A busca de um DNA
Como se transformar numa cidade criativa?
“Quaisquer que sejam as antinomias que se apresentem entre as visões da história que emergem em uma sociedade, o processo de mudança social que chamamos desenvolvimento adquire certa nitidez quando o relacionamos com a ideia de criatividade.”
Celso Furtado
De 1 a 3 de agosto, Aracaju será, uma vez mais, a capital nacional da criatividade. Será realizada, nas instalações do campus Farolândia da Universidade Tiradentes, a 11ª edição do Fórum Internacional de Criatividade e Inovação, promovido pela Fundação Brasil Criativo.
Sob o título geral de As artes e manhas da criatividade, o evento reunirá especialistas nacionais e internacionais e deverá contar com a presença de um público numeroso e qualificado. Pelo menos, é isso que tem acontecido nas edições anteriores.
Luciano Pires e eu teremos oportunidade de ministrar palestras no evento. Em minha palestra, que terá o título deste artigo, procurarei abordar, de início, a evolução dos estudos e pesquisas sobre criatividade, a fim de contextualizar a economia e, por extensão, as cidades criativas.
Os estudos sobre economia criativa se constituem na quinta geração das pesquisas sobre criatividade. Tal afirmação supõe que embora existam exemplos de ações e projetos criativos desde a Antiguidade, os estudos e pesquisas só começaram a ocorrer sistematicamente a partir da metade do século XX. De lá para cá, identificam-se cinco gerações de pesquisadores.
A primeira, voltada para o “pensamento criativo”, enfatiza o desenvolvimento de habilidades (década de 1950). Essa geração não conseguiu despertar o interesse da sociedade em geral para o tema da criatividade, razão pela qual os estudos e eventuais avanços ficaram restritos aos limites dos consultórios e das clínicas de psicólogos e neurocientistas que se debruçaram sobre ele. A noção de criatividade esteve nessa fase associada à capacidade de fazer algo diferente.
A segunda, voltada para a “solução criativa de problemas”, é mais focalizada na questão da produtividade, alertando, assim, para um fato relevante para o mundo dos negócios: a criatividade pode se constituir numa importante ferramenta para a obtenção de vantagem competitiva. Para essa geração, a criatividade incorpora um fator fundamental para quem vive num ambiente competitivo, a agregação de valor. A liderança desta geração esteve concentrada em Buffalo, no norte do estado de Nova York, onde se criou uma espécie de cluster, reunindo diversos centros de pesquisa e divulgação da criatividade, sendo a Creative Education Foundation uma das mais conhecidas.
Já a terceira geração dá ênfase à ideia da autotransformação, acreditando que uma pessoa não poderá desenvolver a criatividade, mudando a maneira de ver o mundo e de fazer as coisas, se antes ela não se transformar por dentro. Para tanto, é necessário investir primeiro no autoconhecimento; depois, uma vez estando a pessoa convencida da necessidade de desenvolver a criatividade, na autotransformação. A Universidade de Santiago de Compostela, tendo à frente o Prof. David de Prado, foi uma das pioneiras dessa geração com seu curso de Master en Creatividad Aplicada Total. Tais atividades prosseguem por meio do IACAT – Instituto Avanzado de Creatividad Aplicada Total (http://www.iacat.com/), atualmente vinculado à Universidade Fernando Pessoa, na cidade do Porto.
Passada a fase da disseminação da importância da criatividade, entramos, na década de 1990, numa nova etapa. Como diz Saturnino de la Torre, “a criatividade foi considerada como uma atitude ou qualidade humana pessoal e intransferível para gerar ideias e comunicá-las, para resolver problemas, sugerir alternativas ou simplesmente ir mais além do que se havia aprendido”.
A quarta etapa é bem diferente e aponta para novos desafios. Um século depois de seu nascimento, a criatividade se reveste de um caráter mais amplo. É como se a passagem para um novo século significasse a celebração da maioridade da criatividade, que sai da vida familiar acadêmica para abrir-se à vida social, como em outro tempo o fizeram a educação, a saúde ou a defesa do meio ambiente. De acordo com de la Torre, “a criatividade como valor social é marcada por um novo espírito, esta vez envolto em problemas de convivência entre as diferentes civilizações e culturas que conformam a humanidade. É preciso para isso um tipo de criatividade menos academicista e mais estratégica e atitudinal. Uma criatividade comprometida com a busca de soluções a problemas sociais, aberta à vida, à juventude, ao cotidiano”.
A quinta e última etapa, que se desenvolveu no início deste novo século, é representada pela economia criativa e sua origem reside na habilidade, criatividade e talentos individuais que, empregados de forma estratégica, têm potencial para a criação de renda e empregos por meio da geração e exploração da propriedade intelectual (PI). Tendo como principais expoentes Richard Florida e John Howkins, a economia criativa se caracteriza, a exemplo da etapa anterior, por uma visão mais abrangente, relacionada à produção de políticas públicas e ações de interesse social, capazes de gerar um significativo volume de empregos de qualidade.
Verifica-se, portanto, uma importante mudança: até a terceira geração, os estudos e pesquisas sobre criatividade estavam mais voltados para a dimensão individual; a quarta e a quinta gerações, por sua vez, revelam uma preocupação mais ampla, marcada pela busca de soluções para questões sociais e para a formulação de políticas públicas.
Observou-se, até agora, certa controvérsia terminológica em torno dessa quinta geração de pesquisas sobre criatividade. No Reino Unido, onde surgiu com força, a expressão utilizada pelo Departamento de Cultura, Mídia e Esporteera indústrias criativas. Na Unesco, predominava a expressão economia da cultura. A expressão economia criativa, que está se consolidando como a mais adequada, tem na Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) o seu principal centro de divulgação.
No Brasil, a importância do tema também tem crescido significativamente, com o nome de economia criativa. O Ministério da Cultura, ciente da sua importância, criou a Secretaria da Economia Criativa, tendo à frente a dinâmica secretária Cláudia Leitão.
No Plano da Secretaria da Economia Criativa, divulgado em 2012, aparece a seguinte definição: “A Economia Criativa contempla as dinâmicas culturais, sociais e econômicas construídas a partir do ciclo de criação, produção, distribuição/circulação/difusão e consumo/fruição de bens e serviços oriundos dos setores criativos, cujas atividades produtivas têm como processo principal um ato criativo gerador de valor simbólico, elemento central da formação do preço, e que resulta em produção de riqueza cultural e econômica”.
Em seu planejamento estratégico, a economia criativa brasileira tem como princípios norteadores a diversidade cultural, a inovação, a sustentabilidade e a inclusão social.
Numa tentativa de síntese das diversas definições utilizadas por instituições como Unicef, Unctad, Pnud, Departamento de Cultura, Mídia e Esporte do Reino Unido e Secretaria de Economia Criativa do Ministério da Cultura do Brasil – pode-se concluir que a economia criativa pode ser considerada a essência da economia do conhecimento, onde consumidores e criadores se confundem, assim como as empresas são ao mesmo tempo provedoras e consumidoras de serviços e bens sofisticados. Consumidores mais sofisticados obrigam as empresas a se sofisticarem e, ao fazê-lo, as empresas geram empregos e renda que estimulam novas demandas.
Dotada de grande abrangência, a economia criativa envolve os segmentos de: arquitetura e design; artes performáticas; cinema, rádio e televisão; cultura, turismo, esporte e entretenimento; moda; propaganda e publicidade; editoração; mercado de artes, antiguidade e artesanato; software de lazer e jogos de computador.
Em termos de impacto da economia criativa, dois aspectos merecem especial destaque.
O primeiro diz respeito ao fato de que a economia criativa se insere adequadamente num mundo que deve se preocupar permanentemente com a questão climática, uma vez que ela promove o desenvolvimento sustentável e humano (que engloba aspectos quantitativos e qualitativos) e não mero crescimento econômico (que engloba apenas aspectos quantitativos). Tal diferença, destacada pelos teóricos do desenvolvimento a partir das últimas décadas do século XX, nem sempre é percebida pela maioria das pessoas.
O segundo aspecto, também revolucionário para a teoria econômica, está relacionado com a ideia de escassez, um fator relevante em toda a evolução da análise econômica. Uma vez que cultura, criatividade e conhecimento (matérias-primas da economia criativa) são os únicos recursos que não se esgotam, mas se renovam e multiplicam com o uso, são estratégicos para a sustentabilidade do planeta, de nossa espécie e, consequentemente, das empresas também.
Consequência natural do aprofundamento dos estudos sobre economia criativa foi o surgimento de localidades consideradas criativas. Essas localidades podem ser uma rua, um bairro, uma cidade ou uma região determinada.
O que caracteriza cada uma dessas localidades é a existência de uma singularidade ou de um conjunto de singularidades que as diferenciam. É como se constituíssem numa espécie de DNA. Em algumas localidades, essa singularidade está ligada à sua própria história, como é o caso da Vila de Óbidos, em Portugal, que tive recentemente a oportunidade de visitar. Em outras, essa singularidade decorre de transformações do espaço urbano, com o reaproveitamento de áreas degradadas, como é o caso, por exemplo, de Puerto Madero, em Buenos Aires, ou da Estação das Docas, em Belém do Pará.
Se algumas localidades se beneficiam de suas atrações naturais, sobre as quais procuram fortalecer equipamentos e atividades culturais e criativas, outras, não dispondo de maiores atrativos naturais, são obrigadas a realizarem uma série de ações com o objetivo de também serem identificadas como criativas, o que supõe investimento considerável não só na construção de espaços e instalações ou equipamentos, mas também na realização de eventos esportivos, culturais e artísticos, além da promoção de feiras, exposições e congressos de setores bastante diversificados.
Seguem-se alguns exemplos de cidades criativas, tanto brasileiras quanto estrangeiras, destacando a(s) singularidade(s) que lhes conferem essa condição:
- Campina Grande (PB) e Caruaru (PE) – Festas Juninas
- Parintins (AM) – Festa do Boi
- Belém (PA) – Estação das Docas e Círio de Nazaré
- São Paulo (SP) – Multidiversidade
- Orlando (EUA) – Parques Temáticos
- Las Vegas (EUA) – Cassinos e Entretenimento
- Los Angeles (EUA) – Cinema, Convenções e Exposições
- Denver (EUA) – Aeroporto (Aerotrópole)
- Capadócia (Turquia) – Formações Rochosas e Passeios de Balão
- Óbidos (Portugal) – Turismo e Eventos Culturais
- Paris (França) – Multidiversidade
Entre os desafios ao desenvolvimento das cidades criativas acredito que dois dos mais relevantes sejam:
1º) Como transformar uma atração pontual ou momentânea numa atração permanente? Em diversas localidades, esse desafio tem sido superado pela via do agrupamento de eventos num determinado período, pela concentração de diversas empresas ou instituições de uma mesma cadeia produtiva (conhecida como clusters ou arranjos produtivos locais) ou pela multiplicação de equipamentos e eventos culturais e criativos.
2º) Identificar os setores capazes de ter um maior efeito multiplicador em termos de geração de emprego e renda e criar políticas específicas de financiamento.
Como ainda restam alguns dias até o início do evento, fica o convite ao amigo internauta interessado no tema. Detalhes sobre a programação podem ser obtidos no site www.fbcriativo.org.br.
Aos que atenderem ao convite, uma certeza: além dos conhecimentos e dos relacionamentos propiciados pelo XI Fórum Internacional de Criatividade e Inovação, quem for a Aracaju poderá desfrutar das atrações de uma das capitais do nordeste que mais evoluíram nos últimos anos.
Referências e indicações bibliográficas
A ECONOMIA Criativa. Gerente de Cidade, nº 56, ano 14, out/nov/dez de 2010, pp. 20 – 35.
FLORIDA, Richard. La clase creativa: la transformación de la cultura del trabajo y el ocio en el siglo XXI. Traducción de Montserrat Asensio. Barcelona: Paidós, 2010.
_______________ O grande recomeço: as mudanças no estilo de vida e de trabalhos que podem levar à prosperidade pós-crise. Tradução de Maria Lucia de Oliveira. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
GOLDENSTEIN, Lídia. O desafio da economia criativa. Digesto Econômico LXV: 458 (maio 2010).
HOWKINS, John. The creative economy: how people make money from ideas.London: Penguin UK, 2001.
PLANO da Secretaria da Economia Criativa: políticas, diretrizes e ações, 2011 – 2014. Brasília: Ministério da Cultura, 2012.
REIS, Ana Carla Fonseca. Economia da cultura e desenvolvimento sustentável: o caleidoscópio da cultura. Barueri, SP: Manole, 2007.
REIS, Ana Carla Fonseca e KAGEYAMA, Peter (organizadores). Cidades criativas: perspectivas. São Paulo: Garimpo de Soluções, 2011.
UNITED Nations. Creative Economy: A Feasible Development Option. Creative Economy Report 2010. Geneva/New York: UNCTAD/UNDP, 2010.
VIVANT, Elsa. O que é uma cidade criativa? Tradução de Camila Fialho. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2012.
Referências e indicações bibliográficas
MACHADO, Luiz Alberto. Entendendo a economia – Desenvolvimento X Crescimento econômico. Disponível em www.lucianopires.com.br/idealbb/view.asp?topicID=3629.
_______________ Economia Criativa IV – Cidades criativas. Disponível emhttp://www.portalcafebrasil.com.br/iscas-intelectuais/ciencia-e-tecnologia/economicas/economias-criativas-iv-cidades-criativas.
_______________ Crise, criatividade e recomeço – Leitura criativa. Disponível em http://www.portalcafebrasil.com.br/iscas-intelectuais/ciencia-e-tecnologia/economicas/crise-criatividade-e-recomeco.
_______________ Capital Brasileira da Criatividade – Criatividade e inovação. Disponível em http://www.fbcriativo.org.br/fbcriativo/interna.wsp?tmp_page=interna&tmp_secao=4&tmp_codigo=874.
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