Por um triz
Vitórias por escassa margem
“Não interessa se você ganha ou
perde. E sim como se joga o jogo.”
Bill Watterson
O mês de junho, que ora chega ao fim, ficará marcado, entre outras razões, por dois processos eleitorais decididos por escassa margem, ideais para aqueles que gostam de grandes emoções: a eleição para a presidência do Peru e o plebiscito referente à permanência do Reino Unido (RU) na União Europeia (UE).
Conheci o Peru em 1971, numa época em que, a exemplo de vários outros países latino-americanos, o Peru vivia sob um governo militar. Esse ciclo autoritário se estendeu de 1968 a 1980, tendo ocupado a presidência nesse período Juan Velasco Alvarado (1968-1975), que assumiu o poder após depor o presidente eleito Fernando Belaúnde Terry, do partido Acción Popular, e depois Francisco Morales Bermúdez (1975-1980). Este ciclo autoritário foi apenas mais um, pois os peruanos sofreram golpes militares em cada década desde a de 1930 até a de 1970. Durante a maior parte dos períodos em que o país retornava à estabilidade constitucional, prevalecia acirrada disputa entre duas agremiações partidárias de longa tradição: o partido da Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA) e o partido da Ação Popular (AP).
Também a exemplo de outros países latino-americanos que estavam sob governos militares, o Peru conseguiu obter taxas razoáveis de crescimento econômico durante os anos 1970.
A década de 1980 se caracterizou em toda a América Latina, no plano econômico, por desempenhos medíocres, a ponto de ter dado origem à expressão “década perdida”, denominação claramente justificada pelos dados da tabela que se segue, elaborada pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), e reproduzida do livro Qual democracia?, de Francisco Weffort.
A DÉCADA PERDIDA
1981 – 1989 Crescimento do PIB por Habitante |
|||
América Latina* | (8,3) | Chile | 9,6 |
Bolivia | (26,6) | Haiti | (18,6) |
Equador | (1,1) | Honduras | (12,0) |
México | (9,2) | Nicarágua | (33,1) |
Peru | (24,7) | Panamá | (17,2) |
Venezuela | (24,9) | Paraguai | 0,0 |
Argentina | (23,5) | Rep. Dominicana | 2,0 |
Brasil | (0,4) | Uruguai | (7,2) |
Colômbia | 13,9 | Guatelmala | (18,2) |
Costa Rica | (6,1) | El Salvador |
(17,4) |
(*) O índice geral, elaborado pela CEPAL, inclui todos os países latino-americanos,
não apenas os aqui listados. Não considera os dados de Cuba porque
o conceito de produto social é diferente dos demais.
Como se pode observar, e deixando de lado o “economês”, cada cidadão latino-americano estava, no final da década de 1980, 8,3% mais pobre do que se encontrava no início da mesma. Nesse período, apenas três países, República Dominicana, Chile e Colômbia tiveram desempenho positivo. Todos os outros apresentaram desempenhos que vão de medíocres, casos de Paraguai, Brasil e Equador, a lastimáveis, casos de Argentina, Bolívia, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, Nicarágua, Panamá, Peru e Venezuela, passando pelos que tiveram performance muito fraca, como Costa Rica, México e Uruguai.
A década de 1980 reservou aos peruanos, no plano político, o retorno à democracia, com a eleição de Fernando Belaúnde Terry, que governou de 1980 a 1985. Em sua gestão verificou-se a escalada do populismo, continuada na gestão de seu sucessor, Alan Garcia (1985-1990), o que contribuiu para o péssimo desempenho em termos de crescimento econômico e à explosão inflacionária, com a taxa anual atingindo 7650% em 1990, caracterizando o que os economistas chamam de hiperinflação.
Essa perversa combinação – populismo e hiperinflação – favoreceu a deterioração das condições sociais, com focos permanentes de insurreições da guerrilha e operações de contrainsurgência realizadas pelo Exército, que resultaram, segundo a Comissão de Reconciliação e Verdade, na morte de 69.280 pessoas entre 1980 e 2000.
Em artigo publicado em O Estado de S. Paulo, Norman Gall, diretor do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, que há décadas acompanha a evolução da economia e da politica do Peru, tendo inclusive residido no país por alguns períodos, descreveu essa fase da seguinte forma:
A inflação crônica e a negligência danificaram de tal modo a infraestrutura do país que uma grave epidemia de cólera irrompeu em 1991 e 1992 em decorrência da poluição do sistema de abastecimento de água de Lima, espalhando-se para o Brasil e outros países latino-americanos. A essas ocorrências acrescentemos 13 fortes terremotos que atingiram o país desde 1990.
Estive no Peru novamente no início de 1990, tendo então a oportunidade de testemunhar a dura realidade então vivida pelo país. Com a economia em frangalhos, o desemprego atingia níveis elevadíssimos, possibilitando uma expansão enorme da economia informal, o que gerou condições para o aparecimento de um livro que se tornou referência internacional sobre o assunto, El otro sendero, de autoria de Hernando de Soto. A rotina da capital era interrompida frequentemente, não raramente por mais de uma vez ao dia, por apagões generalizados provocados por ações de grupos subversivos, dos quais o mais conhecido era o Sendero Luminoso, que explodia as torres de distribuição de energia.
Na época desta segunda visita ao Peru, o país era governado por Alan Garcia, que havia se utilizado de uma política populista de inclinação socialista que produziu resultados catastróficos. O escritor Mario Vargas Llosa, prêmio Nobel de Literatura em 2010, liderava as pesquisas para a eleição presidencial que seria realizada naquele ano. Porém, denúncias de sonegação de impostos não satisfatoriamente esclarecidas contribuíram para uma rápida redução de sua popularidade[1]. Na sequência, ele acabou sendo derrotado por Alberto Fujimori, que permaneceu por quase dez anos no poder, tornando-se uma figura polarizadora na política peruana, pois, depois de estabilizar a economia e derrotar a insurreição guerrilheira, ele cometeu diversos desatinos até fugir do país em meio a um escândalo de corrupção e assassinatos cometidos por esquadrões da morte. Em decorrência disso, Fujimori encontra-se na prisão, cumprindo pena de 25 anos.
Após a saída de Fujimori, a história política do Peru é completamente diferente da que prevaleceu anteriormente. Os partidos tradicionais não têm mais a mesma relevância que haviam tido historicamente e as eleições presidenciais têm ocorrido regularmente nos prazos previstos, o que significa que os presidentes eleitos vêm cumprindo integralmente seus mandatos, embora os tenham concluído com baixos índices de aprovação. Foi assim com Alejandro Toledo (2001-2006), Alan Garcia (2006-2011), que conseguiu ser eleito novamente pondo em prática uma política econômica inteiramente distinta da que adotara no mandato anterior, e, finalmente, Ollanta Humala, eleito em 2011 derrotando a mesma Keiko Fujimori também por escassa margem.
Interessante observar que embora seguidores de diferentes linhas ideológicas e pertencentes a novos partidos, todos eles perseguiram, de certa forma, objetivos semelhantes. No artigo já mencionado, Norman Gall assim abordou esse aspecto:
As campanhas eleitorais no Peru são muito disputadas e as vitórias são sempre por margens estreitas. A imprensa e os partidos políticos do Peru são mais frágeis que os do Brasil, mas o empenho no sentido de uma estabilidade é mais forte. Nas últimas décadas, o temor da desordem e a promoção da justiça social orientaram a política econômica. Cada presidente eleito concluiu seu mandato de cinco anos com índices de popularidade abaixo de 15%, mas o Peru mantém a mesma política econômica e é o país que mais rápido cresceu na América Latina nas últimas duas décadas.
Conclui Gall:
Governos sucessivos mantiveram a economia aberta, com inflação baixa, uma moeda estável e contas fiscais equilibradas – e investiram pesado em infraestrutura. A classificação do Peru no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU (IDH, que mede os níveis de longevidade, educação e renda per capita) está próxima da do Brasil, posição que o Peru atingiu com menos da metade da varga fiscal do Brasil como parcela do PIB. A constituição peruana veta a reeleição e autoriza o referendo revogatório para a remoção de autoridades eleitas, um obstáculo para que uma classe ou facção política consiga se arraigar no poder e abusar de sua autoridade e privilégios.
É nesse contexto que foram realizadas as eleições presidenciais que resultaram na apertada vitória de Pedro Pablo Kuczynski, um ex-banqueiro de investimento e economista do Banco Mundial, sobre Keiko Fujimori, a filha do ex-presidente que nos últimos anos fez uma intensa campanha para erigir um novo partido, o Força Popular, que conquistou 71 dos 130 assentos no Parlamento.
Portanto, Pedro Pablo Kuczynski assumirá no dia 28 de julho a presidência de um país que tem apresentado taxas expressivas de crescimento econômico e consideráveis avanços sociais, mas cujos presidentes têm encerrado seus mandatos com baixos níveis de aprovação e não têm conseguido emplacar seus sucessores.
Eleito por um partido de débil estruturação orgânica, o Peruanos pelo Kambio (PPK, mesmas iniciais do nome do presidente), Kuczyski terá uma dura tarefa, uma vez que assumirá a presidência de um país dividido ao meio. Embora tenha vencido com 50,12% dos votos contra 49,87% de Keiko Fujimori, ele saiu vitorioso em apenas 92 províncias, contra 104 de sua opositora. Esse resultado reflete uma redução significativa em relação às ultimas eleições, nas quais Ollanta Humala havia vencido em 142 províncias, contra 54 de Keiko Fujimori.
A vitória de Pedro Pablo Kuczynski em Lima, sobretudo nos distritos de maior renda, compensou seu fraco enraizamento eleitoral. O anti-fijimorismo do interior do país e o apoio conseguido na parte moderna de Lima explicam a vitória do presidente eleito. Por outro lado, uma análise dos números finais da eleição indica que o fujimorismo é o principal protagonista eleitoral da costa peruana, desde o extremo norte em Tumbes até Arequipa, com uma ênfase importante no litoral do norte, que foi outrora reduto do APRA.
O segundo processo eleitoral decidido por escassa margem ocorrido em junho teve lugar no Reino Unido, onde o plebiscito sobre a permanência na União Europeia apontou a vitória do “Sair”, posição conhecida como Brexit, que obteve 51,9% dos votos contra 48,1% favoráveis à continuidade no bloco.
Tão logo foram anunciados os resultados, surgiram diversas manifestações procurando chamar a atenção para as repercussões dessa decisão.
Mesmo reconhecendo que o evento é ainda muito recente, devendo, por isso, merecer uma reflexão mais profunda, minha primeira sensação é de que as perdas decorrentes dessa votação serão superiores a eventuais ganhos que poderiam dela advir.
Entre as razões desta sensação, duas me parecem mais evidentes.
A primeira diz respeito à possibilidade do próprio desmembramento do Reino Unido, já que embora a saída tenha obtido vantagem na Inglaterra, a permanência saiu vitoriosa na Escócia e na Irlanda. Vale lembrar que os escoceses participaram de um plebiscito em 2014 sobre sua permanência ou não no Reino Unido e, na ocasião, a vitória dos adeptos da permanência deveu-se em grande parte ao fato de que, dessa forma, a Escócia estaria integrada à União Europeia.
Diante disso, já nos dias que se seguiram à divulgação da vitória do Brexit, surgiu uma manifestação com milhares de subscritores solicitando um novo plebiscito. Algo semelhante, embora com menos intensidade, também foi ventilado na Irlanda.
Uma eventual saída da Escócia e da Irlanda teria um impacto histórico significativo, uma vez que representaria uma trajetória na direção contrária à que se verificou desde a Idade Média.
A segunda refere-se ao efeito econômico que poderia derivar da decisão. Com o gradativo enfraquecimento do setor industrial, a composição do PIB do Reino Unido tem revelado forte participação do setor de serviços, no qual dois segmentos se destacam, o da economia criativa e o setor financeiro.
Quanto à economia criativa, o Reino Unido tem sido um de seus maiores protagonistas, tendo havido inclusive uma reformulação da contabilidade nacional, com uma nova metodologia de cálculo, de forma a incorporar nessa rubrica, além dos setores tradicionalmente considerados como arquitetura, design, moda, artesanato, editoração, publicidade e propaganda, música, rádio e televisão, cinema e animação, games e softwares, também os setores de esporte e turismo. No que tange à economia criativa, não vislumbro maiores problemas.
A preocupação maior, a meu juízo, incide no efeito da decisão pró “saída” sobre o desempenho do setor financeiro. Até agora o centro financeiro de Londres, conhecido como City, foi privilegiado com grande concentração das negociações dos países integrantes da União Europeia, mesmo que o Reino Unido não tenha jamais se tornado um participante pleno da União Europeia, por não ter aderido à moeda única (euro). Deixando formalmente de pertencer ao bloco, nada impede que seus integrantes remanescentes passem a concentrar em outra praça, Frankfurt, por exemplo, o grosso das negociações. Se isso vier a ocorrer, o impacto sobre o nível de atividade econômica pode ser elevadíssimo.
Tanto no caso do Peru como no do Reino Unido, em que os recentes processos eleitorais foram decididos por escassa margem, uma série de outros aspectos poderiam – e deveriam – ser levados em conta, algo impossível num artigo dessa natureza.
Diante disso, resta dar tempo ao tempo e acompanhar os acontecimentos.
Referências e indicações bibliográficas
GALL, Norman. O Peru mudou. O Estado de S. Paulo, 11 de junho de 2016, p. A 14. Disponível também em http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,o-peru-mudou,1879382.
GRYZINSKI, Vilma. A roda da história gira. Veja, 29 de junho de 2016, pp. 66-71.
SOTO, Hernando de. El Otro Sendero: La Revolución Informal. En colaboración con Enrique Ghersi, Mario Guibellini y el Instituto Libertad y Democracia (ILD). Prólogo de Mario Vargas Llosa. Editorial El Barranco, 1986.
VARGAS LLOSA, Mario. Peixe na água: memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
WATKINS, Nathalia. Depois do Brexit, o Frexit, o Swexit… Veja, 29 de junho de 2016, pp. 72-75.
WEFFORT, Francisco. Qual democracia? São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Referências e indicações webgráficas
MELO, João Cesar de. Doze considerações sobre a saída do Reino Unido da UE. Disponível em http://www.institutoliberal.org.br/blog/doze-consideracoes-sobre-saida-do-reino-unido-da-ue/.
FIDLER, Stephen, NORMAN, Laurence e BENOIT, Bertrand. UE quer dar tempo para que britânicos repensem decisão. Valor Econômico, 27 de junho de 2016. Disponível em http://www.pressreader.com/brazil/valor-econ%C3%B4mico/20160627/281698319052324.
INFOLATAM. Perú Elecciones: División exacta. Disponível em www.infolatam.com/2016/06/21/peru-elecciones-division-exacta/. [1] Recomendo enfaticamente a leitura de Peixe na Água: memórias, uma autobiografia de Mario Vargas Llosa, na qual se pode aprender muito a respeito da realidade política peruana.
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