Ponte dos Espiões
Por Humberto Pereira da Silva
A guerra fria protagonizou os momentos mais tensos da segunda metade do século passado. A polarização ideológica entre Estados Unidos e União Soviética pôs os dois lados em disputa num constante estado de alerta, frente à incontornável escalada pelo domínio de segredos dos arsenais nucleares das superpotências. O risco de perda da situação e de um confronto nuclear alimentou o aprimoramento das inteligências de ambos os lados; em consequência, os Estados Unidos e a União Soviética desenvolveram procedimentos de espionagem num nível sem precedentes na história até então.
O tema da espionagem durante a guerra fria é fascinante. Rendeu ampla literatura e uma cinematografia memorável. Apesar do fascínio, talvez se pudesse ponderar que, hoje, passadas já algumas décadas da derrocada do regime soviético, e considerando o enorme leque de filmes sobre o pesadelo de uma guerra nuclear, o tema estivesse batido. Assim, o mais recente filme de Steven Spielberg, Ponte dos Espiões (2015), não traria novidade a um assunto que rendeu obras magnas como Dr. Strangelove (1964), de Stanley Kubrick, e a franquia 007.
Com Ponte dos Espiões, Spielberg volta a um tema que marca suas preocupações com temas de grande apelo histórico. Fez essa investida com foco na Segunda Guerra, O Resgate do Soldado Ryan (1999), e na ação terrorista na Olimpíada de Munique, justamente com Munique (2006). Nessa retomada, com os recursos de que dispõe na indústria do cinema, e com sua capacidade de inflexão em temas de apelo histórico, Spielberg fez de Ponte dos Espiões uma obra que não só revela não estar batido o tema da espionagem como nos propicia refletir sobre o ambivalente jogo nas esferas do poder.
No auge da guerra fria, um espião russo é preso pelo FBI. O filme não traz dados sobre o que ele espionava e tampouco se interessa em exibir como o FBI chegou a ele. Ponte dos Espiões mostra um solitário e circunspecto pintor de retratos nas praças do Brooklyn no final dos anos de 1950. Preso por espionagem, no mesmo clima que levou o casal Rosenberg à cadeira elétrica em 1953, a opinião pública esperava que o espião russo tivesse o mesmo destino.
Em conformidade com os ritos do processo legal americano, o espião devia ter ampla possibilidade de defesa. Para defendê-lo, é convocado de última hora um advogado de seguros, interpretado por Tom Hanks, sem qualquer experiência na defesa de espiões. Embora o caso se apresente como mera fachada para fazer valer os ideais de justiça – ninguém é condenado sem um julgamento justo –, Hanks entende que a execução do acusado seria mais contrária aos interesses americanos do que mantê-lo vivo.
Nesse entretempo, a partir da Turquia, a CIA estava fazendo uso de caças para espionar bases nucleares russas. Enquanto sobrevoava o espaço aéreo russo, um dos caças americanos é atingido por um míssil e o aviador é feito prisioneiro. Nesse entretempo, ainda, um jovem estudante de economia americano é preso na Alemanha Oriental, no momento em que estava sendo construído o Muro de Berlim.
O julgamento do espião russo em solo americano, então, se entrelaça a esses dois acontecimentos paralelos. Qual a vantagem na execução do espião quando ele podia ser utilizado como moeda de troca num momento de espionagens recíprocas? Esta a indagação que Hanks expõe ao juiz – antes mesmo de saber dos incidentes distantes – e que o leva a contrariar a opinião pública, ávida pela execução: o espião acaba sentenciado a trinta anos de prisão.
Desse instante em diante Ponte dos Espiões caminha em ritmo de suspense, em virtude das negociações, conduzidas por Hanks, para a troca de prisioneiros. Enviado à Alemanha Oriental, Hanks se defronta com uma situação em que tem de lidar em duas frentes: tendo o espião russo como moeda, negociar a libertação do aviador, portanto, com os russos, e a do jovem economista, portanto com os alemães orientais. As negociações seguem tensas até o momento final, como convém a um bom filme de suspense. O que se apresenta é a diferença nos interesses em jogo que opõem russos e alemães.
Num filme americano sobre a guerra fria dirigido por Spielberg, inevitável levar em conta que há grande dose de parcialidade, de culto ao heroísmo. O aviador preso pelos russos é torturado para confessar segredos militares, enquanto o espião não é tocado e lhe são dadas todas as garantias de defesa. Mais que isso, num diálogo interessante no momento crucial da troca de prisioneiros, Hanks indaga ao espião como ele seria tratado depois de libertado. Sugerindo, de algum modo, que ele poderia ser morto por ter sido feito prisioneiro e, eventualmente, revelado algum segredo militar.
Essas são nuances interessantes de Ponte dos Espiões, e que revelam, até com certo didatismo, aspectos intrincados da espionagem naqueles anos. O casal Rosenberg foi sentenciado à morte no mesmo contexto histórico. A opinião pública queria o mesmo desfecho para o espião do filme. O humanismo de Hanks expressa muito mais pragmatismo do que furor paranoico. Nesse quadro complexo de sutilezas nos gestos era dever do aviador ter se matado antes de ser capturado pelos russos.
Por vias enviesadas, mas com evidente teor didático, Ponte dos Espiões mostra os limites tênues entre heroísmo e covardia. Um espião que encara a morte como dado de contingência em sua condição e um jovem aviador que se deixa fazer prisioneiro. Isso num jogo de poder em que ambos os lados, sob o argumento do segredo de Estado, fazem uso de meios subterrâneos para obter informações. Como o FBI chegou ao espião? Por que os russos não executaram sumariamente o aviador? O filme indica, mas não explicita que a contraespionagem foi outra realidade no palco da guerra fria.
Ponte dos Espiões é um grande filme recente do cinema americano porque, inadvertidamente, deixa no ar questões dessa natureza. A partir delas, se tem menos de heroísmo e mais de pragmatismo em momentos cruciais de decisão de poder. Assim, abaixo das aparências, esse filme de Spielberg nos leva a refletir sobre a conveniente impressão que separa mocinhos e vilões, o bem e o mal, num contexto por demais complexo.
Humberto Pereira da Silva é professor de Filosofia no curso de Artes Visuais e de Técnicas de Pesquisa no de Economia na FAAP. Também exerce a atividade de crítico de cinema, sendo colunista regular da Revista de Cinema e do site Cinequanon. É autor dos livros Ir ao cinema: um olhar sobre filmes (Musa Editorial, 2006), Pragmática da linguagem e ensino de ética: quando dizer não é fazer (Paco Editorial, 2012) e Glauber Rocha: cinema, estética e revolução (Paco Editorial, 2016).
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