Real – O Plano por Trás da História

Por Humberto Pereira da Silva[1]

 

Os chamados anos de chumbo da ditadura militar renderam alguns dos filmes mais marcantes do cinema brasileiro. A se considerar o espetro político com leque da esquerda à direita, tem sido apanágio daquela oferecer interpretação histórica de períodos controversos e conturbados de nossa história: a chamada direita, na verdade, muitas vezes expressa desdém pelo cinema nacional, e pela possibilidade de, por meio dele, oferecer sua versão histórica.

De fato, história e cinema se entrelaçam, e os anos de redemocratização instigam olhares generosos para quem vê o cinema como possibilidade de versão dos acontecimentos. Em nossa história recente, com a redemocratização a partir de 1985 um tema predominante, e que diz muito do que foi o país naqueles anos: um período de descontrole da inflação, que atingiu níveis estratosféricos. No governo de Itamar Franco, após uma sequência mal sucedida de planos de combate a inflação, mais um plano econômico salvacionista para conter a inflação galopante.

O plano, chamado Real, foi posto em prática pela equipe econômica do ministro Fernando Henrique Cardoso. Bem sucedido, o Plano Real catapultou a candidatura de Fernando Henrique à presidência do Brasil em 1994, pôs fim aos terríveis anos de inflação e mudou nossa mentalidade sobre os nexos entre economia, política e consumo. A esse respeito, nossa história pode ser dividida em antes e depois do Real.

Pela importância de que se reveste em nossa sociedade como um todo, pelas expectativas criadas e que pouco mais de duas décadas depois podem ser devidamente examinadas, pelas tensões daquele momento, com personagens que tiveram peso determinante em sua elaboração, o Plano Real é dotado de caráter simbólico para a realização fílmica. Essa realização torna-se tão mais interessante quando vista pelo viés da direita política hoje, momento de intensa polarização ideológica. É isso que está por trás de Real – O Plano por Trás da História, filme produzido por Ricardo Fadel Rihan, dirigido por Rodrigo Bittencourt e baseado no livro 3.000 dias no Bunker, de Guilherme Fiuza.

Embora dirigido por Bittencourt, trata-se de um projeto pessoal de Rihan, que com ele quis exibir os bastidores da elaboração do Plano com foco na figura do economista Gustavo Franco. Tendo, então, Gustavo Franco como personagem central, Real se desenvolve de modo a balizar sua peculiar visão sobre como conduzir a política econômica do país e seu temperamento na vida privada. Assim, em Real vemos Franco em embate com outras figuras proeminentes da equipe econômica de que faz parte e com seguimentos da esquerda, que expressa visão estatizante para a condução da política econômica, tanto quanto de seus humores e caprichos nas relações privadas e íntimas.

As intenções de Rihan são para mim louváveis a se ter em vista o embate político e econômico necessário quando se avizinha um cenário controverso. Importante, pois, assim entendo, a atenção para um viés que arejaria nossa filmografia com a “leitura” à direita de um momento que mudou nossa história. Rihan, contudo, com respeito ao matiz ideológico, faz declarações nas quais rejeita postar-se de um dos lados do espetro político. Isso traz um problema: o filme deve ser apreciado mesmo que seus efeitos, uma crítica da direita à esquerda, sejam negados por seu idealizador ou, pelo contrário, não se trata de uma crítica à direita da visão político-econômica da esquerda?

A se levar em conta as declarações explícitas de Rihan, não há partidarismo em seu filme; ou seja, visão político-econômica à direita ou à esquerda, pois para ele esses conceitos da ciência política não fazem sentido hoje. Uma implicação perigosa desse posicionamento: não havendo direita e esquerda, o discurso político-econômico de Gustavo Franco – sempre crítico às soluções comunistas, portanto de esquerda – se esvazia e fica sujeito a idiossincrasias de um enfant gâté. Ao negar o sentido de conceitos como direita e esquerda num filme crítico à esquerda, Rihan cai numa armadilha: nega o embate e, concomitantemente, minimiza o potencial crítico do herói de seu filme.

Ocorre que num filme seus efeitos e seu valor artístico são autônomos em relação ao que fala seu idealizador. Nesse sentido, Real poderia ser uma grande obra fílmica independentemente de seu matiz ideológico (O Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl é paradigma de obra rejeitada como propaganda politica e aceita como arte). Não obstante, embora se possa pensá-lo como uma iniciativa louvável que aborda um momento capital em nossa história recente, Real – O Plano por Trás da História não escapa aos questionamentos previsíveis de uma obra ficcional com personagens reais. Portanto, está nisso e menos no falso posicionamento de Rihan o calcanhar de Aquiles do filme Real.

O próprio Gustavo Franco, herói no filme, em entrevistas expressa desconforto com o que viu e categoricamente diz que sobre ele o que se tem é uma fábula. A negativa de Gustavo Franco, claro, pode conter mal-estar ao se vir retratado como excessivamente passional e egocêntrico, ao se criar uma aura que mistura ambição pelo poder e cacoetes de menino mimado. Contudo, a questão no filme não é de verossimilhança, mas de densidade na construção da psique do personagem.

Gustavo Franco no filme é raso, plano, excessivamente caricatural. Mesmo que, de fato, seu temperamento fosse o que é exibido, isso retira da obra o que me parece essencial desde a Poética de Aristóteles: a carga dramática, o sentido de que as ações do herói, Gustavo Franco, jogam com o destino, pois as escolhas dele, do personagem, prestam contas à história. Sem carga dramática, o filme flui na sequência cronológica dos acontecimentos, entremeada por situações prosaicas da vida pessoal do intelectual brilhante, mimado, que tem chiliques ao ser contrariado.

Caso Rihan tenha querido fazer um grande filme, entendo que ele falhou ao desconsiderar momentos de tensão e de indecisões numa equipe econômica que jogava o tempo todo com o sucesso ou fracasso na carreira de seus integrantes. Para uma situação primária de exame histórico, uma coisa é olharmos retrospectivamente o passado e vermos que o Plano Real “deu certo”; outra coisa é o quanto, em suas escolhas, figuras como Gustavo Franco, Pedro Malan ou Pérsio Arida punham em xeque suas reputações. O que se exibe é, além de um Franco egocêntrico e mimado, um Malan e um Arida que se resumem, enquanto personagens, a joguetes dos caprichos pessoais de Gustavo Franco.

Falta, portanto, tensão, dramaticidade a Real. E, ao perder o sentido de concentração das figuras chaves da elaboração do Plano Real, Real acabou se perdendo na extensão temporal da narrativa. O filme vai de 1993 até 1999. Momento em que Gustavo Franco esteve à frente de decisões importantes na política econômica do País. Esses seis anos de nossa história, no entanto, foram marcados por episódios que requereriam outro filme, como sobre os efeitos no Plano Real da crise dos tigres asiáticos ou mesmo sobre os bastidores da reeleição de Fernando Henrique em 1998. Ao esticar o tempo narrativo, esses acontecimentos são acessórios em Real – O Plano por Trás da História.

Bem, todo filme de fundo histórico repousa sobre recortes, sobre acentos num ou noutro ponto. Em Real Rihan fez os dele; nisso, seu viés; do meu ponto de vista frágil porque se dispersa em momentos que, com efeito, acabam entendidos como uma visão superficial num espaço de tempo amplo e evitavelmente controverso. Por fim, Real – O Plano por Trás da História tem o mérito de, por meio do cinema, oferecer interpretação histórica de um momento de nossa história, o que tem sido feito quase exclusivamente pela esquerda. Se não se trata de um grande filme, ao menos contraria o desdém da direita pelo cinema nacional, e exibe assim uma versão histórica de um momento capital para os rumos do País.

[1] Humberto Pereira da Silva é professor de Filosofia no curso de Artes Visuais e de Técnicas de Pesquisa na Economia na FAAP. Também exerce a atividade de crítico de cinema, sendo colunista regular da Revista de Cinema e do site Cinequanon. É autor dos livros Ir ao cinema: um olhar sobre filmes (Musa Editorial, 2006), Pragmática da linguagem e ensino de ética: quando dizer não é fazer (Paco Editorial, 2012) e Glauber Rocha: cinema, estética e revolução (Paco Editorial, 2016).