Mudança de rota
Antes tarde do que nunca, mas até quando?
“Infelizmente a presidente Dilma herdou da presidente Dilma uma economia enferma, com várias moléstias, algumas em estágios avançados, que exigirão tratamentos dolorosos.”
Claudio Adilson Gonçalez
O primeiro mês do ano chegou ao final, a presidente reuniu-se pela primeira vez com seu gigantesco ministério e a sensação que se tem é de que estamos testemunhando uma mudança de rota na condução da política econômica.
O tema é, por si só, amplo, complexo e repleto de controvérsias, razão pela qual teço algumas considerações a serem compartilhadas – e comentadas/criticadas – pelos amigos internautas.
1. Mudança de rota – e de atitude
A primeira consideração é sobre a clara mudança observada não apenas na condução da política econômica, mas também na atitude dos principais responsáveis por sua condução. Depois de muito tempo empurrando as coisas com a barriga e adiando a adoção de medidas reclamadas por muitos analistas, a nova equipe econômica, capitaneada por Joaquim Levy, adotou um elenco de medidas que tem por objetivo imediato e prioritário – ainda que não isolado – produzir um ajuste fiscal que recoloque a economia nos trilhos, a fim de reconquistar, gradualmente, a confiança que havia sido obtida a duras penas e que foi violentamente abalada nos últimos anos. Nesse período, simultaneamente à queda assustadora dos principais indicadores, verificava-se uma crescente falta de transparência na governança, caracterizada pela utilização de métodos pouco convencionais de apuração das contas nacionais, o que deu origem à expressão contabilidade criativa.
Como estudioso da criatividade, sou profundo admirador de sua importância e de sua aplicação em vários campos do conhecimento e da ação, mas, definitivamente, se há um setor em que ela não deve – e não pode – ser aplicada, é exatamente na contabilidade.
No que se refere à atitude, é salutar perceber que a equipe econômica reconhece a necessidade de ajustes para corrigir uma série de erros que vinham sendo cometidos, ao invés de jogar a culpa integralmente nos efeitos da crise externa, como insistiam a presidente Dilma Rousseff e o ex-ministro Guido Mantega. Efeitos que, estranhamente não tinham as mesmas consequências em diversos de nossos vizinhos, cujos principais indicadores, em especial a taxa de crescimento, se apresentava sistematicamente superior à do Brasil.
2. Perfil do ministro da Fazenda
Graduado em Engenharia Naval pela UFRJ, Joaquim Levy fez mestrado em Economia na FGV-RJ e doutorado (PhD) também em Economia na Universidade de Chicago. Completou sua formação acadêmica, portanto, na universidade que é considerada o templo do liberalismo econômico, além de ser uma das que possui maior número de contemplados com o Prêmio Nobel de Economia a ela vinculados.
Depois de iniciar sua carreira profissional no Departamento de Engenharia e na Diretoria de Operações de uma empresa de navegação, Levy atuou como professor do curso de mestrado na FGV-RJ (1990) até ingressar nos quadros do Fundo Monetário Internacional (FMI), onde permaneceu de 1992 a 1999. Foi vice-presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Entre os anos de 1999 e 2000, na condição de economista visitante do Banco Central Europeu (BCE), exerceu atividades nas Divisões de Mercado de Capitais e de Estratégia Monetária. Ainda em 2000, no governo de Fernando Henrique Cardoso, foi nomeado secretário-adjunto de Política Econômica do Ministério da Fazenda. Em 2001, passou a ser economista-chefe do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
Em 2003, já no governo do presidente Lula, foi designado secretário do Tesouro Nacional, permanecendo nesse cargo até 2006.
De 2007 a 2010, foi secretário da Fazenda do Rio de Janeiro, no primeiro mandato de Sérgio Cabral Filho. Por fim, de junho de 2010 até os meses finais de 2014 ocupou o cargo de diretor-superintendente da Divisão de Gestão de Ativos do Bradesco (Bradesco Asset Management).
Indicado oficialmente para ministro da Fazenda pela presidente reeleita Dilma Rousseff em 27 de novembro de 2014, teve seu decreto de nomeação publicado no Diário Oficial da União em 2 de janeiro de 2015.
Trata-se, como se vê, de um profissional experiente, que exerceu funções de grande responsabilidade tanto na iniciativa privada, como no setor público e em organismos internacionais.
Amplamente respeitado por analistas e acadêmicos, é considerado de perfil conservador, em flagrante contraste com seu antecessor na Pasta. Nesse sentido, não é difícil entender a razão pela qual a indicação de seu nome agradou mais a pessoas de fora do que de dentro do Partido dos Trabalhadores.
3. Oportunidade das medidas
A adoção de um conjunto de medidas de política fiscal que envolvem, de um lado, redução de despesas (contingenciamento e cortes distribuídos pelos diversos ministérios), e, de outro, de aumento da receita (reajuste de tarifas, retomada do imposto sobre combustíveis e elevação de impostos), não é uma tarefa simples de ser colocada em prática. Além de impopulares, muitas dessas medidas foram tachadas como sendo da oposição durante a campanha eleitoral, por parte da propaganda da presidente Dilma Rousseff.
Embora eu condene tal prática, entendo que a situação é tão complicada que o eventual estelionato eleitoral torna-se secundário frente à gravidade do quadro.
Nesse sentido, sou de opinião que as medidas que vem sendo tomadas chegam no momento certo, ou seja, no início do mandato, quando o capital politico da presidente da República, já bastante abalado pela estreita margem da vitória eleitoral, é ainda suficiente para enfrentar as críticas dos que se sentem prejudicados. E são muitos.
Sobre esse aspecto, creio que vale a pena reproduzir um trecho de um artigo de Eduardo Giannetti publicado em 1998, mas ainda extremamente atual. No referido artigo, intitulado Momento exige liderança ativa, Giannetti afirma que sua visão coincide com a de Milton Friedman: “Um novo governo, com a intenção de fazer importantes mudanças em seu país, tem de seis a nove meses para fazê-lo. É o período da lua-de-mel. Passada essa fase inicial, a tirania do status quo se impõe. As forças políticas derrotadas se reagrupam. Os oponentes das novas medidas se recompõem. A partir desse ponto, pouco poderá ser feito”.
Tendo em vista que a base de apoio ao governo é bem mais reduzida no presente do que nos governos do presidente Lula e no primeiro mandato de Dilma – haja vista e derrota na eleição do presidente da Câmara –, essa lógica torna-se ainda mais evidente. Por isso, é mais do que explicável o comportamento da equipe econômica, pois seus integrantes têm convicção de que se as medidas impopulares – entre as quais o aumento de tarifas, a redução de benefícios e a elevação da taxa básica de juros – não forem adotadas agora, terão dificuldade ainda maior de serem adotadas no futuro.
4. Cenário e perspectivas
Abordei esse assunto no final do ano passado, num artigo que teve por título Desafios do segundo mandato de Dilma Rousseff. Escrito logo depois do segundo turno das eleições, em meio às especulações a respeito da composição da nova equipe ministerial e sem conhecer, obviamente, os números finais da nossa economia, sustentei a hipótese de que teríamos um 2015 “extremamente complicado”, o que ocorreria também se o vencedor da disputa eleitoral tivesse sido o candidato da oposição, Aécio Neves. Nesse caso, frisei, “Talvez o cenário sofresse algumas alterações no que se refere à expectativa dos agentes, mas o quadro não deixaria de ser complicado”.
Decorridos três meses, minha opinião não mudou. Ao que tudo indica, teremos um ano muito difícil pela frente, não só em razão da confirmação dos maus indicadores do ano passado no que se refere ao pífio crescimento econômico, à inflação próxima do teto da meta e ao elevado déficit na balança comercial, mas também por conta dos graves problemas de corrupção envolvendo a Petrobras, bem como à baixa expectativa dos agentes. Entre outras coisas, a economia depende da expectativa dos agentes. E quando essas expectativas são negativas, costuma haver uma reação em cadeia em que se destaca a retração dos investimentos. E, convenhamos, existe pouca coisa pior do que essa para uma economia, independentemente do seu tamanho.
Para agravar esse quadro, deve-se considerar que a China deverá continuar reduzindo seu ritmo de crescimento, ainda que suavemente, e os problemas políticos na Europa, no Oriente Médio, em alguns de nossos vizinhos sul-americanos (Argentina e Venezuela) e em parte da África estão longe de favorecer o desempenho econômico dessas regiões. No flanco externo, a boa notícia vem dos Estados Unidos, onde a recuperação parece cada vez mais consolidada.
Por último, mas não menos importante, temos que considerar a questão do emprego e da renda. Como observei em meu artigo de novembro de 2014, aí residia “o lado cheio do copo”. Mesmo nos momentos em que era obrigado a enfrentar muitas críticas, o governo alegava que o País se encontrava praticamente em pleno emprego, com aumento real do salário mínimo e expansão considerável da classe média. Dois anos, porém, sem crescimento econômico, deverão se refletir também nesse aspecto. Se os efeitos da estagnação não se fizeram sentir até agora – ou, se o fizeram, foi apenas em alguns setores – é porque nem tudo na economia ocorre no curto prazo. No que se refere ao emprego, o processo costuma se desencadear gradualmente, de tal forma que não está descartada a hipótese de uma considerável expansão do desemprego, que passaria a atingir um número cada vez maior de setores de atividade econômica.
Em suma, as perspectivas, sobretudo as de curto prazo, não são nada animadoras. Supondo que as medidas que estão sendo tomadas estejam no caminho certo, o recomendável é que se espere uma recuperação apenas para 2016. Se elas não estiverem corretas ou se não tiverem sustentação, o que comentarei no próximo tópico, a situação passará de difícil para crítica, sem que seja possível avaliar até onde pode ela poderá se estender.
5. Sustentação da rota
O que foi possível constatar até agora é que o ministro Joaquim Levy tem recebido pleno apoio da presidente Dilma Rousseff. Muitos se perguntam até quando irá esse apoio.Sobre isso, duas preocupações finais. A primeira: não é fácil prever a extensão desse comportamento da presidente. Como os resultados positivos, se vierem, só deverão ser sentidos a médio e longo prazos, é possível que haja forte pressão dos descontentes com a nomeação de Joaquim Levy, oriundas não apenas por segmentos da sociedade que se sentirem prejudicados pela política econômica, mas também de dentro do PT e dos partidos da base aliada, insatisfeitos com a provável reação negativa de parte considerável da população diante de uma conjuntura adversa.A segunda: pergunto-me se haverá a firmeza necessária para manter uma política econômica necessária, porém amarga, à medida que o tempo for passando e entrarmos na segunda metade do mandato e, portanto, com as eleições de 2018 se aproximando. No mesmo artigo de 1998, Giannetti recorre a Thomas Skidmore, que, no livro Brasil, de Getúlio a Castelo, relata um fenômeno muito comum nos anos [19]50: “só existe governo no Brasil durante a primeira metade do mandato presidencial – a outra metade é consumida elegendo o próximo presidente”. Os tempos mudaram, mas a prática continua a mesma, com uma única mudança decorrente da possibilidade de reeleição. Graças a ela, o próximo pode ser o(a) mesmo(a) presidente. Se essa prática não for rompida, corremos o risco de enfrentar uma situação que preocupa muita gente, entre as quais o amigo internauta Celso Zambon, que fez o seguinte comentário numa recente entrevista que concedi à TV Folha: “faltou esclarecer que após este ajuste brutal com certeza em 2017 e 2018 voltará a esbórnia para garantir o projeto de poder e corrupção do PT”.
Só com o decorrer do tempo teremos respostas para essas preocupações.
Referências
DANTAS, Fernando e NAKAGAWA, Fernando. Levy diz que não assumiu para fazer ‘remendos’ e que ajuste fiscal é prioridade. O Estado de S. Paulo, 22 de janeiro de 2015, p. B 1.
ENFIM a lição de casa. O Estado de S. Paulo, 23 de janeiro de 2015, p. A 3.
FRAGA, Armínio. ‘Levy é uma ilha em um mar de mediocridade’. Entrevista a Eliane Cantanhêde. O Estado de S. Paulo, 24 de janeiro de 2015. Disponível em http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,levy-e-uma-ilha-em-um-mar-de-mediocridade,1624337.
GIANNETTI, Eduardo. Nada é tudo: ética, economia e brasilidade. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
GONÇALEZ, Claudio Adilson. Remédios amargos, porém inevitáveis. O Estado de S. Paulo, 2 de fevereiro de 2015, p. B 2.
MACHADO, Luiz Alberto. Desafios do segundo mandato de Dilma Rousseff – Façam suas apostas. Disponível em http://www.portalcafebrasil.com.br/iscas-intelectuais/desafios-do-segundo-mandato-de-dilma-rousseff/.
MEGALE, Caio. A hora “dolorosa”. Valor Econômico, 23 de janeiro de 2015, p. A 11.
SAFATLE, Claudia. Mercados querem acreditar em Dilma.Valor Econômico, 23 de janeiro de 2015, p. A 2.
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