De arrepiar!
Poucas notícias causaram tanta surpresa na opinião pública mundial como a dos atentados ocorridos em 2011 na Noruega, considerada uma das nações mais tranquilas e pacíficas do mundo.
É exatamente sobre isso que se debruça Asne Seierstad, ela própria norueguesa, no excelente Um de nós, publicado no Brasil em 2016 pela Editora Record.
Em suas 559 páginas, a autora constrói, por meio de uma narrativa brilhante, um relato detalhado da tragédia, entremeando histórias da vida tanto do principal protagonista, Anders Behring Breivik, o autor dos atentados, como de muitos outros vitimados – direta ou indiretamente – pela ação, ou seja, assassinados e sobreviventes, seus familiares ou ainda de autoridades e de pessoas relacionadas ao próprio autor dos atentados.
Antes de passar à descrição da obra em si, cabe um esclarecimento diante de uma pergunta que me foi feita por mais de uma pessoa que se deparou comigo lendo uma obra tão volumosa. Por que razão dedicar tanto tempo à leitura de um assunto já superado, sobre o qual seria possível ter uma boa ideia por meio de notícias ou artigos fartamente disponíveis na internet?
Para mim, a resposta é óbvia, mas eu entendo perfeitamente o questionamento numa época em que os amantes da leitura são cada vez mais limitados. A leitura de um livro permite, com frequência, que o conhecimento adquirido pelo leitor vá muito além do tema específico ou central abordado pelo referido livro. O verdadeiro leitor estabelece um tipo especial de relação com a obra que lhe abre diversas possibilidades, num processo quase inigualável de agregação de conhecimento. Em Um de nós, por exemplo, Seierstad permite que o leitor conheça (ou se sinta estimulado a buscar mais informações) o funcionamento do sistema político norueguês, bastante ilustrativo do chamado Estado do Bem-Estar (Welfare State).
Na primeira – e mais extensa – das três partes em que o texto está dividido, a autora relata com preciosa riqueza de detalhes o histórico dos personagens que terão papel de relevo ao longo do livro. Nesse particular, destaca-se a trajetória do próprio Anders Breivik, que, já na infância e na adolescência, registra distúrbios que mereceram atenção do sistema de acompanhamento psicológico oficial, até chegar à sua fase adulta, quando seus problemas de relacionamento e de rejeição ficam mais evidentes e sistemáticos.
Ao narrar a trajetória de Breivik, a autora passa por fases particulares de sua vida, como aquela em que ele foi pichador ou aquela em que vivia fechado vinte e quatro horas num quarto jogando videogames relacionados à violência. Foram períodos nos quais Breivik foi ficando cada vez mais obsessivo com os fatores que, no seu entender, punham em risco o futuro da Noruega e da Europa: o multilateralismo cultural, o avanço do islamismo, o feminismo, as cotas de gênero, a revolução sexual, a Igreja transformada, a desconstrução das normas sociais e um ideal socialista igualitário da sociedade.
Vale também destacar a forma como a autora tece uma trama interessantíssima com o relato de outros personagens importantes, como Simon Sæbø, Viljar Hanssen e Anders Kristiansen três amigos inseparáveis da província de Troms que ingressaram juntos na AUF, a juventude trabalhista, ou de Bano e Lara Rashid, duas irmãs de uma família de refugiados curdos que fugiu da barbárie reinante no Iraque de Saddam Husseim, para, depois de enfrentar enormes dificuldades, conseguir finalmente a residência norueguesa. Tanto os três jovens amigos, como as duas irmãs oriundas do Iraque encontravam-se entre as dezenas de participantes do acampamento de verão do Partido Trabalhista na pequena ilha de Utøya, nas imediações da capital norueguesa.
Nos capítulos derradeiros da primeira parte, a autora narra os preparativos de Anders Breivik, primeiro na casa de sua própria mãe e depois numa pequena fazenda alugada especificamente com esse objetivo e, finalmente, os atentados em si, começando pela explosão de um carro-bomba numa região de Oslo conhecida como Quarteirão do Governo, por reunir diversos organismos governamentais e que resultou na morte de oito pessoas. E, finalmente, o assassinato de 69 pessoas na ilha de Utøya, jovens na esmagadora maioria, exterminados com diversos tiros, com inacreditáveis requintes de crueldade.
Ainda nessa parte, chama atenção o despreparo e a falta de articulação dos órgãos de segurança noruegueses, que explicam, em boa parte, como foi possível que um indivíduo agindo isoladamente – e cometendo diversos deslizes em suas ações – conseguisse cometer um atentado de tamanha magnitude.
Na segunda parte, Asne Seierstad descreve todo o processo que envolveu o julgamento de Anders Breivik, dando realce não apenas ao comportamento do réu, que impressiona pela completa falta de qualquer arrependimento pelas ações cometidas, mas também ao papel desempenhado pelos juízes, pelos psicólogos contratados para avaliar se o réu era ou não passível de punição, aspecto que mereceu enorme atenção na época. Esta parte se encerra com a sentença proferida no dia 24 de agosto de 2012. Breivik recebeu a pena máxima prevista por lei na Noruega: 21 anos de prisão. Porém, na sentença, constou a palavra “prorrogável”. Sendo assim, a pena poderia ser estendida por mais cinco anos, mais cinco anos, mais cinco anos – até que a morte o levasse.
Nos capítulos finais, que compõem a terceira parte do livro, a autora relata a dor das famílias de algumas das vítimas dos atentados de 2011, com contundentes depoimentos de seus parentes. Descreve, também, a fase final da vida de Wenche Behring Breivik, a mãe de Anders Breivik, marcada, como não poderia deixar de ser, por absoluta melancolia.
No capítulo final, Asne Seierstad explica como surgiu o livro. Ela, que é autora de outras obras de sucesso, entre as quais O livreiro de Cabul, 101 dias em Bagdá e De costas para o mundo, todos mostrando situações de conflito, confessa que jamais imaginaria que escreveria um livro dessa natureza envolvendo seu próprio país natal.
Julgo importante reproduzir um trecho desse depoimento da autora:
Um de nós é um livro sobre a sensação de pertencer. E é um livro sobre a comunhão. Os três amigos de Troms tinham claras referências de um lar, tanto geograficamente, como politicamente e em suas famílias. Bano pertencia a um só tempo ao Curdistão e à Noruega. Seu desejo mais forte era se tornar “uma de nós”. As duas variantes da língua norueguesa, o traje típico a história local de Nesodden. Não havia atalhos.
Um de nós é também um livro sobre a busca de comunhão sem êxito. No fim, o terrorista optou por deixar a comunidade e atacá-la da forma mais brutal possível.
Ao trabalhar com o livro, percebi que também é uma narrativa sobre a Noruega. Uma história contemporânea sobre nós.
A todos que falaram comigo, escreveram para mim ou leram: fizemos este livro juntos.
Por meio do livro, desejo dar algo de volta à comunidade de onde ele saiu.
Um comentário final, de cunho pessoal. Considero a leitura de um livro como Um de nós, que relata a que ponto pode levar o fanatismo de um indivíduo qualquer, um alerta muito oportuno numa época como a que estamos vivendo, pontilhada por radicalismos de toda ordem: política, religiosa, ideológica, de gênero, étnica…
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