Como não combater a inflação

 O livro que, infelizmente, poucos leram

 

 

“Os controles são profunda e intrinsecamente imorais. Substituindo o governo da lei e da cooperação voluntária no mercado pelo governo dos homens, os controles ameaçam os próprios fundamentos de uma sociedade livre.”

Milton Friedman

 

Depois de muitos anos, o Brasil fechou o ano de 2017 com uma inflação acumulada de 2,95%. Como segue vigorando no País o regime de metas de inflação (inflation target), e a inflação anual registrada ficou abaixo da meta estabelecida – 4,5%, admitindo-se uma tolerância de 1,5% para cima ou para baixo – o ministro da Fazenda foi obrigado a apresentar uma nota oficial explicando os motivos pelos quais isso aconteceu.

Trata-se, sem dúvida, de uma constatação alvissareira, uma vez que, lamentavelmente, os brasileiros acostumaram-se a conviver com taxas médias de inflação muito superiores às observadas em outros países do mundo. Mesmo depois do êxito alcançado pelo Plano Real, que conseguiu eliminar a hiperinflação, as taxas verificadas em nosso país, ainda que baixas comparativamente às que prevaleceram nas décadas de 1970 e 1980, quando atingiram três e até quatro dígitos, permaneciam elevadas se comparadas com as taxas registradas nos países desenvolvidos e mesmo com as de muitos países em desenvolvimento.

Na segunda metade da década de 1980 e nos primeiros anos da década de 1990, o cenário econômico brasileiro foi caracterizado pela presença de um tripé perverso que combinava estagnação prolongada, inflação crônica e pressão das dívidas – externa e interna.

Para fazer frente a essa perversa combinação, os governos de José Sarney e Fernando Collor usaram e abusaram dos chamados planos heterodoxos que possuíam, entre seus componentes, ações de tabelamento e/ou congelamento de preços e salários.

Infelizmente, os responsáveis pela elaboração e implementação desses planos não devem ter lido o livro Quarenta séculos de controles de preços e salários, que tem o sugestivo subtítulo O que não se deve fazer para combater a inflação. Nele, os autores Schuettinger e Butler mostram, com riqueza de exemplos, que medidas dessa natureza fracassaram no combate à inflação sempre que tentadas na Antiguidade (Egito e impérios grego e romano), na Idade Média, na Era Moderna e na Idade Contemporânea.

Entre os exemplos citados no livro referentes à Antiguidade, dois merecem destaque especial com direito a reprodução parcial nos apêndices, o Código de Hammurabi e o Edito de Diocleciano.

Mesmo que o uso de controles de preços e salários não tenha se limitado a períodos excepcionais, caracterizados por guerras ou grandes catástrofes naturais, não há dúvida de que nessas situações, que servem, por si só, para desestabilizar a economia e provocar o aumento do nível geral de preços, os governantes tenham se sentido mais à vontade e estimulados à sua aplicação.

Exemplo típico disso foi a adoção de rígidos controles por parte dos governos dos países que viveram as agruras da hiperinflação nos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, como pode ser visto na tabela 1.

Tabela 1

Hiperinflações, 1920 – 1924

(Índices mensais e número de meses e anos)

País

Taxa média mensal Índice máximo verificado (data) Nº de meses com inflação

 > 50%

(< 25%)

Nº de anos com inflação

> 100%

Áustria

17 129

(8/22)

4

(10)

3

Alemanha

949 29.525

(1/23)

11

(20)

4

Hungria

17 98

(7/23)

5

(9)

3

Polônia 33 275

(10/23)

9

(16)

3

Fonte: Cagan, 1956, and Sargent, 1982.

Essas hiperinflações ocorreram não só em função da Primeira Guerra Mundial, mas também, e principalmente, em decorrência das retaliações impostas na Conferência de Versalhes aos países derrotados. Tais retaliações, aliás, foram duramente criticadas por um jovem economista que integrava a delegação inglesa na referida conferência, que retornou a seu país descontente com o andamento das negociações e escreveu um livro em que previu o que ocorreria com os países derrotados, que não teriam condições de atender as exigências que estavam lhes sendo impostas. Tal livro, As consequências econômicas da paz, tornou-se um clássico no campo das relações internacionais.

John Kenneth Galbraith, o irreverente professor da Universidade de Harvard, referiu-se a este episódio da seguinte forma em A era da incerteza:

O ambiente em Paris nos primeiros meses de 1919 era de vingança, míope, indiferente às realidades econômicas, e isso horrorizou Keynes, como também o horrorizaram seus colegas de delegação e os políticos. Em junho, ele renunciou e voltou para casa e, nos dois meses seguintes, compôs o maior e mais polêmico documento dos tempos modernos. Era contra as cláusulas de reparação do Tratado [de Versalhes] e, conforme ele a considerou, a paz cartaginesa.

O acerto das previsões feitas por Keynes nesse livro foi importante para a recuperação de sua imagem como estadista, abalada por ter abandonado a delegação inglesa na Conferência de Versalhes e despertou a atenção geral para a capacidade daquele jovem funcionário do Tesouro que galgava os degraus iniciais de sua consagrada carreira.

Interpretando adequadamente os graves problemas políticos e sociais decorrentes da Grande Depressão que se iniciara com o Crash da Bolsa de Nova York em outubro de 1929, entre os quais um desemprego que teimava em permanecer em níveis elevados nos Estados Unidos (tabela 2), Keynes publicou, em 1936, um livro que se tornou célebre e do qual podem ser depreendidos os princípios gerais de uma política econômica destinada a combater a recessão e promover a retomada do nível de atividade, A teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro.

Tabela 2

 O triste recorde

% da força de trabalho desempregada nos Estados Unidos

8,7%

em

1930

15,9%

em

1931

23,6%

em

1932

24,9%

em

1933*

21,7%

em 1934

20,1%

em

1935

16,9%

em 1936

14,3%

em

1937

19,0% em

1938

17,2% em

1939

* Recorde ainda mantido

Fonte: Os profetas perdidos, p. 38.

A influência das ideias de Keynes – consideradas por muita gente como a base da recuperação da economia capitalista, vigorosamente abalada pela Grande Depressão – foi tão ampla que se tornou comum o emprego da expressão consenso keynesiano, em razão da proliferação de políticas econômicas inspiradas em suas ideias nas décadas de 1940, 1950, 1960 e 1970. Os pilares básicos desse consenso keynesiano, segundo Eduardo Giannetti, são os seguintes:

1º) Defesa da economia mista, com forte participação de empresas estatais na oferta de bens e serviços e a crescente regulamentação das atividades do setor privado por meio da intervenção governamental nos diversos mercados particulares da economia; 2º) Montagem e ampliação do Estado do Bem-Estar (Welfare State), garantindo transferências de renda extramercado para grupos específicos da sociedade (idosos, inválidos, crianças, pobres, desempregados etc.) e buscando promover alguma espécie de justiça distributiva; 3º) Política macroeconômica ativa de manipulação da demanda agregada, inspirada na teoria keynesiana e voltada, acima de tudo, para a manutenção do pleno emprego no curto prazo, mesmo que ao custo de alguma inflação.

Muitos seguidores das ideias de Keynes ganharam grande destaque, quer no plano teórico, quer no plano real, como formuladores de políticas econômicas. Entre eles, podem ser mencionados os chamados velhos keynesianos: James Tobin, Paul Samuelson, Franco Modigliani e Robert Solow.

Outro desses seguidores, A. W. H. Phillips foi responsável pela elaboração de um instrumento teórico que teve enorme influência na teoria econômica e na formulação das políticas econômicas de 1958, ano em que foi elaborada até, pelo menos, o final da década de 1970, conhecido como Curva de Phillips.

Schuettinger e Butler referem-se assim a esse instrumento:

A teoria econômica logo após a guerra reconhecia um fenômeno relacionado ao nome do economista A. W. H. Phillips. Esse fenômeno era uma correlação negativa entre o nível de desemprego e a taxa de variação dos salários nominais. Segundo essa teoria, os salários aumentariam a uma taxa mais baixa (ou mesmo cairiam) quando o desemprego aumenta. Se partíssemos do pressuposto (um pressuposto razoável) de que os preços estão vinculados aos salários, a “Curva de Phillips” sugeriria que existe uma correlação negativa entre a taxa de variação dos preços e o nível de desemprego.

Em seu Dicionário de economia do século XXI, Paulo Sandroni assim a define:

Curva de Phillips. Representação gráfica de uma regularidade estatística, encontrada em 1958 por A. W. H. Phillips ao estudar a economia inglesa entre 1861 e 1957. A curva indicaria a existência de uma relação inversamente proporcional entre o nível de desemprego e a taxa de variação dos salários monetários. A. W.  H. Phillips não apenas observou a existência dessa relação no caso inglês, como também concluiu que ela era consideravelmente estável durante um período de quase cem anos. Economistas como Paul Samuelson realizaram estudos semelhantes para os Estados Unidos, encontrando as mesmas tendências, embora bem menos conclusivas do que as de Phillips. Do ponto de vista da política econômica, a Curva de Phillips mostra que em muitos casos a redução do desemprego implica elevação dos salários monetários e, portanto, inflação; ou, ao contrário, uma política de combate à inflação (redução dos salários monetários) significa aumento da taxa de desemprego.

Efetivamente, o período compreendido entre o fim da Segunda Guerra e o fim da década de 1970 foi marcado por um crescimento constante, ainda que moderado, das nações capitalistas desenvolvidas, com exceção da Alemanha e do Japão, que tiveram um ritmo de crescimento mais acelerado.

Nesse sentido, a realidade deu suporte a um dos pressupostos mais importantes da Curva de Phillips – e da visão keynesiana de uma forma geral – que supõe que inflação e desemprego são fenômenos excludentes. Na maior parte dos países nesse período tivemos um cenário que combinava crescimento econômico, elevado nível de emprego e baixas taxas de inflação.

A década de 1980, porém, pôs em xeque o referido pressuposto, uma vez que em diversas partes do mundo, uma série de países apresentaram, simultaneamente, altas taxas de inflação (ou hiperinflação) e elevados níveis de desemprego, caracterizando, em alguns deles, o que os economistas chamam de estagflação. A tabela 3 ilustra bem essa realidade. Vale destacar que, ao contrário das hiperinflações da década de 1920, precedidas pela Primeira Guerra Mundial, não há guerra para explicar essa leva de hiperinflações.

Tabela 3

Inflação Elevada, Hiperinflação e Estabilização, 1970 – 1989

(índices mensais e número de meses e anos)

País

 

(Ano do Programa de Estabilização)

 

Índice Mensal Médio a)

 

 

1970-79   80-85     86-90                      

Índice

Máximo

Verificado

 

(Data)

Meses com índices

 

   > 50%

  (> 25%)

Anos com Inflação Anual

 

Índice > 100%

 

1970-79   1980-89

 

Chile

(1975)

7,6 1,7 1,4 88

(10/73)

1

(1)

4

0

Bolívia

(1985)

1,4 18,5 2,1 182

(2/85)

9

(16)

0

5

Argentina

(1983)

6,8 11,9 19,0 197

(7/89)

3

(16)

5

10

Brasil

(1986)

2,4 7,9 19,7 73

(1/90)

3

(16)

0

8

Israel

(1985)

2,6 9,1 1,4 28

(7/85)

0

(1)

0

6

México

(1988)

1,2 3,9 4,8 (b) 15

(1/88)

0

(0)

0

3

Turquia

(1980)

1,9 3,3 3,8 21

(2/80)

0

(0)

0

1

Iugoslávia

(1990)

1,4 3,4 14,5 60

(12/89)

3

(7)

0

3

Polônia (c)

0,3 9,6 8,6 77

(1/90)

2

(5)

0

2

Fonte: International Monetary Fund, International Financial Statistics.

(a) Índices médios mensais referem-se aos períodos de janeiro do primeiro ano até dezembro do último ano, exceto para 1990, no qual muitos dos dados referem-se apenas aos meses de janeiro e fevereiro.

(b) De abril/1988 a abri/1990, o índice médio mensal foi de 1,7%.

(c) Baseado em dados anuais até 1987 e em dados mensais de 1988 a 1990.

Mais uma vez, diante de situações de grave anormalidade, tentativas de combater a inflação por meio de controles de preços e salários se multiplicaram, incluindo-se, entre elas, os choques heterodoxos adotados no Brasil, a saber, Plano Cruzado (fevereiro de 1986), Plano Cruzado II (novembro de 1986), Plano Bresser (junho de 1987), Plano Verão (janeiro de 1989), Plano Collor I (março de 1990) e Plano Collor II (janeiro de 1991).

O resultado dessas tentativas, a exemplo do que já ocorrera tantas e tantas vezes anteriormente, foi um completo fracasso, a não ser, em alguns casos, por um curto período em sua fase inicial. Ao fim e ao cabo, a inflação acabava retornando, muitas vezes com mais vigor ainda, assim que os artificialismos dos tabelamentos e congelamentos eram suspensos.

Schuettinger e Butler reproduzem uma manifestação de Milton Friedman, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 1972, um dos mais respeitados liberais e adeptos do monetarismo, feita logo depois que o presidente Nixon impôs sua versão de controle de preços e salários em 1971. Não encontro nada melhor do que essa manifestação para encerrar este breve artigo-resenha:

Os controles são profunda e intrinsecamente imorais. Substituindo o governo da lei e da cooperação voluntária no mercado pelo governo dos homens, os controles ameaçam os próprios fundamentos de uma sociedade livre. Estimulando os indivíduos a se espionarem e a se denunciarem reciprocamente, tornando a desobediência dos controles interesse pessoal de grande número de cidadãos e tornando ilegais ações que são de interesse público, os controles solapam a moral individual.

 

 Referências bibliográficas

 GALBRAITH, John Kenneth. A era da incerteza. Tradução de F. R. Nickelsen Pellegrini. São Paulo: Pioneira, 1984.

GIANNETTI, Eduardo. Desenvolvimento e transição econômica: a experiência brasileira. Paper preparado para Workshop Universitário promovido pelo Grupo das EBCEs – Empresas Brasileiras de Capital Estrangeiro. Mimeo.

KEYNES, John M. As consequências econômicas da paz. Prefácio de Marcelo de Paiva Abreu; tradução de Sérgio Bath. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. (Clássicos IPRI; v. 3)

 ___________________ A teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro. Apresentação de Adroaldo Moura da Silva; tradução de Mário R. da Cruz. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Economistas).

LIMA, Gilberto T., SICSÚ, João & PAULA, Luiz Fernando de (organizadores). Macroeconomia Moderna: Keynes e a Economia Contemporânea. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1999.

MALABRE JR., Alfred. Os profetas perdidos. Tradução de Pedro Catunda. Revisão técnica de Nelson Carvalheiro. São Paulo: Makron Books, 1995.

SANDRONI, Paulo. Dicionário de economia do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2005.