Deslembro

 Reminiscências do regime militar

 

“Apesar de ter suas mazelas, nossa estrutura institucional gerou uma democracia vibrante, que assegura eleições regulares, alternância de poder, liberdade de opinião e de organização.”

Rubens Figueiredo

 

Antonio Paim, no recém-publicado Personagens da política brasileira, nos lembra que no discurso inaugural da campanha presidencial, a 3 de outubro de 1909, no Rio de Janeiro, Rui Barbosa chamou a atenção para a quilométrica distância que separa o militarismo e as instituições militares.

Entre as instituições militares e o militarismo vai, em substância, o abismo de uma contradição radical. O militarismo, governo da nação pela espada, arruína as instituições militares, subalternidade legal da espada à nação. As organizações militares organizam juridicamente a força. O militarismo a desorganiza. O militarismo está para o Exército assim como o fanatismo para a religião, como o charlatanismo para a ciência, como o industrialismo para a indústria, como o mercantilismo para o comércio, como o cesarismo para a realeza, como o demagogismo para a democracia, como o absolutismo para a ordem, como o egoísmo para o eu. Eles são a regra; ele, o desmantelo, o solapamento, a alusão dessa defesa, encarecida nos orçamentos, mas reduzida, na sua expressão real, a um simulacro.

No momento em que o presidente Jair Bolsonaro solta mais uma de suas declarações bombásticas e desnecessárias – envolvendo, desta feita, o pai do atual presidente da OAB –, contribuindo para reabrir a discussão sobre o regime militar, vale a pena refletir sobre o aperfeiçoamento das instituições democráticas vivido pelo Brasil nos últimos anos, sem deixar, contudo, de manter vivas as lembranças do que ocorreu no Brasil – de bom e de ruim – ao longo do ciclo autoritário iniciado em 1964 e que se estendeu até 1985.

O cinema constitui-se numa excelente ferramenta para isso, uma vez que produziu e continua produzindo excelentes filmes a respeito dos regimes autoritários que predominaram na América Latina nas décadas de 1960 e 1970, dos processos de redemocratização que se seguiram e, como no caso de Deslembro, dos traumas vividos pelos filhos dos ativistas políticos de então.

Com esse tipo de reflexão em mente, assisti, recentemente, ao filme Deslembro, que versa sobre a adolescente Joana (Jeanne Boudier), que, depois de passar boa parte da vida no exílio, se vê obrigada a abandonar a França, país onde cresceu e estabeleceu relações, e voltar ao Brasil. A experiência é familiar à diretora, Flávia Castro, que também foi exilada quando criança e retornou ao país nessa fase da vida.

Apesar disso, o filme não é uma autobiografia e oferece oportunidades para refletir sobre determinados aspectos dos períodos de exceção no Brasil e no Chile, já que o padrasto de Joana (Marcio Vito) é um chileno que procura escapar do regime de Pinochet.

A protagonista é uma jovem de 16 anos, cujo pai desapareceu durante o regime militar, que vive suas dúvidas, angústias e rebeldias ao retornar, contra sua vontade, ao Brasil depois de viver durante anos na França.

“A trama”, de acordo com a crítica de Clara Campoli, “se concentra na relação de Joana com o Brasil e com o pai, o desaparecido político Eduardo (Jesuíta Barbosa). O trauma da morte jamais confirmada influencia em muitos aspectos da vida da adolescente, desde a obtenção de autorizações dos pais para uma viagem escolar até sua própria autoimagem. Se uma criança passa por um forte trauma quando é bem pequena, como isso reverbera na versão que ela mesma faz dos fatos?”

O ponto alto do filme, a meu juízo, são os diálogos de Joana com a mãe (Sara Antunes), que evita de todas as formas falar sobre a morte do marido, e com a avó paterna, magnificamente interpretada por Eliane Giardini, que se torna a ponte entre a neta e o filho, a única memória possível que a garota poderia ter do pai.

Sem deixar de focalizar, embalado numa belíssima trilha sonora, aspectos típicos da adolescência como o primeiro amor e experiências com cigarros e maconha, ou ainda a luta íntima de Joana entre a ideologia e o medo de se ter pais ativistas políticos, Deslembro, com certa visão poética, aborda o mesmo tema de outros filmes como O ano em que meus pais saíram de férias e Kamchatka. Mesmo com essa visão poética, e talvez de forma menos direta do que os outros filmes, permite revisitar esse passado ainda recente da nossa história e valorizar, ainda mais, a democracia, que, como bem observou Churchill, “é o pior dos regimes, com exceção de todos os outros que já foram tentados”.

Referências bibliográficas e webgráficas

CAMPOLI, Clara. Deslembro é triste retrato do trauma da ditadura em crianças. Disponível em https://www.metropoles.com/entretenimento/cinema/critica-deslembro-e-triste-retrato-do-trauma-da-ditadura-em-criancas.

PAIM, Antonio. Personagens da política brasileira. São Paulo: Scriptum Editorial, 2019.

Referências cinematográficas

Título: Kamchatka

Direção: Marcelo Piñeyro

Elenco: Ricardo Darin, Cecília Roth, Héctor Alterio, Matías Del Pozo, Milton De La Canal, Fernanda Mistral, Tomás Fonzi, Mónica Scapparone

País e ano de produção: Argentina, 2002

Duração: 105 min

 

Título: O ano em que meus pais saíram de férias

Direção: Cao Hamburger

Elenco/Vozes: Michel Joelsas, Germano Haiut, Daniela Piepszyk, Simone Spoladare, Eduardo Moreira, Caio Blat, Paulo Autran

País e ano de produção: Brasil, 2006

Duração: 103 min

 

Título: Deslembro

Direção: Flávia Castro

Elenco: Jeanne Boudier, Sara Antunes, Marcio Vito, Eliane Giardini, Jesuíta Barbosa

Fotografia: Heloísa Passos

País e ano de produção: Brasil, 2018

Duração: 96 min