Relato empolgante
Ao escrever um livro que focaliza os dilemas envolvidos na escolha da carreira profissional[1], concluí reproduzindo a letra de uma música do CD Afro-Beat-Ado, de uma das gratas revelações da música brasileira, cujo refrão é:
Quando não se faz o que gosta
o máximo que se pode ser é mediano[2]
Foi uma forma politicamente correta de me referir a uma conhecida afirmação: “a gente faz bem aquilo que a gente faz com tesão”.
Lembrei-me incontáveis vezes disso durante a leitura de Estamos aqui, de Jéssica Paula, publicado em 2015 pela Editora Schoba, livro que contém o relato da autora de suas conversas com diversas pessoas com as quais ela manteve contato durante os dois meses de sua viagem ao leste da África em 2013.
Colocado desta forma, parece simples. A realidade, porém, é completamente diferente.
Jéssica nasceu em Rio Verde, no interior de Goiás, e se formou em jornalismo pela Universidade de Brasília, além de ter feito um intercâmbio em Madri onde se especializou em reportagens especiais e documentário. Na ocasião, publicou reportagem especial sobre a vida de ciganos romenos na periferia da capital espanhola.
Apaixonada por viagens, ela teve oportunidade, em suas andanças pelo mundo, de conhecer o Marrocos e a Mauritânia, quando conheceu um pouco sobre a vida de refugiados. Ficou tão interessada pelo tema que passou a planejar uma pesquisa mais ampla sobre o mesmo.Depois de algum tempo levantando informações e possibilidades, optou por uma das regiões de mais difícil acesso da África, incluindo Etiópia, Sudão, Sudão do Sul e Uganda, onde foi conhecer histórias das vítimas de conflitos.
Apesar de todo empenho na fase de planejamento, Jéssica defrontou-se com dificuldades consideráveis em razão do exíguo volume de informações, em especial sobre o Sudão e o Sudão do Sul, que só se tornou independente em 2011. Tanto é verdade que se surpreendeu com a ausência de energia elétrica no Sudão do Sul, bem como com as precárias condições de higiene, já que vários dos lugares em que esteve não dispunham de instalações sanitárias, havendo apenas um buraco no chão para as necessidades fisiológicas e uma lata para tomar banho e escovar os dentes.
A essas complicações de ordem física, somaram-se outras relacionadas à comunicação, pois não era fácil encontrar interlocutores que falassem inglês, à cultura, à religião, à mobilidade e à política, já que um dos estados do Sudão que ela visitou não permite a presença de estrangeiros.
Nada disso foi empecilho para Jéssica, que conseguiu elaborar um texto instigante, entremeado de belíssimas fotos que ela mesma tirou. Trata-se daquele tipo de livro que prende de tal forma a atenção do leitor que não dá vontade de interromper a leitura antes de chegar à ultima linha. Pelo menos, foi assim comigo.
Sabem por que ela conseguiu isso?
Seguramente porque ela desenvolveu um trabalho em que reuniu duas paixões – viajar e fazer a diferença contando com visível empolgação histórias nunca contadas.
O título do livro foi inspirado num dos primeiros contatos da viagem. Assim que chegou a Bambasi, no oeste etíope, o refugiado Al Bash dirigiu-se a ela e falou: “Eu sei por que você está aqui. Você está aqui por causa da gente. Quando voltar pro seu mundo, por favor, conte a eles que estamos aqui”.
Foi isso que Jéssica fez, com incrível competência, alcançada apenas quando fazemos o que gostamos de fazer!
Um pequeno detalhe: Jéssica fez essa viagem sozinha, acompanhada apenas de seu par de muletas, uma vez que é deficiente física por ter contraído mielite aguda aos seis anos de idade.
[1] Como enfrentar os desafios da carreira profissional (São Paulo: Trevisan, 2012).
[2] Mediano. Tibless (CD Afro-Beat-Ado)
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