O valor da vida humana no Brasil:
um problema social e civilizatório
Eiiti Sato[1]
Quando um problema é mostrado e discutido com grande frequência torna-se vítima da banalização – a menos que seja solucionado. Os dicionários definem “banal” como algo trivial, algo comum, que ninguém valoriza e nem presta mais atenção. Pobreza, por exemplo, praticamente deixou de ser objeto de preocupação não apenas da população em geral, mas até mesmo das autoridades instaladas no poder. As imagens presentes nos noticiários mostrando pessoas vivendo em condições precárias, formando bairros marcados pela sujeira, pela pobreza e sempre sujeitas a enchentes, desmoronamentos e outros desastres, há tempos deixaram de impressionar as autoridades e a audiência em geral. As cenas passaram a ser vistas como simples componentes da realidade sobre a qual ninguém tem culpa ou responsabilidade, nem mesmo as agências oficiais, secretarias e até ministérios, ainda que tenham sido criados com o propósito de “combater as desigualdades sociais”. Na realidade, o tema é bastante complexo e demanda verdadeiras políticas de Estado – consistentes e de longo prazo – indo muito além da contratação de pesquisas sociais sobre aspectos da questão ou de medidas e programas de ajuda para acomodar algum clamor popular momentâneo.
A banalização da pobreza e das desigualdades sociais, na realidade, além de suas facetas econômicas, políticas e sociais, tem componentes profundamente culturais. Hábitos, costumes e modos de ver o mundo tornam-se, ao mesmo tempo, causa e efeito de uma realidade cotidiana feita de carências e de desejos inatingíveis não apenas em relação a bens materiais. Em outras palavras, viver na pobreza não significa apenas a impossibilidade de frequentar e de fazer compras nas lojas elegantes dos “shoppings”, e vai também muito além das carências de moradias confortáveis e de acesso a boas escolas e a serviços de saúde que tratam o enfermo com a devida dignidade. A pobreza banalizada também se associa a toda forma de crimes e ilegalidades. Em toda parte onde o fenômeno da banalização da pobreza se instala, também se instalam os grupos que vivem à margem da lei, praticando todo tipo de comércio ilegal, tais como tráfico de drogas ilegais, exploração da prostituição, roubos e assaltos, construções ilegais, grupos de extermínio etc.
Nesse ambiente, a vida e a morte têm muito pouco a ver com o que costumamos ler e assistir nas grandes tragédias gregas ou shakespeareanas, nos romances dos grandes escritores, ou nas tramas investigativas dos contos e filmes policiais. A banalização retira qualquer conteúdo dramático tanto da vida quanto da morte. De um lado, torna-se trivial uma mulher com menos de 20 anos de idade ter dois ou três filhos de pais diferentes, isto é, tanto a união quanto a desunião de casais nem sequer são objetos da consideração de uma formalidade social ou jurídica. O nascimento de uma criança é, portanto, algo banal, uma simples consequência de um fato biológico. O passado e o futuro dessa criança não fazem parte das considerações de pais, familiares e do meio social em que nasce. De outro lado, os cerca de 50 mil assassinatos que ocorrem anualmente no Brasil – a maioria associada a ambientes de pobreza – costumam resultar de motivos banais que vão desde latrocínio até assassinatos por ciúmes, por cobrança de dívidas decorrentes do comércio de drogas ilícitas, brigas de trânsito, ou até mesmo como produto de desentendimento em um momento em que o uso de drogas teria deixado um ou ambos os protagonistas fora de si.
Com efeito, esse cenário contrasta de forma radical com os personagens e os fatos que povoam as tragédias gregas e shakespeareanas. Nessas tragédias, o nascimento de uma criança traz consigo indagações sobre o passado e expectativas e mistérios sobre o futuro, e até mesmo o acaso pode ter papel dramático no nascimento e na morte de algum personagem. Nos contos policiais também o conteúdo trágico da morte se faz presente e explica porque um pensador como G. K. Chesterton escolhe esse gênero literário para levantar indagações e reflexões sobre a sociedade e os valores que orientam a vida humana.
Há algumas décadas, quando ainda a pobreza e a criminalidade no Brasil ainda nem tinham assumido as proporções de nossos dias, em um momento de desalento, um analista comentava: “parece que nosso pobre país está fadado a passar diretamente do subdesenvolvimento para a barbárie …”
[1] Professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.
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