pretexto do “desenvolvimento” julgam-se no direito de criticá-los porque pensam apenas nessas responsabilidades. Em outras palavras, gostariam de uma volta ao passado que já se imaginava enterrado. O risco que o país corre é de essa corrente conseguir a marcha à ré.

 

 

 

 

 

 

Referências e indicações bibliográficas

CRESCIMENTO sustentado no Brasil: 18 contribuições ao pensamento econômico. O Economista. Publicação do Conselho Regional de Economia – 2ª Região – CORECON-SP, N° 197 – Especial, Dezembro de 2005.

LAL, Deepak. A pobreza das teorias desenvolvimentistas. Tradução de Ana Maria Sarda. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1987.

MADDISON, Angus. Desempenho da economia mundial desde 1870, em GALL, Norman et al. Nova era da economia mundial. São Paulo: Pioneira/Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, 1989.

MAGALHÃES, João Paulo de Almeida. Nova estratégia de desenvolvimento para o Brasil: um enfoque de longo prazo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

NÓBREGA, Maílson da. Desenvolvimentismo: o risco da marcha à ré. Em O Brasil em transformação. São Paulo: Editora Gente, 2000, pp. 148 -150.

______________ O futuro chegou: instituições e desenvolvimento no Brasil. São Paulo: Globo, 2005.

TULLOCK, Gordon, SELDON, Arthur e BRADY, Gordon L. Falhas de governo: uma introdução à teoria da escolha pública. Tradução de Roberto Fendt. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 2005.

 

Referências e indicações webgráficas

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IÓRIO DE SOUZA, Ubiratan. A doença infantil do “desenvolvimentismo”. Jornal do Brasil, 23 de janeiro de 2006, p. . Disponível em http://www.ubirataniorio.org/jb.htm.

MACHADO, Luiz Alberto. Interpretações do Brasil I – O caráter patrimonialista. Disponível em http://www.lucianopires.com.br/iscasbrasil/iscas/abre_isca.asp?cod=715.

______________ Interpretações do Brasil II – A teoria da dependência. Disponível em http://www.lucianopires.com.br/iscasbrasil/iscas/abre_isca.asp?cod=814.

______________ Interpretações do Brasil III – A corrente estruturalista. Disponível em http://www.lucianopires.com.br/iscasbrasil/iscas/abre_isca.asp?cod=899.

______________ Interpretações do Brasil IV – A hegemonia monetarista. Disponível em http://www.lucianopires.com.br/iscasbrasil/iscas/abre_isca.asp?cod=899.

______________ Interpretações do Brasil V – A visão marxista. Disponível em http://www.lucianopires.com.br/iscasbrasil/iscas/abre_isca.asp?cod=1053.

______________ Interpretações do Brasil VII – Ortodoxia X Heterodoxia. Disponível em http://www.lucianopires.com.br/iscasbrasil/iscas/abre_isca.asp?cod=1285.

______________ Memória curta – Inflação pra ninguém botar defeito. Disponível em http://www.lucianopires.com.br/iscasbrasil/iscas/abre_isca.asp?cod=939.

OLIVEIRA, Ribamar. Chega ao fim a hegemonia da PUC. Disponível em http://www.econ.puc-rio.br/gfranco/hegemonia.htm.