O orçamento público e a política econômica e social do Estado brasileiro

Eiiti Sato[1]

Com o fim da guerra fria, uma pergunta que se disseminou nos países em desenvolvimento foi: por que algumas democracias são prósperas e socialmente equilibradas, enquanto outras permanecem pobres e apresentam fortes desequilíbrios sociais? Com efeito, há muitas diferenças entre as “democracias”, assim como há muitas diferenças entre as sociedades, uma vez que dependem da cultura sedimentada ao longo de séculos. Assim, muitos fatores políticos que influenciam o desempenho econômico devem ser buscados mais na Sociologia Política do que na Ciência Política. Uma dessas diferenças – apontada neste artigo – refere-se à forma como se dá a relação do povo com o Estado.

Uma característica da relação do povo brasileiro com o Estado é a baixa percepção de que o dinheiro público tem sua origem no trabalho do cidadão que, ao gerar riqueza para si, forma também a base da riqueza da nação. De forma caricaturada, pode-se dizer que a grande maioria dos brasileiros percebe o “tesouro nacional” como uma espécie de “cartola de mágico”, de onde os governantes podem extrair recursos inesgotáveis à sua escolha e, como reis bondosos ou temperamentais, distribuem benesses a seus súditos preferidos. Em outros países, como os EUA, a relação entre o povo e o dinheiro público se afigura bem mais realista: o cidadão médio tem presente na maior parte do tempo – em especial nos períodos eleitorais – o fato de que os gastos públicos estão associados com o que o governo arrecada de seu povo, seja por meio de impostos, de taxas e de outras contribuições pagas pelo povo, ou por meio de dívidas, que o governo contrai e, depois, manda as contas para que o povo as pague.

Outra característica da visão brasileira sobre a relação entre o povo e o Estado é a de entender que tudo o que é moral e socialmente bom e desejável somente pode vir do Estado. Assim, por exemplo, investimentos em educação, saúde e bem-estar só podem ser gerados a partir de recursos do Estado. O indivíduo não deve ser responsabilizado por sua pouca instrução ou por sua imprevidência. Gastar em educação e cultura, ou fazer uma poupança para as necessidades da velhice são ações de responsabilidade praticamente exclusiva do Estado e não algo em que o Estado tem um papel de complementação da capacidade de discernimento do indivíduo. Em outras sociedades, até mesmo numa sociedade como a chinesa – comandada pelo Partido Comunista – não há universidade pública gratuita. O Estado pode até subsidiar parte dos custos das universidades, mas as famílias dos estudantes devem pagar boa parte dos custos de educação de seus filhos. No Brasil, considera-se um verdadeiro escândalo até mesmo discutir a hipótese de que os estudantes e suas famílias paguem alguma parte dos custos da universidade pública, enquanto as faculdades privadas, com raras exceções, apostam mais nos subsídios governamentais diretos ou indiretos do que na excelência do ensino. Na saúde pública, como o Estado não tem condições de cumprir a constituição que diz que a “saúde é um dever do Estado”, contorna essa impossibilidade por meio da precariedade nos serviços oferecidos.

O fato é que um balanço resumido da situação fiscal do Estado brasileiro é desanimador em relação ao futuro. O entendimento de que os recursos públicos brotam de uma cornucópia mágica e não do trabalho dos contribuintes, combinado com a ideia de que quaisquer investimentos em aspectos moral e socialmente desejáveis só podem ser feitos pelo Estado, resulta em um cenário de perspectivas desalentadoras para o Brasil. Em um mundo de competição tecnológica frenética e globalizada e de mudanças contínuas, os investimentos realizados pelas sociedades definem sua posição no mundo. Nesse aspecto, o quadro a seguir, mostra as taxas de investimento de alguns países e revela porque a economia brasileira, há tempos, tem marcado passo, crescendo a taxas bastante medíocres em relação ao resto do mundo:

 Taxas de investimento como proporção do PIB (recursos públicos + privados)

                      Brasil               Mundo           China             França              Chile

2000                16,8                 24,3                 34,4                 22,5                 22,1
2002                16,4
                 23,2                 37,0                 21,3                 22,3
2004                16,1
                 24,5                 42,8                 21,9                 19,8
2006                16,4
                 25,3                 40,9                 23,2                 20,8
2008                19,1
                 25,5                 43,2                 24,1                 23,5
2010                 19,5                 24,2                 47,6                 21,9                 26,8
2012                 18,1                 24,3                 47,2                 22,6                 23,1
2016                 
16,4                 23,8                 44,2                 22,7                 26,5

Fonte: OCDE National Accounts Data Files.

Há muitos elementos que explicam essas cifras e um deles é o fato de que, enquanto em outros países parte substancial dos investimentos (cerca de ¾) são feitos por indivíduos e por organizações privadas, no Brasil, espera-se que o Estado faça esses investimentos. Por exemplo, no Brasil, apenas algo em torno de ¼ dos recursos alocados para as instituições de ensino e pesquisa, tem origem privada. Por outro lado, em notável contraste, os gastos públicos com a distribuição de benesses a servidores públicos e suas famílias e com a manutenção do próprio Estado se diferenciam radicalmente do que ocorre em outros países. Um caso exemplar desse contraste é o Congresso. Poucos sabem que o Congresso Nacional custa absurdamente mais do que em outros países. Para 2020, conforme a lei orçamentária aprovada, as despesas da Câmara dos Deputados estão previstas em R$ 6,3 bilhões e do Senado Federal em R$ 4,5 bilhões. Esses valores indicam que o Congresso custa aos brasileiros quase R$ 30 milhões por dia (computados sábados, domingos, feriados e as férias dos congressistas). O custo do Congresso brasileiro é cerca de duas vezes o do parlamento da Alemanha ou três vezes o do Japão. Muito provavelmente é o Parlamento mais caro do mundo. Em termos relativos, essa diferença torna-se ainda mais gritante, já que a economia alemã é o dobro da economia brasileira e a do Japão 2,8 vezes maior do que a brasileira.

Obviamente que os R$ 11 bilhões destinados ao Congresso não explicam o conjunto da obra em termos de distorção no uso do dinheiro público, mas ilustra bem o fato, e dão uma indicação de como e porque os gastos com a previdência social atingiram a proporção atual de 53% de toda a receita fiscal (União, Estados e Municípios) e de como apenas 6% da arrecadação fiscal fica para os governos eleitos utilizarem como instrumento de política econômica, social, de segurança, ou para qualquer outra vertente das políticas públicas. Nos EUA o Poder Executivo dispõe de algo em torno de 35% da receita fiscal para empregar discricionariamente na formulação de políticas públicas na segurança nacional, na eficiência dos serviços públicos, em programas sociais ou em investimentos em políticas econômicas voltadas para a estabilização, a modernização e o crescimento da economia.

A recente reforma da previdência social não vai resolver essas distorções no orçamento público, mas espera-se que seja bem mais do que um simples passo, e que seja, isto sim, uma iniciativa de uma tendência no sentido de reverter o padrão predominante no emprego dos recursos públicos, que tem limitado drasticamente quaisquer esforços de desenvolvimento econômico e social no Brasil.

[1] Professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília