Pandemia, crise fiscal e federalismo: vamos socializar a dívida?

Eduardo José Monteiro da Costa[1]

Tenho acompanhado com muita preocupação as iniciativas e os debates recentes que envolvem as consequências da pandemia, a crise econômica e a queda de arrecadação dos estados. O momento atual explicita a complexidade e a importância de um sério debate sobre o nosso modelo federativo e o nosso federalismo fiscal. Antes mesmo da crise o Brasil já enfrentava uma séria crise federativa, com parte significativa de seus estados e municípios apresentando dificuldades para realizar o pagamento de seu funcionalismo público; quanto mais pensar em investir em áreas estratégicas como saúde, educação, saneamento e infraestrutura, por exemplo.

A falência fiscal de muitos estados e municípios decorreu de vários fatores, tais como a transferência de competências sem a garantia de fontes próprias de arrecadação, a incapacidade de organizar uma eficiente base tributária (deixando de arrecadar e ficando dependente de transferências de outros níveis de governo), a má gestão e a corrupção. Estados como o Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais se tornaram casos paradigmáticos, exemplos de má gestão. Outros, como o Pará, em que pese as características de sua base econômica (economia primária-exportadora com uma restrita base tributável) e as injustiças no federalismo fiscal brasileiro, deram um contraexemplo, mostrando que a qualidade da gestão é um fator importante, sobretudo para a manutenção do equilíbrio fiscal das contas públicas.

Contudo, a crise atual, com a queda da atividade econômica, inevitavelmente levou ao agravamento deste quadro de colapso federativo. É neste momento que surge um perigo imanente para o federalismo brasileiro, quando por de trás de toda a comoção com as consequências da pandemia surge o oportunismo político aliado a interesses nada republicanos.

A decretação do estado de calamidade pública em alguns estados e municípios está permitindo que, por meio de compras sem licitação, ocorra escrachadamente uma farra com os recursos públicos, manifesta, dentre outros, em compras superfaturadas e favorecimentos explícitos, expondo claros indícios de corrupção.

Assim, sem se discutir elementos como controle social, transparência, accontability, ou mesmo aprimoramento de critérios relacionados a eficiência dos gastos, ou mesmo o aprimoramentos dos instrumentos de arrecadação e melhorias da gestão, muitos governadores estão manipulando a sua base política para de um lado repassar a conta diretamente à União; e para, ardilosamente aproveitar o momento atual para colocar na conta do combate a pandemia o perdão da dívida dos estados, ou o repasse dessa dívida para a União.

Convém chamar a atenção que o perdão da dívida se materializará em um irrecuperável risco moral para a sociedade brasileira e um “tapa na cara” dos estados que fizeram o seu dever de casa. A outra opção, o repasse da dívida, significa a patilha explícita da conta da má gestão e da corrupção com os demais cidadãos brasileiros por meio de seus entes federados. É como se um membro de sua família “estourasse o cartão de crédito” e no final, propusesse marotamente que a fatura deveria ser paga por todos os membros da família, inclusive por aqueles que não usufruíram das benesses do endividamento.

Dito de outro modo, será aceitável, por exemplo, para o cidadão do Pará, um estado pobre e que sofre com inúmeras injustiças federativas, que durante os últimos governos adotou uma gestão pública que logrou reconhecido equilíbrio nas contas públicas, assumir a dívida de estados como Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul?

Fica aberto o convite para o debate, principalmente porque muitas vezes a justiça, sobretudo a federativa, não é critério levado em conta pelo nosso Congresso Nacional. Ao menos tem sido assim durante muitos anos!

[1] Doutor em Economia pela Unicamp e professor da UFPA. Correio eletrônico: ejmcosta@gmail.com