Olímpicas expectativas
Uma das grandes vantagens do Facebook é a de permitir a retomada do elo com pessoas das quais havíamos perdido o contato há mais ou menos tempo. Aconteceu exatamente isso com o Sergio Luiz Alvarez, o Serginho, meu companheiro de seleção brasileira na viagem a Porto Rico no longínquo ano de 1968.
Há alguns dias ele postou um comentário a respeito dos Jogos Olímpicos, dizendo que em outros tempos, nessa época, ele ficava ansioso pelo início das competições, imaginando quantas emoções iria viver e quantas quebras de recordes iria acompanhar. No entanto, às vésperas do início da Olimpíada do Rio de Janeiro, a maior parte das notícias diz respeito a corrupção, superfaturamento, terrorismo, doping, risco de contaminação e outras coisas do gênero.
Aproveito o comentário do Serginho para algumas reflexões adicionais.
Não há dúvida de que os tempos são outros e as mudanças são evidentes em vários planos: político, econômico, ético, esportivo etc.
No plano político, os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro ocorrerão em meio a uma enorme crise política que redundou no afastamento da presidente Dilma Rousseff e sua substituição – em caráter provisório ainda – pelo vice-presidente Michel Temer. Independentemente das preferências, o que se constata é que essa provisoriedade pouco contribuiu para pôr fim à estagnação da nossa economia, que provocou, entre outras consequências, uma elevação considerável do desemprego e uma forte contração das atividades em praticamente todos os setores produtivos.
É possível que a referida provisoriedade chegue ao fim logo após o encerramento das competições, uma vez que o julgamento do afastamento definitivo de Dilma Rousseff no Senado está previsto para o dia 24 de agosto. Quem sabe, com a definição de quem continuará presidindo o País, em especial se prevalecer a hipótese hoje mais provável da continuidade de Michel Temer, a paradeira dê lugar a um início de recuperação, motivada em grande parte pela retomada dos investimentos nacionais e estrangeiros.
Estendendo a perspectiva para as relações internacionais, porém, as perspectivas me parecem mais preocupantes, visto que a escalada da violência e do terrorismo não tem dado tréguas e não oferece esperança de uma mudança no curto prazo. Pelo contrário, exemplos de intolerância pipocam em diferentes partes do planeta, com atentados que vitimam inexplicavelmente dezenas ou centenas de inocentes.
A ameaça de um atentado dessa natureza durante a realização dos Jogos Olímpicos não pode ser descartada, em razão da enorme visibilidade que um evento dessa magnitude possui. E, por mais que haja um esforço de segurança envolvendo a ação combinada dos sistemas de inteligência do Brasil e de diversas outras nações, a verdade é que quando os autores desses atentados estão dispostos a dar a própria vida para a sua execução, a possibilidade de neutralização torna-se extremamente difícil. É exatamente isso que observamos em atentados recentes como os de Orlando, Paris, Bruxelas, Nice, Munique etc.
Desviando a atenção para o plano ético, o cenário também não é nada animador. No Brasil, não bastasse vivermos às voltas com os episódios de corrupção que estão sendo objeto de investigação pela Operação Lava-Jato, temos que acompanhar sucessivas notícias de superfaturamento na construção das instalações esportivas desde a Copa do Mundo. Embora o saldo definitivo desses grandes eventos demore a ser conhecido, algumas evidências da Copa de 2014 são hoje inquestionáveis, entre as quais o péssimo investimento feito em estádios em localidades em que o futebol não tem qualquer tradição, como são os casos de Brasília, Manaus, Natal e Cuiabá. Passados dois anos do encerramento da Copa, como era esperado, esses estádios transformaram-se em verdadeiros elefantes brancos, com despesas de manutenção impossíveis de serem cobertas pelas respectivas prefeituras. O futuro poderá ser ainda pior, na medida em que os grandes times do Rio de Janeiro, que têm realizado alguns de seus jogos nesses estádios, voltem a se utilizar do Maracanã e do Engenhão, que ficaram por longo tempo sendo reformados para os Jogos Olímpicos.
As estatísticas evidenciam que grande parte das edições dos Jogos Olímpicos deixou como legado um déficit considerável. As duas exceções mais marcantes foram os Jogos Olímpicos de Barcelona em 1992 e de Los Angeles em 1984, este último bancado integralmente pela iniciativa privada. Fábio Piperno, no recém-lançado Jogada política no esporte, realça esse aspecto:
Los Angeles/84 estabeleceu novos paradigmas na organização de Olimpíadas. Comandados pelo executivo Peter Ueberroth, os Jogos na metrópole californiana foram os primeiros da história com financiamento 100% privado e os mais rentáveis de todos os tempos, deixando saldo positivo de US$ 225 milhões. Para chegar ao resultado, os organizadores atraíram 34 grandes patrocinadores e mais uma centena de marcas, que se associaram como licenciadas ou fornecedoras oficiais. Fora isso, os Jogos contaram com o trabalho gratuito de 28 mil voluntários, o que significou sensível redução de custos.
Em termos de investimentos em instalações não esportivas, o grande legado da Olimpíada será para o povo do Rio de Janeiro, que poderá desfrutar de consideráveis melhoras em regiões que foram revitalizadas, em novos meios de transporte e em novas atrações culturais que poderão ampliar ainda mais o interesse de turistas pela Cidade Maravilhosa. Evidentemente, para que isso se viabilize, tanto a cidade como o estado do Rio de Janeiro precisarão passar por profundas mudanças, no sentido de oferecer mais segurança, saúde e até condições mínimas de trabalho para servidores que se encontram profundamente desestimulados.
Deslocando a ética para o plano esportivo, também não há motivos de alento. A recente notícia da exclusão das equipes de atletismo e de halterofilismo da Rússia dos Jogos – exclusão que poderá se estender a outras modalidades – em função de um abrangente esquema de doping envolvendo as próprias autoridades revela a que ponto chegou a busca desesperada por resultados. Há fortes indícios de que esquemas dessa natureza ocorressem com frequência durante a Guerra Fria, quando as conquistas esportivas eram utilizadas por alguns governos como prova de supremacia de uma ideologia, um regime político ou um sistema econômico. Muita gente imaginava que com o fim da Guerra Fria essa prática tivesse, senão desaparecido, diminuído bastante. Os fatos que agora se tornaram de conhecimento público mostram que, infelizmente, ainda estamos longe disso.
Já no que se refere a resultados de uma forma geral, minha expectativa também não é das melhores. Além da ausência dos atletas russos, muitos grandes atletas de diversas modalidades optaram por não vir ao Rio de Janeiro, por diferentes motivos. Alguns por alegarem necessidade de recuperação depois de uma temporada extenuante como os super astros da NBA LeBron James, Stephen Curry, James Harden e Kawhi Leonard; outros por não terem se recuperado de lesões como o tenista suíço Roger Federer, o cestobolista espanhol Marc Gasol e o jogador brasileiro de vôlei Murilo; outros por temor de contaminação pelo vírus da zika como os tenistas Milos Raonic e Tomas Berdych e os golfistas Rory McIlroy, Dustin Johnson e Marc Leishman; e alguns por desinteresse decorrente de problemas com as federações locais, como ocorreu com diversos futebolistas argentinos que se negaram a defender a seleção de seu país. São ausências que retiram parte do brilho que poderia existir em algumas modalidades. Felizmente o maior ícone do esporte, o velocista jamaicano Usain Bolt recuperou-se a tempo de participar dos Jogos Olímpicos, embora talvez sem estar no auge de sua forma.
Por fim, quanto ao desempenho dos atletas brasileiros, não vejo nenhum motivo para grande otimismo. Mesmo que o número de medalhas supere o de edições anteriores – o que é mais do que esperado por se tratar do país que sedia as competições – não aconteceu qualquer mudança estrutural que propiciasse uma perspectiva mais favorável a longo prazo.
Esse aspecto foi examinado com propriedade pelo ex-ministro Caio Luiz de Carvalho no prefácio do já mencionado Jogada política no esporte.
Tempo de Olimpíadas, tempo de governos repensarem os gastos vultosos que os grandes eventos hoje exigem dos destinos sede.
Poderíamos hoje celebrar a escolha vitoriosa do Rio de Janeiro como responsável pelo fato de o governo brasileiro ter, com visão estratégica, aproveitado para adotar uma política de Estado para o esporte e atividade física no País, oferecendo cenários mais saudáveis para as gerações futuras do que o da monocultura do futebol.
Mais uma vez nada foi feito. No entanto destaco que ao contrário do fracasso anunciado na Copa do Mundo de Futebol, que nada de legado deixou para o País, dessa vez a cidade do Rio de Janeiro terá ganhos com as obras de infraestrutura que a cidade recebeu e que ficarão para seus moradores e visitantes. Perdeu-se, porém, a chance de conquistarmos com campanhas toda uma geração de jovens brasileiros para a prática de esportes olímpicos e atividade física.
A conclusão realista de Caio Luiz de Carvalho frente a esse diagnóstico é a seguinte:
Um país há décadas sem políticas de Estado voltadas para a prática da atividade física desde os primeiros bancos escolares, que ignora os seus 350 mil profissionais de educação física, que não promove o chamado Esporte para Todos, que não dispõe de Centros de Referência e Excelência Esportiva regionais, que não cria um banco de talentos e que teve nos últimos anos um Ministério de Esportes voltado mais para o futebol não pode mesmo ter expectativas de grandes performances em Jogos Olímpicos.
Há 32 anos, escrevi um artigo com o título Poucos esportistas… poucas medalhas. Foi logo após o encerramento dos Jogos Olímpicos de Los Angeles, quando o Brasil conquistou apenas 8 medalhas[1]. Passados todos esses anos, a base do nosso esporte continua a residir nos clubes esportivos, de acesso extremamente restrito. Enquanto em quase todas as potências olímpicas a base está nas escolas e universidades, com acesso quase universal, aqui dependemos do investimento de alguns clubes poliesportivos que permanecem por décadas formando ou aperfeiçoando atletas de alto rendimento, como são os casos do Pinheiros, em São Paulo, e do Minas Tênis, em Belo Horizonte. Enquanto isso, as competições colegiais e universitárias ocorrem com pouquíssimo apoio quer das autoridades esportivas quer da imprensa especializada.
Costumo dizer a meus alunos que virei intelectual porque esqueci de crescer. Isso porque até os dezoito anos joguei basquete em alto nível, tendo oportunidade de participar de diversas seleções paulista e brasileira de categorias menores. Graças a isso, de vez em quando sou convidado para entrevistas ou para participar de programas de televisão que tratam de esporte. Foi o que aconteceu no fim do ano passado, quando gravei uma entrevista para o programa Conexão Universitária, em que expus muitas das ideias e preocupações contidas neste artigo (https://www.youtube.com/watch?v=BAmsx-2eCYo).
Às vésperas do início dos Jogos Olímpicos, espero estar errado nas minhas previsões, de tal forma que os Jogos sejam um sucesso e que nossos atletas conquistem um número expressivo de medalhas, deixando um legado inesquecível.
Mas, honesta e infelizmente, não é o que estou prevendo!
Referências bibliográficas
CARDOSO, Maurício. Os arquivos das Olimpíadas. São Paulo: Editora Panda, 2000.
MACHADO, Luiz Alberto. Poucos esportistas… poucas medalhas. Correio Popular, Campinas, 29 de agosto de 1984.
PIPERNO, Fábio. Jogada política no esporte. São Paulo: Editora do SESI, 2016.
PRONI, Marcelo Weishaupt. O debate sobre o legado dos Jogos Olímpicos Rio 2016. Apresentação no Seminário “Trabalhadores(as) em tempo de crise: construindo alternativas”. Promoção UGT. São Paulo: Mimeo.
[1] Uma de ouro (no atletismo, com Joaquim Cruz, nos 800 metros); 5 de prata (uma na natação, com Ricardo Prado, nos 400 metros medley, uma no iatismo, com Torben Grael, Daniel Adler e Ronaldo Senft, na classe Soling, uma no judô, com Daniel Vieira, uma no futebol e uma no voleibol masculino, com a chamada “geração de prata”; e 2 de bronze (ambas no judô, com Luiz Onmura e Walter Carmona).
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