A hora e a vez da criatividade

 

“Eu olho para as coisas como elas sempre foram e pergunto: Por quê? Eu olho para as coisas como elas poderão vir a ser e pergunto: Por que não?”

George Bernard Shaw

 

 Considerações preliminares

No Brasil, os grandes temas costumam chegar com certo atraso (gap) em relação aos países mais desenvolvidos. Assim foi com o conceito de qualidade, colocado definitivamente na agenda no Brasil por Fernando Collor, em sua campanha à presidência da República. Até então, o referido tema, cuja importância já estava consolidada nos Estados Unidos, no Japão e em vários países da Europa, aqui ainda era visto como uma espécie de modismo.

O mesmo ocorreu com o conceito de criatividade, cuja importância só foi reconhecida uma ou duas décadas depois de ter se consolidado como fator de fundamental importância tanto na vida das pessoas como das organizações.

A evolução dos estudos e pesquisas sobre criatividade

A década de 1990, última do século XX, foi chamada por muitos analistas de década do cérebro, ou de década do conhecimento, ou ainda de década da inteligência. Houve também quem a chamasse de década da criatividade. A rigor, todos estão certos, uma vez que há estreita relação entre todas essas denominações. O importante a se destacar de tudo isso é que ao chegar ao fim do século XX o homem havia se dado conta, definitivamente, da importância da criatividade para melhorar o seu próprio desempenho e, por extensão, da sociedade de uma forma geral.

O primeiro passo para tal consistiu em saber como funciona o nosso cérebro. Afinal, foi aí que tudo teve origem. O final do século XX viu o conhecimento sobre o cérebro humano deixar de ser assunto de um reduzido núcleo de especialistas para se transformar num assunto de interesse muito mais amplo, a ponto de se tornar matéria de capa das revistas de maior circulação no País.

Conhecendo melhor o funcionamento do cérebro, foi possível ampliar o conhecimento sobre a criatividade e, com isso, diversos tabus foram caindo:

1º) A criatividade não é um dom natural, com o qual algumas pessoas nascem e outras não ⇒ Todos nós possuímos um potencial criativo a ser desenvolvido, independentemente da personalidade de cada um.

2º) Criatividade não pode ser confundida com magia ⇒ Isso implicaria em que as pessoas criativas seriam conhecedoras de algum truque ou algo do gênero, inacessível às pessoas comuns.

3º) Criatividade também não é mistério ⇒ Portanto, nada de imaginar que a fonte da criatividade seja algo misterioso ou secreto.

4º) Criatividade não significa loucura ⇒ As pessoas criativas não precisam ser ou aparentar ser loucas ou excêntricas.

O estudo da criatividade, porém, não começou apenas no fim do século passado.  Apesar de muitos estranharem, a criatividade vem sendo objeto de estudo desde 1900, quando o francês Theódulo Ribot publicou o livro A imaginação criadora, com noções embrionárias de pessoa criativa e processos criativos. Meio século se passou sob a denominação de “imaginação”, acompanhada muitas vezes do qualificativo “criadora”, até que em 1950 Guilford a batiza com o nome de Criatividade.

De lá para cá, as pesquisas se intensificaram, podendo-se falar na existência de cinco gerações de pesquisadores. A primeira, voltada para o “pensamento criativo”, enfatizava o desenvolvimento de habilidades (anos 50). Essa geração não conseguiu despertar o interesse da sociedade em geral para o tema da criatividade, por isso os estudos e eventuais avanços ficaram restritos aos limites dos consultórios e das clínicas de psicólogos e neurocientistas que se debruçaram sobre ele. A noção de criatividade esteve nessa fase associada à capacidade de se diferenciar. Diversas definições surgiram, sendo a que mais me agrada a de Charles ‘Chic’ Thompson,  a capacidade de olhar a mesma coisa que todos os outros, mas ver algo diferente nela”.

A segunda, voltada para a “solução criativa de problemas”, dava ênfase à produtividade, alertando, assim, para um fato relevante para o mundo dos negócios: a criatividade pode se constituir numa importante ferramenta para a obtenção de vantagem competitiva. Para essa geração, que tem em Alex Osborn, o criador do brainstorming seu maior expoente, a criatividade incorpora um fator fundamental para quem vive num ambiente competitivo, a agregação de valor. Uma visão mais ampla e detalhada deste conceito de criatividade será objeto de análise do próximo artigo.

Figura 1 – Modelo Osborn-Parnes (ou CPS) de solução criativa de problemas

Já a terceira geração, que tem em David de Prado um de seus mais consagrados representantes, dá ênfase à ideia da autotransformação, acreditando que uma pessoa não poderá desenvolver a criatividade, mudando a maneira de ver o mundo e de fazer as coisas, se antes ela não se transformar por dentro. Para tanto, é necessário investir primeiro no autoconhecimento; depois, uma vez estando a pessoa convencida da necessidade de desenvolver a criatividade, na autotransformação.

Passada a fase da disseminação da importância da criatividade, estamos já numa nova etapa. Como diz Saturnino de la Torre, “a criatividade foi considerada como uma atitude ou qualidade humana pessoal e intransferível para gerar ideias e comunicá-las, para resolver problemas, sugerir alternativas ou simplesmente ir mais além do que se havia aprendido”.

Nesse sentido, a quarta geração é bem diferente e aponta para novos desafios. Um século depois de seu nascimento, a criatividade se reveste de um caráter mais amplo. É como se a passagem para um novo século significasse a celebração da maioridade da criatividade, que sai da vida familiar acadêmica para abrir-se à vida social, como em outro tempo o fizeram a educação, a saúde ou a defesa do meio ambiente. De acordo com de la Torre, “a criatividade como valor social virá marcada por um novo espírito, esta vez envolto em problemas de convivência entre as diferentes civilizações e culturas que conformam a humanidade. É preciso para isso um tipo de criatividade menos academicista e mais estratégica e atitudinal. Uma criatividade comprometida com a busca de soluções a problemas sociais, aberta à vida, à juventude, ao cotidiano”.

A quinta e mais recente geração, surgida já no início deste novo século, é conhecida como economia criativa e se caracteriza, em síntese, pela geração e exploração da propriedade intelectual.

Observando-se a trajetória, constata-se uma importante mudança: até a terceira geração, os estudos e pesquisas sobre criatividade estavam mais voltados para a dimensão individual; a quarta e a quinta gerações, por sua vez, revelam uma preocupação mais ampla, marcada pela busca de soluções para questões sociais e para a formulação de políticas públicas.

Criatividade como diferencial competitivo

 O reconhecimento cada vez maior da importância da criatividade atingiu o plano microeconômico assumido pela criatividade, tornando-se mais acentuado à medida que a globalização foi se consolidando como uma das características mais marcantes da transição do século XX para o século XXI. Afinal, gostemos ou não, a competitividade é uma das consequências mais perceptíveis da globalização e, dentro dessa perspectiva, o desenvolvimento da criatividade passou a ser objetivo fundamental das pessoas, das empresas e, por que não, dos países. Como observou o sociólogo italiano Domenico De Masi em entrevista a O Estado de S. Paulo, em 1994: “Vivemos a era pós-industrial. Neste mundo, o trabalho físico é feito pelas máquinas, e o mental, pelos computadores. Ao homem cabe uma tarefa na qual ele é insubstituível: ser criativo, ter ideias…”.

 

Figura 2 – Domenico De Masi

Isso dá ainda mais importância ao papel da segunda geração a se destacar nos estudos e pesquisas sobre criatividade. Essa geração, que se voltou para a “solução criativa de problemas”, deu ênfase à produtividade, alertando, assim, para um fato relevante no mundo dos negócios: a criatividade passou a se constituir numa importante ferramenta para a obtenção de vantagem competitiva. Para essa geração, a criatividade incorpora um fator essencial para quem vive num ambiente competitivo, a agregação de valor. Conceitualmente, portanto, criatividade passa a ser definida como a capacidade de fazer existirem coisas novas ou únicas e que agreguem valor.

Nessa época (décadas de 1970, 1980 e 1990), o interesse pela criatividade aumentou muito, extrapolando os estreitos limites a que estivera contido até então e passando a receber a atenção de núcleos especializados em universidades e institutos de pesquisas, primeiro nos Estados Unidos, depois na Europa e em diversos países da Ásia. Importantes contribuições vêm a público, entre as quais as de Alex Osborn, Sidney Parnes, Edward de Bono, Paul Torrance e Tony Buzan.

Num cenário da economia globalizada, portanto, em que a acirrada concorrência desponta como uma de suas mais nítidas características, muito mais importante do que o tamanho das empresas ou dos países passou a ser a sua competitividade – aspecto no qual o Brasil aparece pessimamente classificado nos rankings internacionais. Mais do que nunca, as empresas precisam estar aptas a oferecer bens e serviços capazes de encantar o consumidor. Esta, aliás, é uma das coisas de que nem todos se aperceberam. Muita gente ainda pensa que a palavra qualidade continua a se constituir no objetivo máximo das empresas, com o qual elas podem obter a fidelização dos clientes. Isto, na verdade, já se tornou coisa do passado. No mundo globalizado, os padrões de qualidade são uniformizados e os bens e serviços são classificados de acordo com padrões internacionais. Assim, qualidade deixou de ser diferencial e passou a ser pré-requisito. Sem esses padrões internacionais de qualidade, as empresas não podem sequer participar do competitivo e cada vez mais seletivo comércio internacional. E a palavra que tomou o lugar da qualidade como fator de fidelização foi a palavra encantamento, ou seja, o objetivo das empresas passou a ser o fornecimento de bens ou serviços que vão além das expectativas dos consumidores. Daí a importância crescente da criatividade, pois é através dela e da inovação que muitas empresas têm conseguido surpreender e encantar os consumidores, oferecendo-lhes algo que supera suas próprias expectativas.

 

Referências bibliográficas e webgráficas

 BUZAN, Tony. Use both sides of your brain. Viking – Penguin – Plume, s/d.

 DE BONO, Edward. Criatividade levada a sério. São Paulo: Pioneira, 1994.

 FLORIDA, Richard. A ascensão da classe criativa. Porto Alegre, RS: L&PM, 2011.

 GIANNETTI DA FONSECA, Eduardo. Globalização, transição econômica e infraestrutura no Brasil. Texto preparado para o Seminário “Competitividade na infraestrutura para o século XXI”, promovido pelo Instituto de Engenharia, realizado dia 24/ 09/96 e reproduzido na série Ideias Liberais. São Paulo: Instituto Liberal, Ano IV, Nº 62, 1996.

 HOWKINS, John. Economia criativa: como ganhar dinheiro com ideias criativas. São Paulo: Makron Books, 2013.

IMD – International Institute for Management Development. Índice de Competitividade Mundial 2017. Disponível em http://www.fdc.org.br/blogespacodialogo/Lists/Postagens/Post.aspx?ID=609.

MORAES, Maria Cândida e DE LA TORRE, Saturnino. Sentipensar: fundamentos e estratégias para reencantar a educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

 OSBORN, Alex F. O poder criador da mente – Princípios e processos do pensamento criador e do “brainstorming”. São Paulo: IBRASA, 1972.

 PRADO, David de. Técnicas creativas y linguaje total. Madrid: Narcea, 1988.

 SERRA, Floriano. E por que não? São Paulo: Editora Gente, 1992.

THOMPSON, Charles “Chic”. Grande idéia! São Paulo: Saraiva, 1993.

TORRANCE, Paul. Creativity – just wanting to know. Pretoria, South Africa: Benedic Books, 1995.

 TORRE, Saturnino de la. Creatividad plural: sendas para indagar sus múltiples perspectivas. Barcelona: PPU, 1993.

_______________  Dialogando com a criatividade. São Paulo: Madras, 2005.