Snowden
Por Humberto Pereira da Silva[1]
Oliver Stone é uma das estrelas do cinema americano. Diretor de obras como Platoon (1986), Nascido em 4 de julho (1989), JFK (1991) e Mi Amigo Hugo (2015), direciona seu olhar crítico para a política e princípios que fortalecem sentimentos como o de patriotismo e de identidade nacional. Engajado, principalmente afinado com certo ideário Democrata, seus filmes seguem na contramão do padrão hollywoodiano que exalta o heroísmo em situação de confronto.
Com o affair Snowden, Stone tem mais uma vez oportunidade de destilar seu veneno em princípios que norteiam a vida americana e que são postos em xeque em momento de crise, como os direitos de inviolabilidade da privacidade e de livre movimentação sem controle do Estado; nos Estados Unidos, conforme os pais fundadores, a terra da liberdade.
Assim, Snowden, seu filme mais recente, traz à baila o quanto de esquizofrenia há nas estruturas de poder da nação mais poderosa do planeta. O affair Snowden, só para lembrar, refere-se às insólitas e inesperadas revelações de Edward Snowden em 2013. Ex-analista da Agência de Segurança Nacional (NSA), ele revelou aos jornais The Guardian e Washington Post como o governo americano monitora comunicações e tráfico de informações entre suspeitos e aliados.
A partir de suas revelações, o monitoramento das comunicações é realizado pelo material sigiloso do programa de vigilância PRISM. O programa seria capaz de fornecer à NSA diversos tipos de mídia sobre os alvos escolhidos, como correio eletrônico, conversas por áudio e por vídeo, fotos, transferências de arquivos, notificações de login etc. Segundo Snowden, nove das grandes corporações de internet participam do programa: Microsoft, Google, Facebook, Yahoo!, Apple, YouTube, AOL, Paltak e Skype.
Suas revelações caíram como bomba; chocaram autoridades governamentais supostamente monitoradas, que, no discurso, exigiram explicações do governo americano. O affair constitui-se na maior saia justa com a qual o governo Barack Obama teve de lidar. No momento, Snowden encontra-se asilado na Rússia, enquanto o governo americano tenta extraditá-lo, a fim de que seja julgado por espionagem.
Sensível ao momento da vida política americana, com a recente eleição do Republicano Donald Trump à presidência, é com esse material explosivo que Stone realizou seu Snowden. A se destacar inicialmente que o filme de Stone se torna mais interessante quando visto ao lado do documentário Citizenfour (2014), dirigido por Laura Poitras, que mostra justamente as declarações de Snowden aos jornalistas do The Guardian e do Washington Post.
O documentário, que foi indicado ao Oscar, é uma espécie de espelho necessário para que se possa ter em mente a versão ficcionalizada de Stone. O Snowden de Stone tem início com o início das gravações das entrevistas de Snowden ao jornalista britânico Glenn Greenwald, feitas por Laura Poitras em Hong Kong. Antes de se asilar na Rússia, Snowden fugira do Havaí, onde trabalhava, e entregou os arquivos com as revelações da espionagem americana a Greenwald em Hong Kong.
Em flashback, então, Stone exibe acontecimentos de sua vida a partir de sua saída do Exército em razão da fratura de suas pernas. Com uma sequência cronológica precisa, Snowden acompanha os passos do protagonista até a entrevista gravada por Poitras. Hábil em informática, ele compensaria a frustração por não servir às forças armadas americanas ingressando na NSA, onde serviria o país trabalhando na Inteligência.
Embora notado pelos superiores, Snowden é apenas mais um dos inúmeros funcionários da Inteligência que trabalha no programa de vigilância PRISM. Inicialmente ele não revela qualquer contrariedade com o trabalho e tem uma vida comum ao lado da namorada.
Mais um entre os inúmeros funcionários de um Serviço de Inteligência, Snowden passaria a se incomodar com o fato de que ele próprio e sua namorada tivessem a vida íntima vista por quem trabalhava justamente ao seu lado. A desconfiança alteraria seu comportamento. Ele aos poucos se torna arredio, pouco comunicativo no ambiente de trabalho, e entra em crise com respeito à compreensão do que seria efetivamente servir o país.
Stone passa então a focar a ação do filme no drama de Snowden em sua relação com a namorada. Ciente de que ele não lhe pode revelar o que se passa em seu ambiente de trabalho, ela o acompanha até o Havaí e mantém-se ao seu lado; mas aos poucos ele passa a ter dificuldade para conciliar a vida de um agente de inteligência e sua vida íntima, em que qualquer aproximação da câmara do celular seria registrada pelo programa de vigilância.
Vistas externamente, e principalmente considerando seus efeitos, as motivações de Snowden para revelar documentos secretos da Inteligência americana instigam curiosidade. Ora, tendo agido sozinho, como sem que houvesse desconfiança chegou a Poitras e Greenwald? Não é o caso de imaginar que o filme, ou um filme, finalmente revelasse isso. E nisso, entendo, o nó do affair de que o filme de Stone passa ao largo.
Seria um acidente com uma probabilidade ínfima que um funcionário da Inteligência entrasse em conflito em suas funções sem gerar qualquer estranheza; assim como que pudesse passar incólume com informações bombásticas do Havaí para Hong Kong. Quer dizer, as motivações dele e o modo “cinematográfico” com que chegou a Poitras e Greenwald servem bem à realização fílmica. O PRISM, que tudo controla, não teria arquivado que Snowden fez download de informações ultra secretas?
Com o filme de Stone temos então uma obra interessante para refletirmos sobre a maneira pela qual o governo americano estabelece vigilância global. Todos os indivíduos, em qualquer canto do mundo que portem um celular estão nos arquivos do PRISM. Bilhões e bilhões de informações são desinteressantes para a política americana, certo, mas nem um pouco desinteressantes para o voyeurismo de colegas ao lado.
Sob esse aspecto, inegável que Stone aponta para problemas tão embaraçosos quanto as recentes revelações da correspondência por e-mail da candidata Hillary Clinton em plena campanha presidencial. Ou seja, o Snowden de Stone faz que pensemos no quanto as tecnologias da informação limitam o sentido de intimidade numa sociedade cibernética e, simultaneamente, estabeleçam o primado do controle total das ações de qualquer indivíduo. Um embaraço, pois, para os princípios de inviolabilidade da privacidade e de livre movimentação.
Por outro lado, obra de ficção e deve-se ter sempre isso em mente, Snowden romantiza as intenções do protagonista e cria um herói solitário às avessas. Aquele que movido por uma crise pessoal decide chutar o pau da barraca e trair seu juramento de fidelidade ao país numa atividade extremamente secreta. E que, em contrapartida, confia numa cinegrafista e num jornalista, com quem não teve contato anterior explícito, para revelar a traição.
Não se sabe e entendo jamais se saberá como e por que Snowden resolveu fazer as revelações que fez. A saída do Havaí e a chegada a Hong Kong para encontrar Poitras e Greenwald é um enigma de que teremos tão somente especulações e versões com infindas arestas. Certo, mas isso é a realidade do iceberg que, ao fim e ao cabo, constitui a atividade do serviço de espionagem. No filme, o que interessa, é vermos como nossas noções de intimidade e privacidade se esfacelaram com as novas tecnologias de controle e vigilância em escala global.
Humberto Pereira da Silva é professor de Filosofia no curso de Artes Visuais e de Técnicas de Pesquisa no de Economia na FAAP. Também exerce a atividade de crítico de cinema, sendo colunista regular da Revista de Cinema e do site Cinequanon. É autor dos livros “Ir ao cinema: um olhar sobre filmes” (Musa Editorial, 2006), “Pragmática da linguagem e ensino de ética: quando dizer não é fazer” (Paco Editorial, 2012) e “Glauber Rocha: cinema, estética e revolução” (Paco Editorial, 2016).
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