1964: Vamos debater?

Eduardo José Monteiro da Costa[1]

 

“O único ditador que eu aceito é a voz silenciosa da minha consciência.”

Mahatma Gandhi

 

Não me recordo no período republicano recente do tema Ditatura Militar, ou o Golpe de 1964, ter sido tão amplamente mencionado. Disse propositadamente mencionado e não debatido. Aliás, hoje o debate é algo fora de moda, principalmente em certo ambiente acadêmico que a cada dia consolida a “Ditatura do Pensamento Único”. É proibido pensar, é proibido debater, e se alguém apresenta uma narrativa diferente o foco não está em sua desconstrução pelo debate, pelos argumentos, por fatos históricos comprováveis e verificáveis, é a censura, é a ofensa. Vivemos a era dos jargões e dos rótulos vazios e desprovidos de conteúdos. Não é permitido nem sequer o direito de voz, odeia-se somente por se pensar diferente.

Essa cultura acaba aflorando com muito mais intensidade quando temas como o Golpe de 1964 assumem proeminência. Não resta dúvida de que o dia 31 de março de 1964 representa uma ruptura democrática no Brasil. E essa ruptura precisa ser compreendida à luz de um amplo e sério debate acadêmico. Esse capítulo de nossa história não se fechou, deixou marcas em nossa democracia, marcas na política, marcas sociais, expressas em manifestações de ódio, intolerância e rancor.

Assim, ao contrário do que tentam afirmar alguns, esse ainda é um capítulo aberto de nossa história. Fico me perguntando se é possível algum dia se fechar uma discussão histórica. A história nunca se fecha, não é absoluta. Em grande parte, se assenta na construção de narrativas, que refletem indiscutivelmente a cosmovisão e as ideologias de quem as constroem. Não existe neutralidade científica em ciências humanas, principalmente na construção de narrativas históricas. Enquanto a história é o processo, a historiografia é a descrição ou reflexão do processo.

Mas como já afirmado, as narrativas históricas apresentam sempre verdades relativas: “O conhecimento científico em história (campo do conhecimento) é uma produção intelectual mediada por um método racional de crítica e por instrumentos teórico-metodológicos de análise dos materiais históricos. Esse processo racional formula verdades relativas dinamizadas no espaço-tempo do elaborador (situado historicamente com limitações e interações com o meio, portanto, inserido na história-processo) e tendendo, na perspectiva que está sendo sugerida, à compreensão da totalidade do processo humano, tendo por dinâmica a reprodução/superação das condições materiais do sujeito e a busca de um sentido para a existência e para a história-processo.” (Torres, 1996, p. 55).

O conhecimento histórico é ideológico[2], na medida em que expressa a historicidade de cada intérprete da história[3]. A boa historiografia se faz por meio de um processo dialético. Crescemos com o contraponto que nos faz, muitas vezes, produzir sínteses mais apuradas de nossas narrativas. É nesse sentido que reflexões críticas, e até mesmo o contraponto de narrativas, são vistas como positivas para o aprimoramento da nossa visão da história.

Já afirmei que o Golpe de 1964 foi uma ruptura democrática. Toda ruptura democrática é deletéria para a consolidação de uma sociedade que busca o desenvolvimento e a justiça social. Todo regime totalitário, de esquerda ou direita, precisa ser combatido. Se há um caminho que pode levar ao pleno desenvolvimento de nossa nação indiscutivelmente é o caminho da democracia plena. E nenhuma democracia plena se constrói com base em um pensamento único, com censura, ou com a imposição de narrativas.

Qualquer tipo de comemoração sobre um processo de ruptura democrática precisa ser recriminado. Isso não se comemora, se lamenta! Mas ao mesmo tempo o debate, a reflexão crítica e o contraponto de narrativas precisam ser estimulados, somente assim podemos formar cidadãos verdadeiramente críticos que não se configurem apenas como meros espectadores de nossa história, mas sim como verdadeiros agentes de transformação de nossa sociedade.

Nesse ponto, causam perplexidade as críticas, muitas das quais pautadas na desinformação, ou num ativismo político-partidário irresponsável, que certo colégio está recebendo por estimular a comunidade acadêmica a assistir como atividade extracurricular o documentário 1964: Entre Armas e Livros, do Brasil Paralelo. Ainda não tive a oportunidade de assistir a este documentário, estou na expectativa de seu lançamento, e certamente terei a oportunidade de após assistir ao mesmo tecer comentários e fazer as críticas que julgar justas e necessárias. Tenho condições para isso. Acumulei leituras, muitas das quais de narrativas diferentes, que me permitem ter opinião própria. Mas o que percebo, é que determinadas matizes ideológicas e políticas não querem o contraponto, não querem cidadãos que verdadeiramente possuam um senso crítico de mundo, uma cosmovisão analítica dissonante. O seu temor é perder o protagonismo na imposição de narrativas. E com isso, fazem exatamente o que criticam, produzem cidadão com baixa capacidade crítica ao imporem a ditadura de sua narrativa, a “Ditatura do Pensamento Único”. Um paradoxo!

Produções como essa precisam ser estimuladas em nosso país, por mais que não concordemos com determinadas narrativas a contraposição de ideias, por meio de um processo dialético, produz necessariamente avanços importantes na análise historiográfica, na visão crítica da sociedade, além de aprimorar a sua capacidade de transformação através do aprendizado histórico.

Que sejamos responsáveis e estimulemos o debate. Respeito as divergências, tolerância, esse precisa ser o nosso espírito para que jamais vivamos outra ruptura democrática em nosso país!

 

 

Referência bibliográfica

TORRES, Luiz Henrique. O Conceito de História e Historiografia. BIBLOS. Rio Grande, 53-59, 1996.

 

[1]  Doutor em Economia pela Unicamp e professor da UFPA. Correio eletrônico: ejmcufpa@gmail.com

 

[2]A ideologia é uma identidade discursiva inalienável que apenas comprova a impossibilidade de nos colocarmos à margem de uma determinada historicidade que personifica cada indivíduo, e isso significa um contínuo conflito.” (Torres, 1996, p. 57).
[3] “O conhecimento é ideológico, pois o discursante está e faz o processo de certa sociedade, portanto a ideologia expressa concretamente a historicidade de cada indivíduo que recria a história. A ideologia está associada a “qualquer” produção ou meio intelectual que analise um determinado tema ou processo, estabelecendo para isso um indispensável referencial de pensamento. Decorre desse conceito que toda a historiografia é ideológica! Ideologia, portanto, não seria somente o discurso que encoberta a realidade em função do grupo dominante e seus interesses” (Torres, 1996, p. 57).