Três anúncios para um crime
O cinema como gerador de conhecimento
Uma das coisas que evidenciam que os tempos mudaram e que o Brasil é hoje um país muito mais integrado ao mundo é que quando chega a época da cerimônia de entrega do Oscar, os brasileiros já tiveram oportunidade de assistir à maior parte dos filmes com indicações à cobiçada estatueta.
Tempos atrás, quando se aproximava a data da referida cerimônia, nenhum dos filmes concorrentes tinha sequer seu lançamento programado para o Brasil, o que só ocorria, na maior parte das vezes, muitos meses depois. Isso quando o filme não possuía cenas de sexo ou conteúdo político. Nesses casos, em razão da censura, o lançamento no Brasil – quando permitido – acontecia muitos anos depois de o filme já ter sido exibido em outros países.
Neste ano, o grande vencedor da cerimônia ocorrida em Los Angeles no último dia 4 de março foi o filme A forma da água, que recebeu quatro estatuetas, entre as quais as duas consideradas mais importantes: melhor filme e melhor diretor (Guillermo del Toro).
Entre os filmes que tive oportunidade de assistir, porém, o que mais me agradou – e que é objeto deste artigo – foi Três anúncios para um crime, que acabou ficando com duas estatuetas: melhor atriz (Frances McDormand) e melhor ator (Sam Rockwell).
Embora não seja um cinéfilo, gosto muito de cinema, não apenas como fator de entretenimento, mas também por vê-lo como uma extraordinária ferramenta de aprendizado, lamentavelmente pouco utilizado pela esmagadora maioria dos professores.
E quando afirmo ver o cinema como ferramenta de aprendizado, refiro-me não apenas a filmes históricos, educativos ou baseados em fatos reais. Uma cena isolada pode ser extremamente ilustrativa de uma dada realidade. Já que mencionei o Oscar, no ano passado um dos filmes com maior número de indicações foi La la land, que acabou ficando com cinco estatuetas, incluindo a de melhor atriz para Emma Stone. A primeira cena, que mostra um gigantesco engarrafamento de trânsito, provocou imediatamente meu comentário para minha esposa – em voz baixa evidentemente: “Isso é Los Angeles”. De fato, os enormes congestionamentos são uma das marcas desta cidade do oeste norte-americano que possuía, até alguns anos atrás, mais carros do que o Brasil inteiro.
Por trabalhar com a visualização, estratégia mais efetiva de aprendizado para um número considerável de pessoas[1], e envolver em determinadas vezes fortes emoções, o cinema fornece um tipo de conhecimento que tende a permanecer por longo tempo na memória do espectador.
Embora não sejam tantos quanto seria desejável, há professores que se utilizam do cinema como recurso pedagógico de grande valia, uma vez que, quando bem trabalhado, é um recurso que desperta enorme interesse dos alunos. Inúmeros livros estão disponíveis no mercado sugerindo filmes para temas específicos. Muitos deles, inclusive, propõem exercícios ou dinâmicas aos professores para a condução de suas aulas.
Eu mesmo ministrei um curso de extensão na FAAP intitulado O cinema e a redemocratização do Brasil e da América do Sul. Constituído de 12 filmes, em cada sessão eu abria fazendo uma contextualização, seguida da projeção do filme e, por fim, uma fase de debates para a qual eu sempre convidava um especialista no tema central do filme. A título de exemplo, um dos filmes do curso foi Zuzu Angel, em que a estilista foi brilhantemente protagonizada por Patrícia Pillar. Nessa sessão, o coordenador do curso de moda da Faculdade de Artes Plásticas da FAAP, Prof. Ivan Bismara, participou dos debates falando sobre a importância de Zuzu Angel na história da moda no Brasil. O interesse pelo referido curso foi muito acima das minhas expectativas, atraindo estudantes de diferentes cursos da instituição, o que resultou numa dinâmica muito rica, uma vez que nos debates percebiam-se claramente os olhares diferenciados de estudantes que analisavam os filmes a partir de óticas particulares. Os estudantes de cinema eram fortemente atraídos por aspectos técnicos; já os de direito interessavam-se muitas vezes pelas questões jurídicas em países que passavam por fases de forte autoritarismo. Foi uma experiência muito gratificante, na qual, certamente, aprendi muito mais do que ensinei.
Em Três anúncios para um crime, além da excepcional atuação de Sam Rockwell e, principalmente de Frances McDormand, que mereceu o Oscar mesmo concorrendo com atrizes do gabarito de Meryl Streep (de quem sou fã de carteirinha), vale a pena prestar atenção à ambientação do filme.
Em bem elaborada crítica, Renato Hermsdorff faz as seguintes considerações:
O trabalho que a atriz [Frances McDormand] faz em Three Billboards Outside Ebbing, Missouri [título original do filme] (que título, minha gente, que título!), no papel de Mildred Hayes é simplesmente inesquecível.
O nome do novo filme do diretor Martin McDonagh (Na Mira do Chefe, de 2008) é quase um storyline. Ou, pelo menos, um gatilho para a ação. Os três outdoors que beiram a estrada por onde quase ninguém passa na cidade de Ebbing, no Missouri, Estados Unidos, foram alugados por Mildred.
Eles estampam mensagens que questionam a preguiçosa polícia local (em especial o xerife Bill Willoughby, vivido por Woody Harrelson) a respeito das investigações da morte da filha dela, estuprada enquanto era assassinada. Ocorrido há sete meses, na linha cronológica do filme, o caso continuava sem “novidades”.
Mesmo tratando de um tema pesado, o filme transcorre num clima que prende a atenção do espectador do início ao fim, sendo marcado por situações inesperadas entremeadas por toques de humor negro.
Quando me refiro à ambientação do filme e a decorrente oportunidade de aprender, destaco dois aspectos em especial: o primeiro refere-se a o que é a vida numa pequena cidade do centro-oeste norte-americano, em que quase todos os habitantes se conhecem e possuem algum tipo de relacionamento; o segundo, absolutamente oportuno nos dias de hoje, diz respeito à marcante existência de fortes preconceitos, não apenas raciais, mas também de homofobia.
Anos atrás, de 1993 a 1998, integrei delegações de professores da FAAP que foram participar de uma conferência sobre solução criativa de problemas em Buffalo, no norte do estado de Nova York. Em nossa primeira ida, por sugestão do Prof. Victor Mirshawka, na época integrante da diretoria executiva da instituição, optamos por interromper a viagem em Nova York, seguindo de lá até Buffalo em três automóveis alugados. Mais do que isso, optamos por não fazer o trajeto mais fácil, utilizando apenas as estradas principais. Como muitos dos professores jamais haviam estado nos Estados Unidos, fizemos o trajeto passando por diversas cidades pequenas a fim de que eles pudessem conhecer realidades muito diferentes daquela prevalecente nas grandes cidades do país, às quais se limitava a experiência de muitos deles. Mesmo que a viagem tenha se tornado muito longa, a decisão foi acertadíssima, o que se constatou pelos constantes comentários daqueles que passaram por aquela experiência pela primeira vez.
Assistindo Três anúncios para um crime, a associação com aquela viagem foi inevitável, embora a realidade de uma pequena cidade do interior do Missouri, em pleno centro-oeste do país, guarde significativas diferenças com as das cidades dos estados de Nova York e da Pensilvânia atravessadas naquela oportunidade.
E já que iniciei este artigo mencionando a entrega do Oscar, encerro-o com um tributo a Stephen Hawking, o extraordinário físico britânico recentemente falecido. Hawking teve sua vida contada no filme A teoria de tudo, sendo interpretado por Eddie Redmayne, que recebeu o Oscar de melhor ator em 2015 por sua interpretação. Assistir a esse filme constitui-se num outro ótimo exemplo proporcionado pelo cinema para conhecer um pouco de legado de Hawking para a humanidade.
Referências e indicações bibliográficas e webgráficas
CASTILHO, Áurea (coordenadora). Filmes para ver e aprender. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2003.
GALVÁN, Josefa. Aprendizaje integral. Nicolás San Juan, México: Grupo Editorial Tomo, S.A. de C.V., 2001.
HERMSDORFF, Renato. Três anúncios para um crime. Disponível em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-245010/criticas-adorocinema/.
MACHADO, Luiz Alberto. O cinema e a redemocratização do Brasil e da América do Sul. Facom, Revista da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP, nº 26, 1º semestre de 2013, pp. 44-57.
Referências cinematográficas
Título: A forma da água
Direção: Guillermo del Toro
Elenco: Sally Hawkins, Michael Shannon, Richard Jenkins, Octavia Spencer
País e ano de produção: Estados Unidos, 2017
Duração: 123 minutos
Título: A teoria de tudo
Direção: James Marsh
Produção: Tim Bevan, Eric Fellner e Anthony MaCarten
Roteiro: Anthony McCarten
Elenco: Eddie Redmayne, Felicity Jones, Charlie Cox, Emily Watson, David Thewlis
País e ano de produção: Reino Unido, 2014
Duração: 123 minutos
Título: La La Land: Cantando Estações
Direção: Damien Chazelle
Elenco: Ryan Gosling, Emma Stone, John Legend, Rosemarie DeWitt, Finn Wittrock, J. K. Simmons
País e ano de produção: Estados Unidos, 2016
Duração: 128 minutos
Título: Três anúncios para um crime
Direção: Martin McDonagh
Elenco: Frances McDormand, Woody Harrelson, Sam Rockwell
País e ano de produção: Estados Unidos e Inglaterra, 2017
Duração: 116 minutos
Título: Zuzu Angel
Direção: Sergio Rezende
Elenco: Patrícia Pillar, Daniel de Oliveira, Luana Piovani, Alexandre Borges, Leandra Leal, Ângela Vieira, Flávio Bauraqui, Aramis Trindade, Othon Bastos
País e ano de produção: Brasil, 2006
Duração: 104 minutos
[1] Ainda que as estatísticas a respeito não sejam consensuais, William Glasser, psicólogo americano idealizador da Teoria da Escolha e muito respeitado entre os educadores, afirma que recordamos 10% do que lemos, 20% do que ouvimos, 30% do que vemos, 50% do que vemos e ouvimos, 70% do que discutimos, 80% do que fazemos e 95% do que ensinamos (GALVÁN, 2001, p. 39).
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