Impressões da China (3)
Contradições e desafios
“Eles são muitos e
existem há muito tempo.”
Cláudia Trevisan
Evidentemente não seria possível descrever todas as contradições observadas na passagem pela China, assim como seus principais desafios, num artigo com as características dos que são publicados nestas Iscas Intelectuais. Ainda assim, gostaria de me referir a algumas contradições e alguns desafios que me pareceram mais flagrantes, esperando com isso estimular a reflexão e, quem sabe, o debate entre os amigos internautas.
Começo pela economia, onde uma das maiores contradições encontra-se na crescente desigualdade de renda, o que se afigura como um enorme contrasenso considerando que a China é governada pelo Partido Comunista, cuja doutrina tem na igualdade um de seus mais fortes princípios. Por mais que os dirigentes do Partido procurem justificar a crescente desigualdade com o argumento de que é temporária e que no futuro todos ostentarão um mesmo e elevado padrão de vida, fica muito difícil de acreditar. E, convenhamos, a história não parece estar a favor dos autores dessa previsão.
Quando falo em crescente desigualdade de renda, não me refiro apenas à notória e bastante propagada diferença entre os que vivem nas cidades e nos campos, onde o nível de vida permanece baixíssimo, com milhões de pessoas vivendo na mais completa miséria. Refiro-me, também, à diferença que se observa entre as cidades mais diretamente beneficiadas pela abertura econômica e pelo intenso comércio exterior, conhecidas como Zonas Econômicas Especiais. Nelas, as oportunidades de enriquecimento são incomparavelmente maiores do que as observadas nas demais cidades chinesas, o que provoca, naturalmente, um acentuado processo de concentração de renda.
Por fim, ainda tratando da questão das desigualdades, percebe-se clara distinção entre as condições da maioria han (etnia a que pertencem 92% dos chineses, aproximadamente 1,2 bilhão de pessoas) e as outras 55 etnias que compõem a população do país. Tais desigualdades têm provocado freqüentes revoltas – nem todas divulgadas no exterior – como foi a dos uigures, a minoria muçulmana de língua turca da província de Xinjiang, no extremo ocidental da China, que resultou na morte de 184 pessoas e mais de mil feridos na segunda semana de julho.
Permanecendo ainda na seara econômica, mas passando para outros aspectos, vale destacar o impasse decorrente da redução do ritmo de crescimento provocado pela crise financeira internacional, assunto abordado em meu último artigo. Como foi mencionado, o governo chinês não tem opção: ele precisa retomar urgentemente a média do crescimento dos últimos trinta anos – em torno de 10% ao ano –, única forma de atender às exigências e demandas de sua enorme população. Para tanto, precisa rever, o modelo que sustentou o extraordinário crescimento recente, baseado no binômio exportações + investimentos, transformando-o, pelo menos em parte, para um modelo voltado ao consumo. Só que esse desafio é extremamente complicado, pois como a China não possui um sistema previdenciário de qualidade e os programas de aposentadoria são incipientes, a propensão a poupar é altíssima e nada indica que vá se modificar no curto prazo. E como em virtude da rígida política de um filho por família a população chinesa é uma das que envelhece mais rapidamente no mundo, esse desafio pode se transformar numa bomba num período de tempo não muito longo.
Outro problema a merecer atenção – e tirar o sono – das autoridades chinesas diz respeito à armadilha em que o país acabou se metendo ao acumular um volume extraordinariamente grande de reservas em moeda estrangeira, sendo 70% de seus ativos denominados em dólar. Com isso, qualquer queda futura no valor do dólar representaria uma grande perda da capital para a China, o que explica a recente proposta do presidente do Banco Central chinês, Zhou Xiaochuan, pedindo por uma nova moeda supranacional para as reservas internacionais, nos moldes dos Direitos Especiais de Saque (SDR, em inglês) do FMI, unidade na qual o fundo mantém suas contas.
Porém, como bem observou Paul Krugman, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2008, as coisas não são assim tão fáceis:
A proposta de Zhou corresponde na verdade a um pedido de socorro, apelando para que alguém resgate a China das consequências do seu próprio investimento equivocado. Mas isto não vai acontecer. E a busca por alguma solução mágica para o problema chinês do excesso de dólares sugere outra coisa: os líderes da China ainda não entenderam que as regras do jogo mudaram de uma maneira fundamental. Dois anos atrás, vivíamos em um mundo no qual a China podia poupar muito mais do que investia, e se livrar [nos Estados Unidos] na América do excesso das suas poupanças. Este mundo não existe mais.
Saindo da esfera econômica e passando para a esfera política, minha primeira inquietação refere-se à convivência entre um sistema econômico cada vez mais aberto e um regime político sem qualquer sinal de abertura.
Tal convivência seria praticamente impossível nos países democráticos ocidentais, nos quais a alternância no poder e o direito de escolher os representantes dos poderes Executivo e Legislativo (em alguns países, também do Judiciário) são princípios consagrados e muito valorizados por suas respectivas populações.
No caso da China, cuja história remonta a mais de 5.000 anos, grande parte da qual num Império que se notabilizou por sucessivas dinastias, é até compreensível que não exista uma grande preocupação com o direito de votar. Importa, isso sim, que as coisas andem bem, e como elas têm andado, pelo menos para a parte mais esclarecida e influente da população, os conflitos e revoltas têm ocorrido fora dos grandes centros.
Há, no entanto, alguns fatores que geram insatisfação localizada, e se o nível de crescimento próximo de 10% ao ano não for retomado, garantindo novos empregos e novas oportunidades, essa insatisfação pode se ampliar e dar muita dor de cabeça para as autoridades. Entre as fontes de insatisfação eu destacaria:
•As 55 minorias étnicas espalhadas pelo país, que correspondem a aproximadamente 112 milhões de pessoas.
• O problema não resolvido com Taiwan, que permanece como a pedra no sapato dos dirigentes do governo e do Partido Comunista da China.
•Mais da metade da população que vive na zona rural, submetida a um estilo de vida cada vez mais distante do desfrutado pelos habitantes das cidades. É bem verdade que parte considerável desse contingente sequer tem noção dessa desigualdade, já que, além de uma educação completamente direcionada, o governo exerce rígido controle dos meios de comunicação, evitando que informações que “não interessam” cheguem ao conhecimento dessas pessoas.
•O progresso acelerado cobra seu preço e, como afirma a jornalista Cláudia Trevisan, “a fúria transformadora na qual a China está mergulhada avança muitas vezes com o sacrifício do patrimônio histórico e de milhares de famílias que perderam suas casas ou terras e recebem indenizações insuficientes para comprar outra propriedade”.
Até quando será possível manter sob controle esses focos de insatisfação latente, num mundo caracterizado cada vez mais pela busca, processamento, difusão e transmissão de informações?
Por fim, resta saber como será a absorção definitiva de Hong Kong e Macau, reincorporados à China respectivamente em 1997 e 1999, mas sujeitos a um período de transição de 50 anos, em que suas populações seguem desfrutando dos direitos adquiridos ao longo do tempo. Acreditam as autoridades que até lá a China estará tão desenvolvida que as populações desses países não terão nenhum problema para se sujeitar às condições políticas vigentes.
Será?
Só o tempo poderá responder.
Referências e indicações bibliográficas
FAVARO, Thomaz. As vísceras do dragão. Veja, edição 2121, ano 42, nº 28, 15 de julho de 2009, pp. 126 – 127.
GIFFONI, Luís. China, o despertar do dragão: viagem ao milagre econômico chinês. Belo Horizonte: Editora Leitura, 2007.
HENFIL. Henfil na China: antes da coca-cola. 9ª ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1981.
KRUGMAN, Paul. A China, presa numa armadilha de dólares. O Estado de S. Paulo, 4 de abril de 2009,
p.B 4.
SORMAN, Guy. O Ano do Galo: Verdades sobre a China. Tradução de Margarita Maria Garcia Lamelo. São Paulo: É Realizações, 2007.
TREVISAN, Cláudia. China: o renascimento do império. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2006.
______________ Os chineses. São Paulo: Contexto, 2009.
Referências e indicações webgráficas
MACHADO, Luiz Alberto. O Ano do Galo – Verdades sobre a China. Disponível em http://www.lucianopires.com.br/idealbb/view.asp?topicID=7046.
______________ Impressões da China (2) – Impactos da crise e necessidade de mudança. Disponível em http://www.lucianopires.com.br/idealbb/view.asp?topicID=11736.
No Comment