Economia criativa I

 

Guinada para o social

 

“O desafio não é só encorajar as indústrias criativas, é

encorajar todas as indústrias a se tornarem criativas.”

Lídia Goldenstein

 

O presidente George Bush fez uma afirmação às vésperas do início da década de 1990 que se mostrou extremamente acertada. Disse ele: “A década de 90 será a década do cérebro”.

A década de 90, última do século XX, foi chamada por muitos analistas de “década do cérebro”, ou de “década do conhecimento”, ou ainda de “década da inteligência”. Houve também quem a chamasse de “década da criatividade”. A rigor, todos estão certos, uma vez que há estreita relação entre todas essas denominações. O importante a se destacar de tudo isso é que ao chegar ao fim do século XX o homem havia se dado conta, definitivamente, da importância da criatividade para melhorar o seu próprio desempenho e, por extensão, da sociedade de uma forma geral.

O primeiro passo para tal consistiu em saber como funciona o nosso cérebro. Afinal, foi aí que tudo teve origem. O final do século XX viu o conhecimento sobre o cérebro humano deixar de ser assunto de um reduzido bando de especialistas para se transformar num assunto de interesse muito mais amplo, a ponto de se tornar matéria de capa das revistas de maior circulação no Brasil.

Conhecendo melhor o funcionamento do cérebro, foi possível ampliar o conhecimento sobre a criatividade e, com isso, diversos tabus foram caindo:

1º) A criatividade não é um dom natural, com o qual algumas pessoas nascem e outras não Þ Todos nós possuímos um potencial criativo a ser desenvolvido, independentemente da personalidade de cada um.

2º) Criatividade não pode ser confundida com magia Þ Isso implicaria em que as pessoas criativas seriam conhecedoras de algum truque ou algo do gênero, inacessível às pessoas comuns.

3º) Criatividade também não é mistério Þ Portanto, nada de imaginar que a fonte da criatividade seja algo misterioso ou secreto.

4º) Criatividade não significa loucura Þ As pessoas criativas não precisam ser ou aparentar ser loucas ou excêntricas.

O estudo da criatividade, porém, não começou apenas no fim do século passado.  Apesar de muitos estranharem, a criatividade vem sendo objeto de estudo desde 1900, quando o francês Theódulo Ribot publicou o livro A imaginação criadora, com noções embrionárias de pessoa e processos criativos. Meio século se passou sob a denominação de “imaginação”, acompanhada muitas vezes do qualificativo “criadora”, até que em 1950 Guilford a batiza com o nome de Criatividade.

De lá para cá, as pesquisas se intensificaram, podendo-se falar na existência de cinco gerações de pesquisadores. A primeira, voltada para o “pensamento criativo”, enfatizava o desenvolvimento de habilidades (anos 50). Essa geração não conseguiu despertar o interesse da sociedade em geral para o tema da criatividade, razão pela qual os estudos e eventuais avanços ficaram restritos aos limites dos consultórios e das clínicas de psicólogos e neurocientistas que se debruçaram sobre ele. A noção de criatividade esteve nessa fase associada à capacidade de fazer algo diferente. Diversas definições surgiram, sendo a que mais me agrada a de Charles ‘Chic’ Thompson, “a capacidade de olhar a mesma coisa que todos os outros, mas ver algodiferente nela”.

A segunda, voltada para a “solução criativa de problemas”, dava ênfase à produtividade, alertando, assim, para um fato relevante para o mundo dos negócios: a criatividade pode se constituir numa importante ferramenta para a obtenção de vantagem competitiva. Para essa geração, a criatividade incorpora um fator fundamental para quem vive num ambiente competitivo, a agregação de valor. A liderança desta geração esteve concentrada em Buffalo, no norte do estado de Nova York, onde se criou uma espécie de cluster, reunindo diversos centros de pesquisa e divulgação da criatividade, sendo a Creative Education Foundation uma das mais conhecidas.

Já a terceira geração dá ênfase à ideia da autotransformação, acreditando que uma pessoa não poderá desenvolver a criatividade, mudando a maneira de ver o mundo e de fazer as coisas, se antes ela não se transformar por dentro. Para tanto, é necessário investir primeiro no autoconhecimento; depois, uma vez estando a pessoa convencida da necessidade de desenvolver a criatividade, na autotransformação. A Universidade de Santiago de Compostela, tendo à frente o Prof. David de Prado, foi uma das pioneiras dessa geração com seus programas de mestrado e doutorado em Creatividad Aplicada Total.

Passada a fase da disseminação da importância da criatividade, entramos, na década de 1990, numa nova etapa. Como diz Saturnino de la Torre, “a criatividade foi considerada como uma atitude ou qualidade humana pessoal e intransferível para gerar ideias e comunicá-las, para resolver problemas, sugerir alternativas ou simplesmente ir mais além do que se havia aprendido”.

A quarta etapa é bem diferente e aponta para novos desafios. Um século depois de seu nascimento, a criatividade se reveste de um caráter mais amplo. É como se a passagem para um novo século significasse a celebração da maioridade da criatividade, que sai da vida familiar acadêmica para abrir-se à vida social, como em outro tempo o fizeram a educação, a saúde ou a defesa do meio ambiente. De acordo com de la Torre, “a criatividade como valor social é marcada por um novo espírito, esta vez envolto em problemas de convivência entre as diferentes civilizações e culturas que conformam a humanidade. É preciso para isso um tipo de criatividade menos academicista e mais estratégica e atitudinal. Uma criatividade comprometida com a busca de soluções a problemas sociais, aberta à vida, à juventude, ao cotidiano”.

A quinta e última etapa, que se desenvolveu no início deste novo século, é representada pela economia criativa e sua origem reside na habilidade, criatividade e talentos individuais que, empregados de forma estratégica, têm potencial para a criação de renda e empregos por meio da geração e exploração da propriedade intelectual (PI). Tendo como principais expoentes Richard Florida e John Howkins e a UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) como uma de suas mais importantes divulgadoras, a economia criativa se caracteriza, a exemplo da etapa anterior, por uma visão mais abrangente, relacionada à produção de políticas públicas e ações de interesse social, capazes de gerar um significativo volume de empregos de qualidade.

Verifica-se, portanto, uma importante mudança: até a terceira geração, os estudos e pesquisas sobre criatividade estavam mais voltados para a dimensão individual; a quarta e a quinta gerações, por sua vez, revelam uma preocupação mais ampla, marcada pela busca de soluções para questões sociais e para a formulação de políticas públicas.

Os próximos artigos focalizarão as principais definições da economia criativa, seu caráter estratégico, os impactos que ela poderá provocar tanto no plano teórico como no plano real, bem como seus principais desafios. Por fim, serão apresentados exemplos de cidades que se destacam pela exploração adequada das diferentes áreas abrangidas pela economia criativa.

 

 

Referências e indicações bibliográficas

A ECONOMIA Criativa. Gerente de Cidade, nº 56, ano 14, out/nov/dez de 2010, pp. 20 – 35.

ALENCAR, Eunice M. L. Soriano de e FLEITH, Denise de Souza. Criatividade: múltiplas perspectivas. 3ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003.

FLORIDA, Richard. La clase creativa. Buenos Aires: Paidós, 2010.

GOLDENSTEIN, Lídia. O desafio da economia criativa. Digesto Econômico LXV: 458 (maio 2010).

HOWKINS, John. The creative economy: how people make money from ideas.London: Penguin UK, 2001.

MORAES, Maria Cândida e TORRE, Saturnino de la. Sentipensar: fundamentos e estratégias para reencantar a educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

REIS, Ana Carla Fonseca. Economia da cultura e desenvolvimento sustentável: o caleidoscópio da cultura. Barueri, SP: Manole, 2007.

Thompson, Charles “Chic”. Grande idéia! São Paulo: Saraiva, 1993.

TORRE, Saturnino de la. Creatividad plural: sendas para indagar sus múltiples perspectivas. Barcelona: PPU, 1993.

_______________ Dialogando com a criatividade. São Paulo: Madras, 2005.

UNITED Nations. Creative Economy: A Feasible Development Option. Creative Economy Report 2010. Geneva/New York: UNCTAD/UNDP, 2010.

Referências e indicações webgráficas

 

MACHADO, Luiz Alberto. O espaço cada vez maior da criatividade. Disponível em http://www.lucianopires.com.br/idealbb/pview.asp?topicID=3615&pageNo=1&num=20

PRADO, David de. Los valores universales de la creatividad. Construyendo valores sociopersonales con imaginación. Recrearte nº 7, julho de 2007. Disponível em http://www.iacat.com/Revista/recrearte/recrearte07/Seccion1/1.%20LOS%20VALORES%20UNIVERSALES%20DE%20LA%20CREATIVIDAD.pdf.