Uma crise que pode desorganizar a economia brasileira
Eiiti Sato[1]
Toda crise, em princípio, é inesperada e sem precedentes. Nos anos que antecederam a crise financeira de 2008 alguns artigos e manifestações de autoridades haviam, de alguma forma, levantado a questão de que o sistema financeiro revelava dados e desequilíbrios preocupantes. Mesmo assim, quando a crise se desencadeou, em toda parte, as autoridades financeiras e monetárias, bem como os diretores de bancos e de fundos de investimento foram obrigados a “correr atrás” de medidas e de arranjos para conter os efeitos da crise. No momento, embora as preocupações mais imediatas estejam concentradas na saúde, em toda parte as autoridades econômicas se veem diante da perspectiva de uma recessão que se afigura bem maior do que a de 2008 e mais difícil de ser enfrentada, sobretudo em países como o Brasil por algumas razões.
1 – A crise afeta toda a economia real. O lado mais visível e imediato são os cancelamentos de viagens e excursões, a redução substancial das reservas em hotéis e a as orientações para evitar a frequência a bares e restaurantes. Na realidade, o estímulo à redução do consumo afeta todo o comércio e a indústria de serviços, que hoje representa a maior parte do PIB. Redução no consumo de energia sob todas as formas também é uma consequência inevitável. Tudo isso se reflete no comércio exterior, já que a crise é global. Na economia real, é como se houvesse, de forma composta, os efeitos de um Natal, um dia das mães, dos pais, dos namorados e de um “Black Friday” ao contrário e por mais tempo, isto é, ao invés de estímulos ao consumo, tem-se medidas fortemente restritivas ao consumo presente e futuro.
2 – Na economia simbólica, a volatilidade dos índices das bolsas de valores refletem os efeitos sobre o sistema financeiro, com a desvalorização substancial dos ativos financeiros e, consequentemente, da poupança acumulada que poderia irrigar a atividade econômica e possibilitar o tempo necessário à recuperação. A desvalorização da moeda, por sua vez, reduz consideravelmente a capacidade de importar da economia, inclusive de insumos industriais que hoje são essenciais para alimentar as cadeias de produção, mesmo em economias como a brasileira pouco integrada à economia mundial.
3 – A crise afeta diretamente a capacidade do governo de atuar, já que a substancial redução da atividade econômica significa redução igualmente significativa da arrecadação fiscal. Nesse particular um país como o Brasil deverá sofrer mais, e por mais tempo, os efeitos da redução da arrecadação. Tal como uma grande enchente ou um terremoto, uma crise na saúde nas proporções do coronavírus demanda dos governos medidas extraordinárias que significam gastos extra orçamentários. Para uma economia como a dos EUA onde cerca de 35% da arrecadação são gastos discricionários, o governo tem considerável espaço para remanejar seus recursos disponíveis. Em um país como o Brasil onde 94% da receita já estão comprometidos por lei, com o pagamento de aposentadorias, pensões, salários de todo o funcionalismo público e direitos sobre percentuais de impostos, etc. etc., não há espaço para remanejar gastos. Em princípio, todos os ministérios já estão operando abaixo de suas necessidades de recurso, o que explica o déficit previsto na Lei Orçamentária de cerca de R$ 124 bilhões.
Em resumo, o quadro geral parece apontar para um quadro recessivo para a economia global e também para a economia brasileira, que já vinha mantendo desempenho abaixo da média mundial. Há uma proposta para a decretação de um estado de calamidade pública para permitir que os gastos públicos ultrapassem as cifras previstas na Lei Orçamentária sem a consequente aplicação da lei de responsabilidade fiscal. Tudo indica que não há outra saída, muito embora signifique um substancial acréscimo no endividamento público. Dessa forma, o problema crucial que se apresenta diante do ministro Paulo Guedes parece ser: será que o Governo Bolsonaro terá condições de evitar o efeito desorganizador que esse inevitável acréscimo no endividamento deverá ter sobre a economia brasileira?
[1] Professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.
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