Lições de viagem
Santa Catarina e seus diferenciais
Percebi que me encontrava num estado diferenciado na primeira vez que estive em Santa Catarina, em 1980, quando fui ministrar aulas em dois cursos de formação política para estudantes universitários, nas cidades de Joinville e Blumenau. Lembro-me que esta última tinha sido atingida, semanas antes, por uma terrível enchente, amplamente noticiada pelos meios de comunicação. Foi tal a repercussão da referida enchente, que imaginei encontrar uma cidade devastada em consequência dos prejuízos materiais e sociais decorrentes da catástrofe. Para minha surpresa, a situação já havia voltado ao normal, sendo possível identificar apenas pequenos sinais do ocorrido por meio de algumas marcas da altura que as águas haviam atingido em poucos muros ou paredes que ainda não tinham sido pintados.
A rapidez com que a cidade havia se recuperado era, para mim, demonstração suficiente para me mostrar que eu estava num lugar especial e, evidentemente, de pessoas especiais.
Felizmente, por diferentes motivos, tive diversas oportunidades de retornar a Santa Catarina e, em cada uma delas, mais aumentava minha admiração.
No início da década de 1990, voltei uma vez mais a Santa Catarina, desta feita para passar férias, acompanhado de minha mulher e meu filho, na época com 10 anos. Iríamos passar uma semana em Caldas da Imperatriz, localidade caracterizada pela existência de águas termais, a cerca de 30 quilômetros de Florianópolis.
Como íamos de carro, planejei almoçar em Curitiba e seguir viagem até Joinville, onde pernoitaríamos. Embora, pessoalmente, tivesse preferência por um hotel que já conhecia, optei por passar por outros dois hotéis antes do meu preferido para dar a meu filho o poder da escolha. Passamos por dois bons hotéis, visitamos as instalações e checamos preços e disponibilidade de vagas. Porém, ao chegar ao meu preferido, Anthurium[1], fomos tão bem recebidos pelo staff ainda no estacionamento que a escolha do meu filho foi feita antes da visita às instalações. Pernoitamos, desfrutamos de um delicioso café colonial e, após rápido passeio pela cidade, seguimos viagem pelo litoral, passando por praias belíssimas como Camboriú, Portobelo, Bombas, Bombinhas e Itapema.
Chegando finalmente a Caldas da Imperatriz já no final da tarde, outra agradável surpresa. Não apenas o hotel era excelente, com uma equipe de colaboradores irrepreensível, mas ainda constatamos que estava hospedado no mesmo hotel um casal de amigos cujo filho regulava em idade com o meu e era companheiro de futebol no clube que frequentamos em São Paulo. Com eles, passamos uma semana inesquecível, dividindo o tempo entre Caldas e as praias de Florianópolis[2].
Dando sequência ao planejado, fizemos a viagem de volta pelo interior para pernoitarmos em Curitiba. Passamos então por Gaspar e Blumenau antes de pararmos para almoçar em Pomerode. Duas observações de meu filho me chamaram a atenção nessa etapa da viagem. A primeira foi durante o trajeto, quando atravessávamos o Vale do Itajaí. Vendo uma sucessão de casas bem arrumadas na beira da estrada, muitas delas com vasos de flores nas janelas, ele perguntou se os donos daquelas casas eram ricos. Falei que não. Eram, na sua maioria, casas de colonos ou pequenos proprietários de terras, muitos deles descendentes de alemães e de italianos. Jamais esqueci o comentário dele diante da minha resposta: “Puxa vida pai, aqui dá pra perceber que limpeza e riqueza não precisam, necessariamente, andar juntas. Estou vendo casas de pessoas que não são ricas, mas são limpas e muito bem arrumadas”. A segunda foi na chegada a Blumenau. Vendo aquela cidade florida, bem cuidada e repleta de imóveis em estilo alemão[3], deixou escapar: “Acho que algum dia vou querer morar nesta cidade”.
Dormimos na casa de parentes em Curitiba, visitamos no dia seguinte alguns pontos turísticos da cidade e pegamos a estrada para São Paulo. Ao chegarmos perto de São Paulo, já no início da noite, passando pela região de Taboão da Serra, a terceira e última observação pertinente e até surpreendente, em se tratando de um garoto de 10 anos de idade: “Que diferença pai, olha que sujeira. Cheio de lixo espalhado pelo chão”.
Os anos foram passando, as oportunidades de visitar e conhecer as mesmas e novas cidades do estado foram se multiplicando, e a admiração por Santa Catarina só cresceu.
Nos últimos anos, graças em boa parte às minhas passagens pelo Conselho Regional de Economia de São Paulo e pelo Conselho Federal de Economia, pude conhecer mais a fundo e, por meio de conversas com economistas e professores de diversas faculdades locais, entender melhor o que faz de Santa Catarina um estado tão diferenciado.
A meu juízo, o principal fator reside na boa distribuição populacional[4]. Ao contrário de diversos outros estados do Brasil em que há uma pesada concentração da população na capital ou em poucas cidades, o que se observa em Santa Catarina é completamente diferente.
Como se vê na tabela 1, não há no estado nenhuma megalópole, tendo a cidade mais populosa – que não é a capital – 569.645 habitantes.
Seguem-se seis cidades com população entre 200.000 e 500.000 habitantes e outras seis com população entre 100.000 e 200.000 habitantes.
Como essas cidades estão espalhadas por todo o território, observa-se certo equilíbrio entre as diferentes regiões, evitando ciclos maciços de migrações internas em direção aos grandes centros, como se vê em vários outros estados (e até países).
Contribuiu decisivamente para isso também o tipo de colonização que ocorreu no estado. Primeiro vieram os portugueses açorianos, no século XVIII, que se concentraram, principalmente, no litoral. Em seguida, na metade do século XIX, vieram os descendentes de alemães, que ocuparam o Vale do Itajaí, compreendendo parte da região sul e o norte do estado catarinense. Na sequência, ainda no final do mesmo século, o sul do estado foi povoado por imigrantes italianos.
Tabela 1
Municípios de Santa Catarina por População
Posição | Município | População | Microrregião | Mesorregião |
+ de 500.000 | ||||
1º | Joinville | 569.645 | Joinville | Norte Catarinense |
+ de 200.000 | ||||
2º | Florianópolis | 477.798 | Florianópolis | Grande Florianópolis |
3º | Blumenau | 343.745 | Blumenau | Vale do Itajaí |
4º | São José | 236.029 | Florianópolis | Grande Florianópolis |
5º | Chapecó | 209.553 | Chapecó | Oeste Catarinense |
6º | Criciúma | 209.153 | Criciúma | Sul Catarinense |
7º | Itajaí | 208.958 | Itajaí | Vale do Itajaí |
+ de 100.000 | ||||
8º | Jaraguá do Sul | 167.300 | Joinville | Norte Catarinense |
9º | Palhoça | 161.395 | Florianópolis | Grande Florianópolis |
10º | Lages | 158.620 | Campos de Lages | Serrana |
11º | Balneário Camboriú | 131.727 | Itajaí | Vale do Itajaí |
12º | Brusque | 125.810 | Blumenau | Vale do Itajaí |
13º | Tubarão | 103.674 | Tubarão | Sul Catarinense |
Fonte: IBGE (estimativa para 2016)
Além da boa distribuição demográfica e do processo de regionalização, vale mencionar ainda a diversificação econômica, com harmoniosa convivência entre regiões que se destacam por diferentes atividades econômicas. Polos industriais coexistem com centros comerciais e regiões dominadas pelo agronegócio, todas elas com nível médio de produtividade superior ao da maior parte dos outros estados brasileiros. Além disso, o estado se notabiliza também por conseguir atrair enorme volume de turistas, quer pela beleza de suas praias, que nos meses de verão recebem visitantes do Brasil e do exterior, em especial de argentinos, quer pelas cidades serranas que recebem muitos visitantes no inverno, atraídos pela possibilidade de ver neve, coisa rara no Brasil, quer pelas bem-sucedidas iniciativas da chamada economia criativa, dentre as quais o parque temático Beto Carrero no município de Penha, a Oktoberfest em Blumenau e o Festival de Dança de Joinville, um dos maiores do mundo no gênero em número de participantes – cerca de 4.500 bailarinos.
Economia criativa e empreendedorismo em Santa Catarina
Já que mencionei a economia criativa, é importante ressaltar o trabalho que vem sendo realizado no estado para desenvolver o empreendedorismo e a inovação sob a denominação geral de Nova Economia.
De acordo com Lúcia Dellagnello, doutora pela Universidade de Harvard, que ocupou o cargo de secretária de Estado adjunta da Secretaria de Desenvolvimento Econômico do estado de Santa Catarina e que participou em 2013 de um debate na Fundação Espaço Democrático, “o projeto Nova Economia visa a apoiar e estimular os pequenos empreendedores, dando acesso ao crédito – temos um programa de juro zero para os pequenos empreendedores –, mas principalmente juntando esses empreendedores em classes produtivas para que eles tenham mais facilidade de participar de feiras, de rodadas de negócio, e recebam consultoria (parceria do governo de Santa Catarina com o Sebrae)”.
Influenciada por um artigo publicado em 2012 no Wall Street Journal, a Dra. Dellagnelo concluiu que “pelo menos dois fatores têm que estar presentes em um país para que possa ser chamado de um país de empreendedores: ter uma geração que acredita que é capaz de fazer as coisas diferentes, de criar novos negócios, de fazer negócios de uma maneira criativa, inovadora; e um ambiente institucional que permita e fomente esse tipo de comportamento”.
Com base nessas conclusões, observa acertadamente:
Eu acho que no Brasil, pela primeira vez, nós começamos a ter essas duas condições que são importantes para o Brasil se tornar um país de empreendedores. Temos a estabilidade econômica, pela primeira vez uma consolidação das instituições democráticas, das instituições econômicas, e nós temos uma geração que está na escola. Conseguimos universalizar o acesso à escola no Brasil. Temos as condições básicas, mas agora a gente precisa tornar esse sonho realidade.
Prosseguindo em sua análise, asseverou:
Há pouco tempo um economista do Banco Mundial mostrou que o maior risco que o Brasil corre é manter-se como um país de classe média, não dar o salto qualitativo para passar de um país de classe média para um país de classe alta. E ele vê que a única possibilidade de fazer isso – e não só ele, mas muitos economistas mostram – é através da economia criativa, da inovação, do valor intangível de produtos e serviços que possam colocar o Brasil num novo patamar de competitividade.
“Então”, concluiu, “eu acho que estamos vivendo uma janela de oportunidade que nós não podemos perder para fazer do Brasil realmente um país de empreendedores. Santa Catarina está dando um passo, mas tenho certeza que existem outras experiências interessantes no Brasil. Primeiro de formar uma nova geração de empreendedores, de educar essa nova geração e criar um ambiente que favoreça, que estimule a criação de negócios inovadores”.
Cinco anos depois, porém, há que se reconhecer que as coisas não evoluíram conforme as expectativas da Dra. Dellagnelo. O Brasil perdeu o grau de investimento que havia conquistado com enorme dificuldade em 2008, pouco evoluiu em termos de ambiente de negócios e continua sem um projeto amplo de políticas públicas voltadas à economia criativa, capaz de articular ações nas três esferas de governo. Está desperdiçando, assim, uma excelente oportunidade de utilizar seu enorme potencial para fazer da economia criativa um dos motores do processo de desenvolvimento.
O impulso da gastronomia
Para finalizar, ainda com um dos setores abrangidos pela economia criativa, faço questão de ressaltar as boas opções gastronômicas existentes no estado. De oferta regular, podendo ser desfrutadas a qualquer hora, merecem destaque em Florianópolis a sequência de camarão, famosa nos restaurantes em volta da Lagoa da Conceição, e as ostras nos restaurantes de Ribeirão da Ilha. Além disso, os portugueses, que se fixaram na capital e no litoral, elaboraram uma gastronomia açoriana, sabendo aproveitar bem os temperos indígenas e a vasta proximidade com o mar para criar uma culinária simples, mas muito saborosa, à base de peixe, camarão, marisco, berbigão, carne de siri, polvo e lula, plantel reforçado recentemente com as ostras produzidas nas fazendas marinhas da Grande Florianópolis e com o camarão “Laguna”, a mais saborosa das espécies capturadas na costa catarinense.
Refletindo a diversificada influência que marcou o povoamento de Santa Catarina, encontram-se diversos municípios, comunidades, colônias e distritos tipicamente germânicos, situados em especial no Vale Europeu, Caminho dos Príncipes e mesmo na Grande Florianópolis. Nessas regiões, chamam atenção as salsichas (wurst) de variados tipos, o kassler (chuleta de porco), o eisbein (joelho de porco), o chucrute e também pratos típicos com adaptações locais, como o marreco com repolho roxo (mit rotkhol) e a cuca com farofa de banana. Nas confeitarias alemãs, bolos e doces agradam em cheio tanto os moradores locais como os turistas, com destaque para o apfelstrudel (folhado de maçã).
Outros sabores tipicamente europeus são encontrados nas comunidades em que se fixaram imigrantes poloneses, ucranianos, austríacos, húngaros e holandeses, chegados, em sua maioria, já no século XX. Nessas comunidades, é possível saborear pratos típicos como sopa de batatas com leite, pastéis de batata e requeijão (pierogi), torta salgada de requeijão, goulash (cozido de carne bastante condimentado), salada de repolho roxo e maça recheada. A comunidade tirolesa de Treze Tílias é famosa poe seus chocolates caseiros.
Em épocas especiais, há festivais que vão se tornando tradicionais, como o do marreco e da tainha.
Por fim, ainda em decorrência da influência da intensa imigração, não podem ser esquecidas a rota das cervejas, nos municípios de colonização predominantemente germânica, e a rota do enoturismo, na qual prevalecem os imigrantes italianos, principalmente no Vale do Contestado e na Serra Catarinense.
No caso da rota das cervejas, é possível visitar fábricas e cervejarias artesanais, conhecendo de perto o processo de produção da bebida que obedece a Reinheitsgebot (Lei Alemã da Pureza, de 1516), que limita os ingredientes da cerveja a água, lúpulo, malte (de cevada ou trigo) e fermento (levedura), e proíbe o uso de quaisquer conservantes ou cereais não maltados na fabricação da bebida. Vale a pena experimentar as diversas versões de cervejas e chopes.
Conhecer vinícolas e degustar bons vinhos e espumantes são programas que estão ganhando espaço com o crescimento do enoturismo em Santa Catarina, seguindo uma tradição que se fortaleceu, no Brasil, na Serra Gaúcha. Também nesse caso, os visitantes podem acompanhar o cultivo dos vinhedos e a produção do vinho, além de participar de seções de degustação, Dependendo da época, pode-se assistir à colheita da uva durante visitas previamente programadas.
Referências bibliográficas e webgráficas
ÁVILA, Fábio (Editor). Brasil: Descubra as Capitais Brasileiras. São Paulo: Empresa das Artes, 2008.
FUNDAÇÃO Espaço Democrático. A nova onda da economia criativa. Coleção Cadernos Democráticos, Número 5, 2013. Disponível também em http://espacodemocratico.org.br/a-nova-onda-da-economia-criativa-2/.
GOVERNO de Santa Catarina. Gastronomia. Disponível em http://turismo.sc.gov.br/o-que-fazer/gastronomia/.
IBGE. Estimativas da população residente nos municípios brasileiros com data em 1º de julho de 2016. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 30 de agosto de 2016.
[1] O Anthurium Parque Hotel não mais existe. Em seu lugar há hoje um belo condomínio que manteve alguns espaços do antigo hotel em sua entrada.
[2] Originalmente denominada de “nossa Senhora do Desterro”, Florianópolis recebeu seu nome atual após a Revolução Federalista, em 1894, em homenagem ao então presidente da república, Floriano Peixoto.
[3] Enxaimel é o nome do referido estilo arquitetônico.
[4] Segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população de Santa Catarina ultrapassou em 2017 a casa dos sete milhões, chegando a 7.001.161 milhões de habitantes.
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