Para este eu tiro o chapéu
O fato
Na segunda semana de janeiro os brasileiros tomaram conhecimento oficialmente de uma notícia que era aguardada já há alguns meses pelos que acompanham mais de perto as coisas do esporte em geral e do voleibol em particular: a saída do técnico Bernardinho do comando da seleção brasileira masculina, encerrando um ciclo extraordinariamente vitorioso de 16 anos.
A rigor, a trajetória bem-sucedida de Bernardinho à frente da seleção brasileira já havia se iniciado anos antes quando, comandando a seleção feminina, ele conquistou duas medalhas de bronze, nos Jogos Olímpicos de Atlanta (1996) e Sidney (2000). Com a seleção masculina foram quatro ciclos olímpicos e quatros medalhas, duas de ouro, em Atenas (2004) e Rio de Janeiro (2016), e duas de prata, em Pequim (2008) e Londres (2012).
Além das conquistas olímpicas, a seleção masculina de voleibol obteve dezenas de outros títulos importantes sob o comando de Bernardinho, vencendo três Campeonatos Mundiais (2002, 2006 e 2010), duas Copas do Mundo (2003 e 2007), oito Ligas Mundiais (2001, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2009 e 2010), dois Jogos Pan-americanos (2007 e 2011), e oito Campeonatos Sul-americanos (2001, 2003, 2005, 2007, 2009, 2011, 2013 e 2015), além de uma série de outros torneios de menor expressão. Com isso, a seleção brasileira ocupou por diversos anos consecutivos a liderança do ranking da Federação Internacional de Voleibol (FIVB), chegando a merecer do técnico argentino Raúl Lozano, que dirigia a seleção polonesa, a seguinte declaração: “Quero dar meus parabéns à seleção brasileira porque esta é a maior vitória da História. Eles mostraram que são o time mais poderoso do mundo, o melhor que o mundo já viu”. Este entusiástico comentário foi feito logo após uma estrondosa vitória da seleção brasileira sobre a até então invicta seleção da Polônia na final da Copa do Mundo de 2007, disputada no Japão.
Os antecedentes
O sucesso fabuloso à frente da seleção masculina de voleibol não pode ser visto como um fato isolado. Ele é, acima de tudo, o ponto alto de uma carreira que sempre se pautou pela busca incessante da excelência.
Assim foi com o atleta Bernardinho, que, mesmo sendo contemporâneo de um dos maiores levantadores da história do voleibol mundial – William – e seu reserva na seleção brasileira, jamais deixou de dar o melhor de si, tanto na seleção brasileira como nos clubes que defendeu ao longo de sua carreira.
Bernardinho fez parte daquela que ficou conhecida como a “geração de prata”, por ter conquistado o vice-campeonato mundial na Argentina e a medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Los Angeles (1984), perdendo respectivamente para as seleções da União Soviética de Savin e Zaytsev e para os Estados Unidos de Kiraly, Timmons e Powers, ambas mencionadas pelos especialistas como duas das melhores seleções que já existiram.
Embora tenha ficado com esse estigma de “geração de prata”, essa foi a geração que transformou o voleibol no segundo esporte nacional, depois do futebol, posição que foi ocupada por muito tempo pelo basquete, cuja seleção brasileira dos inesquecíveis Vlamir, Amaury, Sucar, Rosa Branca, Mosquito, Jatyr, Edson Bispo, Victor, Ubiratan e tantos outros havia conquistado o bicampeonato mundial em 1959 e 1963, além das medalhas de bronze nas Olimpíadas de Roma (1960) e Tóquio (1964).
Essa ascensão do voleibol deveu-se em grande parte ao excelente trabalho iniciado por Carlos Arthur Nuzman e continuado por Ary Graça Filho na presidência na Confederação Brasileira de Voleibol. A geração de Bernardinho tinha Renan (que vai substituí-lo no comando da seleção brasileira), William, Bernard, Montanaro, Xandó, Amauri, Fernandão, Badalhoca e uma série de outros jogadores cujos nomes foram se tornando cada vez mais populares, na mesma época que, no feminino, tornavam-se nacionalmente conhecidas Isabel, Jacqueline e Vera Mossa (com quem Bernardinho foi casado com quem teve o atual levantador titular da seleção brasileira, Bruno Resende).
Além dos dirigentes já mencionados, dois nomes merecem destaque por terem dado uma colaboração fundamental nesse período: o locutor Luciano do Vale, que chegou até a ser chamado de Luciano do Vôlei, e o empresário Antônio Carlos de Almeida Braga, o Braguinha, verdadeiro mecenas do esporte no Brasil, responsável pelo patrocínio da Atlântica Boavista a uma das equipes mais importantes da época, juntamente com a Pirelli. Estava consagrada uma nova fase do esporte de alto rendimento no Brasil, com a participação decisiva do patrocínio de empresas que enxergaram no esporte uma excelente oportunidade de marketing para seus produtos.
A geração de Bernardinho foi tão importante que diversos de seus integrantes desempenham até hoje papel relevante na história do esporte brasileiro como técnicos, dirigentes ou comentaristas. Sem falar, talvez, no mais importante, o fato de terem servido de inspiração para sucessivas gerações de jogadores e jogadoras que fizeram do Brasil a potência que é atualmente no voleibol mundial.
As gerações que conquistaram o ouro olímpico em Barcelona (Carlão, Marcelo Negrão, Tande, Maurício, Giovane e Paulão, sob o comando de José Roberto Guimarães), em Sidney (Giba, Dante, Ricardinho, André Nascimento, Gustavo, André Heller, Rodrigão, Serginho e Nalbert) e no Rio de Janeiro (Wallace, Lucão, Bruno, Serginho, Lucarelli, Lipe, Maurício Souza, Éder, Mauricio Borges) souberam dar continuidade à brilhante trajetória iniciada com a “geração de prata”.
Minha maior crítica dessa bela história fica para o continuísmo que caracterizou posteriormente as administrações de Nuzman no Comitê Olímpico Brasileiro e Ary Graça Filho na Confederação Brasileira de Voleibol, responsáveis por algumas passagens nebulosas, que dificilmente ocorreriam se fosse respeitado o saudável princípio republicano da alternância do poder.
A evolução técnica
Não resta dúvida que o sucesso do nosso voleibol se deveu também em grande parte ao fato de termos dois dos maiores técnicos da história da modalidade, José Roberto Guimarães, que também conquistou três ouros olímpicos – um com a seleção masculina e dois com a feminina – e Bernardinho.
Sobre o primeiro, fico devendo um futuro artigo.
Já sobre Bernardinho, limito-me – até por questão de espaço – a comentar uma característica pessoal que pode ser observada em qualquer de suas atividades, o perfeccionismo. Como atleta, empresário, técnico, escritor ou palestrante, essa característica é marcante, como ele mesmo reconhece no depoimento no livro Estratégia vitoriosa de empresa segundo seus personagens:
Como pessoa, sou exigente e inconformado. Aquela situação em que você nunca está conformado, por melhor que possa parecer. Tem sempre uma forma melhor de se fazer. Acho que essa tem que ser sempre a nossa filosofia de vida. Pode estar bom, mas pode melhorar. Acho que essa é a minha maior característica.
Se como pessoa ele se define dessa maneira, não poderia ser diferente nos outros papeis em que atua:
Sou um perfeccionista que sabe que a perfeição jamais será atingida. E, se isso fosse possível, também não gostaria de alcança-la. Seria o fim dos objetivos e eu não conseguiria viver sem eles. Tá bom, mas pode melhorar sempre!
São colocações de um obstinado, que procura dar o melhor de si em tudo o que faz, exigindo de si e de seus comandados ou suas comandadas a mesma coisa, seja num treino, seja num jogo, independentemente da importância do mesmo.
Para chegar onde chegou, Bernardinho também foi um estudioso obstinado, procurando obter o maior número possível de informações e devorando livros e outras publicações que pudessem agregar valor à sua atuação como técnico, escritor ou palestrante, recomendação que ele faz nos livros Transformando suor em ouro e Cartas a um jovem atleta.
No que se refere à fantástica escalada da seleção brasileira de voleibol sob seu comando, Bernardinho reconhece que recebeu diversas influências, sendo uma das mais marcantes a do técnico John Wooden, maior vencedor do basquete universitário norte-americano. Inspirado em John Wooden, Bernardinho adaptou a “Pirâmide do Sucesso”, onde combina valores e princípios com competências e habilidades. Afinal, não adianta ter um atleta que possui enorme habilidade, mas não segue os valores e princípios indispensáveis a qualquer equipe. Assim como não adianta ter alguém que é um exemplo na obediência aos valores e princípios, mas não tem a técnica e a habilidade requeridos de um atleta de alto rendimento.
Foi com esse modelo (Pirâmide do Sucesso), que a seleção brasileira atingiu o topo, transformando-se em referência mundial.
Porém, para Bernardinho, que discorda de John Wooden nesse aspecto, chegar ao topo é difícil, mas ainda mais difícil é permanecer no topo, uma vez que quando uma equipe atinge esse ponto e consegue permanecer nele por algum tempo ela se transforma naturalmente no “time a ser batido”.
As outras equipes passam a estudá-la detalhadamente, procurando a melhor forma de derrotá-la. Quem pratica ou gosta de esporte sabe o prazer que dá ganhar do campeão ou, num linguajar mais típico, “tirar uma casquinha do campeão”.
Com essa convicção, Bernardinho julgou que a Pirâmide do Sucesso, que fora essencial para que a seleção atingisse o topo, teria de ser substituída por outro modelo mais aperfeiçoado e que exigisse ainda mais dos atletas, pois os desafios seriam cada vez maiores. “Apesar de seu indiscutível valor”, afirmou, “a fórmula de Wooden me passava uma sensação de imobilidade – e eu precisava de um modelo mais dinâmico”.
Foi assim que Bernardinho elaborou o modelo que tomou o lugar da Pirâmide do Sucesso como base da preparação da seleção brasileira, a “Roda da Excelência”.
Nas palavras do próprio Bernardinho:
As novas experiências no esporte e as observações colhidas em um cotidiano marcado por constantes transformações levaram-me a criar uma proposta mais ágil: um corpo em movimento que gira, descreve círculos, evolui e dirige-se a um ponto determinado. Imaginemos que no centro da roda – como um eixo que a faz se movimentar, sair de onde está a busca constante da excelência.
Explicando como concebeu a Roda da Excelência, continua Bernardinho:
Distribuídos ao longo de sua circunferência situam-se os seguintes fundamentos: trabalho em equipe, liderança, motivação, perseverança/obstinação/superação, comprometimento/cumplicidade, disciplina/ética/hábitos positivos de trabalho.
A roda se movimenta sobre a estrada do planejamento rumo a um objetivo, uma meta. À medida que ela avança, cada uma das partes de seus seis grupos de componentes entra em contato com o planejamento para que a meta seja atingida.
PLANEJAMENTO
Com esse novo modelo, Bernardinho aumentou o grau de exigência dos atletas que se comprometiam a participar de cada novo ciclo olímpico, tirando-os cada vez mais da zona de conforto durante as prolongadas fases de treinamento que antecediam as principais competições. Com ele, a seleção brasileira manteve-se no topo, subindo ao pódio na maioria das competições, ainda que os títulos tenham rareado depois de 2010, até a sensacional conquista da medalha de ouro no Rio de janeiro em 2016.
Bernardinho não utiliza o modelo da Roda da Excelência apenas na condição de técnico, mas também nas palestras para as quais é constantemente requisitado. Afinal, revela:
No voleibol, isso [o movimento da roda em contato com o planejamento para que a meta seja atingida] representa o próximo jogo, o próximo campeonato ou a próxima temporada, mas no mundo corporativo poderia ser a próxima meta de vendas a ser batida ou a produtividade de uma determinada linha de produção.
Trata-se, portanto, de uma figura em permanente movimento com os seus componentes (o centro e as partes) interagindo para servir ao planejamento que, por sua vez, é traçado conforme a meta.
É por esse conjunto de razões que faço questão de tirar o chapéu para este economista formado pela PUC-RJ (outro exemplo de excelência), que acabou deixando de exercer a profissão de economista para se transformar em referência mundial como técnico de voleibol, colecionando títulos com as equipes e seleções por ele treinadas.
Concluo o artigo reproduzindo o quadro contido no livro Transformando suor em ouro em que Bernardinho faz uma síntese de seus valores mais relevantes.
NO VÔLEI COMO NA VIDA |
ENTENDER QUE A CONDIÇÃO DE FAVORITISMO ATRIBUÍDA A NÓS POR OUTROS DEVE SERVIR COMO SINAL DE ALERTA. (Redobrar a atenção com os detalhes da preparação) SABER QUE AS VITÓRIAS DO PASSADO SÓ GARANTEM UMA COISA: GRANDES EXPECTATIVAS E MAIORES RESPONSABILIDADES.
CRIAR ZONAS DE DESCONFORTO PARA AFUGENTAR A ARMADILHA DO SUCESSO E TESTAR O COMPROMETIMENTO DOS VITORIOSOS. |
Referências bibliográficas
BERNARDINHO. Transformando suor em ouro. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.
_______________ Cartas a um jovem atleta: determinação e talento: o caminho da vitória. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
KASZNAR, Istvan Karoly e GRAÇA Fº, Ary S. Estratégia Empresarial – Modelo de gestão vitorioso e inovador da Confederação Brasileira de Voleibol. São Paulo: M. Books do Brasil, 2006.
_______________ Estratégia vitoriosa de empresa segundo seus personagens. São Paulo: M. Books do Brasil, 2006.
WOODEN, John e JAMISON, Steve. Jogando para vencer. Tradução de Márcia Marques Oliveira. Rio de Janeiro: Sextante, 2010.
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