A esperança venceu o medo

 Otimismo moderado na Argentina

“O bolivarianismo é uma ideia que não deu certo nem com o próprio Simón Bolivar [1783-1830].”

Embaixador Marcos Azambuja

 Enquanto o noticiário no Brasil não para de nos “brindar” com notícias escabrosas a respeito dos desdobramentos da corrupção na Petrobras, envolvendo altos representantes dos Poderes Legislativo e Executivo além de destacados proprietários de empreiteiras e instituições financeiras, discussão sobre impeachment da presidente da República e cassação do mandato do presidente da Câmara dos Deputados, a vizinha Argentina vive a expectativa de um novo governo. Numa eleição histórica, o candidato da oposição, Mauricio Macri, ex-presidente do Boca Juniors e ex-prefeito de Buenos Aires, superou o candidato governista Daniel Scioli, elegendo-se para a presidência da República, pondo fim a 12 anos de hegemonia da família Kirchner, os quatro primeiros com Nestor e os últimos oito com sua mulher Cristina.

Já entrado nos 60 e tendo assistido a diversas situações análogas, quer na Argentina quer no Brasil ou em outros países, sinto-me suficientemente vacinado quanto ao risco de expressar entusiasmo diante da perspectiva de uma mudança que se apresenta como auspiciosa para, pouco tempo depois, me decepcionar com o desenrolar dos acontecimentos.

Mesmo com esse alerta, faço questão de examinar – passados já alguns dias da eleição – quatro aspectos que considero relevantes a respeito da situação argentina: o longo processo de deterioração da economia; a campanha presidencial; o significado do resultado eleitoral; e, por fim, os principais desafios que o novo presidente terá de enfrentar.

1. O longo processo de deterioração

 Nasci em 1955 e, graças ao basquete, logo aos 13 anos de idade tive oportunidade de realizar uma série de viagens ao exterior, numa época em que tal prática não era tão comum como é nos dias de hoje. Mesmo tendo conhecido diversos outros países antes de conhecer a Argentina, o que aconteceu apenas em 1977, ouvi diversas referências ao elevado nível de desenvolvimento do país que, em meados do século passado, ostentava indicadores socioeconômicos superiores inclusive aos de alguns países da Europa.

Quando estive na Argentina pela primeira vez, o quadro já não era o mesmo e o processo de deterioração já se encontrava em curso. De lá para cá, tive a chance de retornar ao país mais de uma dezena de vezes e, a cada nova visita, constatava o agravamento da situação.

Embora, a exemplo do que ocorreu também no Brasil, tenham se observado algumas oscilações, a tendência declinante foi uma característica marcante da economia argentina nos últimos 50 anos. Marcos Aguinis, brilhante sociólogo argentino, descreve de forma contundente essa trajetória declinante num livro intitulado ¡Pobre patria mía!:

Fomos ricos, cultos, educados e decentes. Em poucas décadas nos convertemos em pobres, mal educados e corruptos. Geniais! A indignação me tritura o cérebro, a ansiedade me arde nas entranhas e enrijece todo o sistema nervoso. Adoto hoje [neste livro] o subgênero do panfleto – elétrico, insolente, visceral – para dizer o que sinto sem ter que por notas de rodapé ou assinalar as citações. O que quero transmitir é tão forte e claro que devo esculpir. Ao leitor que já me conhece só peço, como sucedia com os panfletos do século XIX, que considere minha voz como a voz dos que não têm voz. Ou que, se a tem, não sabem como nem onde transmiti-la. Não se trata de arrogância, mas sim de pedir permissão.[1]

Mais adiante, numa clara manifestação de inconformismo pela pouca importância que a comunidade internacional atribui atualmente a um país que já foi considerado o mais desenvolvido da América do Sul, Aguinis assinala:

Cada vez que regresso de uma viagem ao estrangeiro, alguém me pergunta: “Que opinam a nosso respeito?” Existe ansiedade por obter a aprovação alheia, como se fôssemos conscientes da culpa que carregamos por haver corrompido o presente argentino. Minha resposta, por muitos anos, tratava de refletir os conceitos que haviam chegado a meus ouvidos. Agora já não preciso me esforçar. Respondo sem anestesia: “Crês que opinam mal? Não te iludas! Nem sequer mal: já não falam de nós”.

O casal Kirchner ocupa posição de destaque no rol dos responsáveis pela situação ter chegado até o ponto em que se encontra. O trecho que se segue, extraído já da parte final do livro deixa isso claro:

Nunca o casal K entendeu que o mundo é uma imensa oportunidade, onde nossos produtos seriam avidamente devorados. Que teríamos tudo para abastecer o mercado. Nunca entendeu que se devem respeitar os direitos da propriedade privada porque, ao contrário do que supunha o desinformado Proudhon, constituem a raiz da riqueza e um estímulo ao respeito pelo outro e por si mesmo. Aristóteles demonstrou que “o que é de todos, não é de ninguém”. A carência de hierarquia da propriedade privada permite o avanço da depredação. O famoso “modelo K”, apesar de obscuro, pelo menos deixa entrever que ama a depredação.

A conclusão de Aguinis não deixa margem a qualquer dúvida: “É dentro, e não fora do país, que se encontram as razões dessa prolongada decadência”.

A firme defesa dos princípios defendidos pelo socialismo bolivariano e o fortalecimento das relações com a Venezuela, a Bolívia e o Equador que se verificaram nos últimos anos serviram apenas para agravar uma situação que já era difícil, favorecendo o entendimento do resultado das últimas eleições presidenciais.

2. A campanha eleitoral

A campanha eleitoral, principalmente no intervalo entre os dois turnos, foi marcada por profunda polarização entre, de um lado, as promessas de mudança por parte de Mauricio Macri, cuja aliança de oposição era sintetizada na palavra “CAMBIEMOS”, e, de outro, a tentativa de criar um clima de terror em decorrência das propaladas mudanças por parte de Daniel Scioli, que dizia que seu opositor fazia promessas cheias de ar para chegar à Casa Rosada.

Tal polarização levou à seguinte manchete no jornal La Noticia, às vésperas das eleições: “La campaña del miedo kirchnesrista versus la ‘revolución de alegría’ macrista”.

Depois de repetir inúmeras vezes ao longo da campanha “yo soy la defensa de la producción y Macri es la defensa de la especulación”, o candidato governista e seus seguidores, percebendo o risco iminente da derrota, usaram e abusaram de ameaças como “van a despedir gente”, “van devaluar”, “van romper el bolsillo al trabajador”, “Patria o Macri” e outras do mesmo gênero.

De seu lado, Macri evitava entrar num diálogo mais agressivo, limitando-se a refutar as ameaças, como fez no último debate antes das eleições, quando disse que “el  problema  de la Argentina no es el dólar, es el Gobierno. No há parado de mentir(…) Argentina tiene que crecer en base a un Gobierno que diga la verdad”.

E, à medida que a data da eleição de aproximava e que as pesquisas revelavam a manutenção de pequena margem de vantagem para a coalizão CAMBIEMOS, Macri teve a certeza de que a estratégia de pregação do medo do candidato oficial não estava surtindo efeito.

Vale ressaltar que os dois lados foram buscar no exterior seus principais assessores de marketing: o especialista em comunicação política espanhol Yago de Marta ao lado de Daniel Scioli, e o expert equatoriano Jaime Durán Barba ao lado de Mauricio Macri.

3. O significado do resultado eleitoral

Os dois aspectos mais enfatizados pela maior parte dos analistas, principalmente os de fora da Argentina, foram o fim de doze anos de domínio kirchnerista e o declínio do chamado “socialismo bolivariano”.

Uma breve pincelada a respeito de cada um deles.

Sobre o primeiro, creio que o significado da vitória de Macri representa muito mais do que o fim da hegemonia dos Kirchner. A rigor, tem um significado histórico muito mais amplo, uma vez que é a primeira vez em 99 anos – quase um século, portanto – que um presidente eleito democraticamente não tem origem peronista nem radical (União Cívica Radical). O PRO, partido de Macri, possui pouco mais de uma década de existência, constituindo-se num partido urbano por excelência, como observa Héctor E. Schamis.  O PRO, continua, “conseguiu conquistar o voto da classe média, com um nível de educação superior ao da média na Argentina, de tendência liberal, com aspirações de mobilidade”.

Chegar ao poder com um partido com essas características pode ser algo positivo, dada a ausência de uma série de vícios que – quer na Argentina, quer no Brasil – têm sido uma marca negativa dos partidos tradicionais. Por outro lado, pode se constituir num obstáculo, como observarei no item 4.

Ainda sobre esse primeiro aspecto. Schamis acredita que esta eleição resolve uma espécie de “Tendão de Aquiles” da democracia argentina, já que, para muitos analistas, a origem dos recorrentes golpes militares que o país testemunhou devia-se ao fato de que, desde a crise da década de 1930, a burguesia não teve um partido com chances concretas de ganhar, transformando assim a instituição militar em seu partido político. Como diria o cientista político Barrington Moore, “sem burguesia – agrega Schamis, ‘interessada na democracia’ – não pode haver democracia”.

Já sobre o segundo aspecto, parece não restar muita dúvida a respeito do enfraquecimento do bolivarianismo, tendência que se tornou mais evidente com o resultado das eleições parciais ocorridas na Venezuela, que registrou fragorosa derrota do partido governista, liderado por Nicolás Maduro a partir da morte de Hugo Chávez. A péssima avaliação do presidente do Peru, Ollanta Humala, que se elegeu com o forte apoio de Chávez e Evo Morales, sinaliza também para uma derrota do bolivarianismo nas próximas eleições presidenciais, fazendo com que esta “bandeira” fique restrita a Bolívia, Equador e Cuba, cuja influência torna-se menor a cada dia.

Carlos Alberto Montaner, um dos autores de Manual do perfeito idiota latino-americano e de A volta do idiota, afirma que a vitória de Macri representa também o fim do populismo na Argentina. Por precaução, prefiro, por enquanto, entender o episódio como uma interrupção. Espero que duradoura.

4. Os principais desafios

Além de assumir um país cuja economia vem apresentando sinais de declínio há décadas, Macri precisará de muita habilidade para governar uma Argentina bastante dividida, considerando a estreita margem de sua vitória nas urnas. Nesse particular, e considerando a estrutura política ainda incipiente do PRO, dependerá em parte de seu principal sócio na coalizão vitoriosa, a histórica União Cívica Radical, que desempenhará a partir de agora o papel de coadjuvante.

Quem conhece a história recente da Argentina sabe da força do peronismo, mesmo tendo se transformado nos últimos tempos numa verdadeira colcha heterogênea e desorganizada de subcorrentes. Não há dúvida de que o peronismo lutará com todas as suas forças para reconquistar o poder, o que sugere uma oposição aguerrida e atuante. Resta observar se recobrará seus princípios democráticos ou se  continuará sob a atual submissão ao kirchnerismo.

Ainda sobre o noviciado do PRO – e considerando que a conquista foi recebida com certa surpresa até entre as fileiras do partido – Macri não tinha uma equipe completa para governar, recrutando muitos de seus ministros no empresariado, onde construiu sua trajetória. Embora sejam, na maioria, pessoas bem sucedidas, possuem limitada experiência política. E, como sabemos, nem sempre as virtudes que dão certo no setor privado conseguem o mesmo resultado no setor público.

Dentre os integrantes da equipe que comporá o primeiro escalão do governo destaca-se o nome de Alfonso Prat-Gay, que já foi presidente do Banco Central e foi designado por Macri para ser o ministro da Fazenda e Finanças. Em seus depoimentos iniciais, reconheceu que o novo governo receberá uma herança econômica negativa e um nível muito baixo de reservas internacionais líquidas.

Como reconhecem diversos analistas, o ex-deputado de 50 anos, com vasta experiência no mercado financeiro, terá que lidar com um setor produtivo paralisado por falta de investimentos, uma indústria fortemente sucateada e uma inflação elevada que afeta a competitividade da terceira maior economia da América Latina.

Já no tocante à política comercial, considerando-se as declarações iniciais de Macri, a Argentina deverá mudar consideravelmente o direcionamento adotado no período dos Kirchner e, nesse sentido, é bem provável que desde os primeiros dias de seu governo procure abrir oportunidades para a Argentina fora do eixo Mercosul e da esfera bolivariana para buscar uma aproximação com os países do continente que recentemente firmaram o Tratado Transpacífico (TTP). Como brasileiro, adoraria que tomássemos a mesma direção!

Referências e indicações bibliográficas e webgráficas

AGUINIS, Marcos. ¡Pobre patria mía!: Panfleto. 9ª ed. Buenos Aires: Sudameris, 2009.

______________ O atroz encanto de ser argentino. São Paulo: Editora Bei, 2002.

FUTURO ministro de Economía Argentina espera recibir herencia negativa y bajas reservas. Disponível em http://www.infolatam.com/2015/11/26/futuro-ministro-de-economia-argentina-espera-recibir-herencia-negativa-y-bajas-reservas/?utm_source=Newsletter%20de%20Infolatam&utm_medium=email&utm_campaign=Newsletter_26_noviembre_2015_Brasil,%20la%20corrupción%20que%20no%20cesa:%20el%20Jefe%20del%20PT%20en%20el%20Senado%20y%20el%20banquero%20Esteves.

GUGLIANO, Monica. Um novo ciclo sul-americano. Valor Econômico, 20 de novembro de 2015. Disponível em http://www.cebri.org/portal/noticias/um-novo-ciclo-sul-americano;jsessionid=7AB335615AF0AF7A19BE40BFD1F32DF6.

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LICITRA, Josefina. O povoado dos Kirchner. Piauí, 7 de abril de 2013.

MAURICIO Macri, presidente electo, llama a la unidad para construir una nueva Argentina.Disponível em http://www.infolatam.com/2015/11/23/mauricio-macri-presidente-electo-llama-a-la-unidad-para-construir-una-nueva-argentina/?utm_source=Newsletter%20de%20Infolatam&utm_medium=email&utm_campaign=Newsletter_23_noviembre_2015_Avance%20Argentina:%20victoria%20de%20Macri,%20que%20pone%20fin%20a%20la%20era%20kirchnerista.

MENDOZA, Plínio Apuleyo, MONTANER, Carlos Alberto e VARGAS LLOSA, Álvaro. Manual del perfecto idiota latinoamericano. Buenos Aires, Argentina: Editorial Atlántida, 1996.

______________ A volta do idiota. São Paulo: Odisseia, 2007.

MONTANER, Carlos Alberto. Macri y el fin del populismo en Argentina. Disponível em http://www.infolatam.com/2015/11/24/macri-y-el-fin-del-populismo-en-argentina/.

SCHAMIS, Héctor E. Una nueva República en Argentina. El País, 23 de noviembre de 2015. Disponível em http://internacional.elpais.com/internacional/2015/11/23/mexico/1448238090_560504.html.

 

[1] Todas as citações foram traduzidas para o português pelo autor.