Emendas parlamentares ao orçamento:

um caso típico de desvio de função

Eiiti Sato[1]

A questão das emendas parlamentares ao orçamento tem sido objeto de discussão de forma equivocada, como um problema de respeito à democracia e à independência do Poder Legislativo. Na realidade, trata-se de um caso típico de “desvio de função”, isto é, se fôssemos considerar um “organograma” de trabalho do Estado brasileiro, qualquer advogado trabalhista facilmente enquadraria as “emendas parlamentares ao orçamento” como um caso bem tipificado de “desvio de função”, onde parlamentares desempenham funções para as quais não foram contratados, isto é, não foram eleitos. Na prática, por meio desse dispositivo, deputados e senadores estão, de fato, realizando atividades típicas do Poder Executivo.

O óbvio: deputados e senadores são eleitos para o Legislativo

Com efeito, deputados e senadores são eleitos para funções legislativas e não para gerir – no todo ou em parte – o Estado e o patrimônio territorial, econômico, político e cultural da nação. No sistema eleitoral brasileiro apenas os Chefes do Poder Executivo (presidente, governadores e prefeitos) são eleitos pelo voto popular para administrar o Estado, suas instituições e seus recursos, sendo inclusive responsabilizados pelo exercício dessa função. Assim, destinar qualquer recurso para que seja gerido por parlamentares constitui flagrante desvio de função e não um exercício de representatividade.

Apesar de tudo, deputados e senadores, há tempos vêm utilizando “emendas parlamentares ao orçamento” como parte de seu capital político – seja para benefício de seu prestígio junto a seus eleitores, seja como forma de pressionar o Poder Executivo na promoção de seus interesses partidários ou pessoais. Em 2015, sem qualquer pudor, o próprio Legislativo transformou as emendas parlamentares ao orçamento em lei (PEC do orçamento impositivo), dando a cada parlamentar cerca de R$ 15 milhões anuais para gastar com atividades que, por dever de mandato previsto na Constituição, deveriam ser realizadas apenas pelo Poder Executivo.[2] Vale lembrar que essa lei também abriu as portas para que Estados e até alguns municípios adotassem práticas semelhantes em suas alçadas.

Apesar da promulgação da PEC, nos artigos 85 a 87 a Constituição Brasileira vigente continua estabelecendo que é da responsabilidade do Poder Executivo proteger e manter, isto é, administrar os bens e o patrimônio da União (descritos nos artigos 20 e 21) e manter a segurança e a ordem interna e externa do país. Em outras palavras, o Poder Executivo continua sendo responsável pelo funcionamento do Estado tanto no que diz respeito à produção de receitas (impostos, taxas, contribuições, etc.), quanto no emprego dessas receitas para o benefício da nação, o que inclui até mesmo a manutenção dos Poderes Legislativo e Judiciário. Em resumo, objetivamente, apenas o Poder Executivo pode ser responsabilizado perante a lei pela manutenção da ordem e da segurança da nação, o que inclui o funcionamento do próprio Estado, cabendo-lhe, portanto, tomar todas as providências e destinar recursos que considerar necessários para atingir esse abrangente propósito. Senadores e deputados não são responsabilizados pelo uso, ou pelo mau uso, dos recursos públicos.

Divisão e equilíbrio entre os Poderes

Na divisão de poderes, ao Judiciário cabe estritamente julgar direitos e obrigações de cidadãos, autoridades e organizações de acordo com a ordem jurídica vigente. Quanto ao Congresso Nacional, suas atribuições e responsabilidades são estabelecidas pelos artigos 48 a 53 da Constituição vigente no Brasil. Nesses artigos os termos utilizados são: “dispor sobre”, “apreciar”, “autorizar”, “aprovar”, “sustar”, “zelar”, “fiscalizar”, “julgar”, e “controlar”. Ou seja, em termos objetivos e de forma bem resumida, de variadas formas, o Senado Federal e a Câmara dos Deputados têm por função fiscalizar e, eventualmente, controlar e indicar de que modo e com que zelo os recursos públicos devem ser empregados para os fins para os quais o Presidente – Chefe do Poder Executivo – foi eleito.

Conceitualmente, a divisão entre os poderes é um princípio presente nas democracias modernas. Em sua essência, quando Montesquieu (1689-1755) e outros fundadores da democracia moderna introduziram o princípio da divisão de poderes, o objetivo era o de evitar que o governante concentrasse poder em demasia tornando-se um tirano. O controle do Governante seria feito pelo Judiciário, que deveria estar sempre vigilante para que tudo fosse feito dentro do respeito às leis vigentes enquanto, ao Legislativo, caberia fiscalizar e cuidar para que o exercício de comandar o Estado, pelo Executivo, fosse feito respeitando-se a ordem política refletida no sistema federativo e na complexa rede de instituições da nação.

Mesmo no Parlamentarismo, os Poderes são distintos

Mesmo nos regimes parlamentaristas, não cabe aos parlamentares administrar os recursos do Estado, isto é, as receitas do Estado não são divididas entre os membros do parlamento. O que distingue o parlamentarismo do presidencialismo é o fato de que são os parlamentares que elegem um de seus pares para desempenhar as funções de Executivo, de gestor dos recursos do Estado. Ou seja, no parlamentarismo, o Primeiro Ministro, embora eleito pelos seus pares – e não pelo voto popular – na prática, exerce o Poder Executivo de modo muito semelhante ao do governante em um regime presidencialista.

Em conclusão, as emendas parlamentares ao orçamento são, na realidade, uma anomalia do ponto de vista conceitual e, formalmente, uma distorção inconstitucional no funcionamento de um Estado que se pretende um modelo de democracia moderna.

[1] Professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.

[2] O Estado de Goiás possui 246 municípios. Cristalina, com uma população de 59 mil habitantes é o 21º município do Estado. A receita anual de Cristalina em 2019 foi de R$ 108 milhões. A soma dos valores das emendas parlamentares dos 17 Deputados Federais e dos 3 Senadores pelo Estado de Goiás, totaliza R$ 300 milhões, ou seja, equivale a três vezes a receita anual do 21º município do Estado de Goiás.