Síndrome de Édipo e a política brasileira: para além da legitimidade
Eiiti Sato[1]
É desnecessário dizer que são muitos os significados que podem ser extraídos do mito de Édipo e que qualquer tentativa de encontrar um sentido “definitivo” não passa de presunção. As grandes obras e os grandes personagens aos quais nos referimos como “clássicos” apresentam essa qualidade: são inesgotáveis, e Édipo é, sem dúvida, um “clássico” e um dos mitos mais ricos em matéria de significados. Nesta breve reflexão, procura-se explorar, a partir do mito de Édipo, apenas um dos aspectos mais intrigantes da Ciência da Política: o fenômeno do poder e as dificuldades de povos e de governantes conviverem com esse fenômeno.
O poder e sua legitimação
Qual a relação entre o governante e a nação que governa? Em toda a trajetória da ciência da política a existência de uma estreita relação entre governantes e governados tem sido estudada e discutida incansavelmente em virtude da percepção inquietante de que a prosperidade e o bem-estar da nação estão inextricavelmente ligados ao destino do governante. A conhecida máxima de Aristóteles “o homem é um animal político” atenta para a inevitabilidade da dimensão política na existência das sociedades humanas, suscitando perguntas que, na essência, têm sentidos muito próximos ou, pelo menos, complementares: por que o governo hereditário deve ser substituído pelo governo eleito pelo povo? Como escolher um bom governante? Como substituir um governante quando sua condição de governar torna-se demasiadamente precária sem que essa troca destrua a ordem social e política?
No mito de Édipo, o reino de Tebas é tomado de aflição pelo misterioso aparecimento da Esfinge. Postada às portas da cidade, a Esfinge devora os passantes, a menos que decifrem seus enigmas. De onde e por que a Esfinge aparece para assombrar a cidade? Olhando-se a pergunta pelo lado da Ciência Política, uma possível interpretação pode ser o entendimento de que governar a cidade exige inteligência e discernimento. É preciso que o governante seja capaz de decifrar os enigmas de cuja solução dependem a felicidade e a prosperidade do povo que governa, e entre esses enigmas, está a compreensão do poder e do próprio homem em sua natureza ambígua e complexa. Na solução desses enigmas, a primeira resposta a ser encontrada refere-se ao problema do poder.
Édipo, sem o saber, havia matado o rei Laio numa briga de estrada. Tebas sem rei, está sujeita à luta pelo poder entre os candidatos ao trono; uma luta fratricida que devora todo aquele que se aventura a decifrar o enigma, isto é, o enigma do poder. Nos dias de hoje, infelizmente não são poucas as nações que, virtualmente, se dissolvem em guerras civis, produzindo refugiados e consumindo vidas, riqueza e o próprio futuro da nação. Em Tebas, a quem deve ser dado o poder? Por que Édipo deve ser rei?
Édipo, pela cruel ironia do destino, revela-se como a solução para o flagelo da Esfinge por sua inteligência e discernimento e, diante de um povo que o aclama, precisa casar-se com Jocasta – um passo necessário para completar sua legitimidade como rei. Casando-se com a rainha viúva, não haverá mais contestadores de sua posição no trono de Tebas. Com efeito, uma das passagens freqüentemente lembradas da Odisséia de Homero é o do sudário que Penélope tecia durante o dia diante da vista de todos, e desfazia à noite o trabalho feito, secretamente, alegando que somente se casaria com um dos pretendentes quando o sudário estivesse terminado. Fiel a Ulisses, que partira para a Guerra contra Tróia, usava esse estratagema diante da insistência dos pretendentes à coroa de Ítaca por meio do casamento com a rainha que se supunha viúva. Assim, na tradição grega daqueles tempos, casar-se com a rainha viúva constituía parte importante do processo de legitimação do poder real e, em conseqüência, o casamento de Édipo com Jocasta era um passo necessário para restabelecer a ordem política em Tebas. Na lenda, o casamento se consuma e, por anos, Tebas vive em paz e em prosperidade. Édipo revelava-se inteligente e capaz de compreender com propriedade os dilemas de seu povo e, além disso, tinha a rainha Jocasta por esposa, que lhe dera quatro filhos como prova de seu amor e de seu compromisso.
O problema é que a legitimidade não basta. O governante precisa de credibilidade, uma qualidade que não se adquire nem pela hereditariedade e pelos costumes, e nem pela eleição que hoje chamamos de democrática. O governante pode ser eleito e empossado de forma absolutamente legítima, mas pode perder credibilidade rapidamente por revelar incompetência ou por envolvimento, mesmo que involuntário (como Édipo), em fatos que, de algum modo, sejam contrastantes com as leis e os costumes. Assim, credibilidade é a condição que deixa o governante insuspeito e que o torna capaz de inspirar confiança em suas palavras e em suas ações. Por essa razão, especialmente em momentos difíceis, a credibilidade acaba se tornando mais importante do que a própria legitimidade.
A síndrome de Édipo
No mito, quando a nuvem negra da dúvida se abate sobre Tebas, a cidade não pode mais viver em paz e desfrutar da prosperidade. Édipo, o rei amado e admirado, perdeu a credibilidade. As dúvidas e as suspeitas sobre a morte de Laio e sobre as origens de Édipo, como um hálito maligno do destino, voltam para assombrar o reino:
“Tu bem vês que Tebas se debate numa crise de calamidades, e que nem sequer pode erguer a cabeça do abismo de sangue em que se submergiu; ela perece nos germens fecundos da terra, nos rebanhos que definham nos pastos, nos insucessos das mulheres cujos filhos não sobrevivem ao parto. Brandindo seu archote, o deus maléfico da peste devasta a cidade e dizima a raça de Cadmo; e o sombrio Hades se enche com os nossos gemidos e gritos de dor … Salva de novo a cidade; restitui-nos a tranqüilidade, ó Édipo! Se o concurso dos deuses te valeu, outrora, para nos redimir do perigo, mostra, pela segunda vez, que és o mesmo! Visto que desejas continuar no trono, bem melhor será que reines sobre homens, do que numa terra deserta. De que vale uma cidade, de que serve um navio, se no seu interior não existe uma só criatura humana?” (Édipo Rei, de Sófocles)
São as palavras do sacerdote dirigidas a Édipo diante dos portões do palácio real. Agora não é mais o flagelo da Esfinge que assola Tebas, mas o flagelo da dúvida, do crime sem punição. Pode-se dizer que Tebas está às voltas com um mal que poderia ser chamado de “síndrome de Édipo”: a dúvida e o crime sem punição afetam a credibilidade do governante. As conseqüências para a nação são tão nefastas quanto a incapacidade de desvendar os enigmas e os dilemas que o governante precisa enfrentar para realizar um bom governo. Acaba por contaminar também a legitimidade do governante, mesmo que este tenha se tornado governante de acordo com as leis e os costumes. Nos dias de hoje o governante seria eleito pelo voto, mas isto não altera a natureza do poder. A dúvida, transformada em suspeita, afeta diretamente a legitimidade e, conseqüentemente, a condição de governar com todos os efeitos negativos para as colheitas, para os negócios e para a vida do povo em geral, como proclama o sacerdote diante dos portões do palácio real de Tebas. Hoje, o reino seria tomado pela inflação, pelo endividamento, pelo desemprego e, por que não, por pragas como o mosquito da dengue ou por rompimentos de barreiras, enchentes e secas prolongadas que comprometem o fornecimento de energia? Ou, ainda, pela incapacidade do governante de conduzir a nação diante de uma pandemia que, surpreendentemente assola o mundo todo? O destino trágico de Édipo vai mostrar que, ao afinal, nem a inocência pode salvar o governante envolto em suspeitas de crimes, mesmo que esses crimes tenham sido cometidos sem intenção, de forma inocente, isto é, sem seu conhecimento. Quando uma doença ou uma crise de confiança atinge o homem comum, os efeitos somente atingem a ele próprio e à sua família, mas quando um governante é acometido de uma crise de confiança – justa ou injusta, não importa – seus efeitos se abatem, como uma praga, sobre a nação toda.
Controlar o lado sombrio do poder
Ao longo do tempo, a convivência com o fenômeno do poder foi sempre cheio de percalços e as formas de governo foram evoluindo na busca de instituições e práticas que tornassem a condição humana menos sujeita à face mais sombria e cruel do fenômeno do poder. Maquiavel e Hobbes foram pensadores que se tornaram verdadeiros marcos nessa trajetória ao mostrar essa face mais sombria e menos glamourosa do poder, sempre à espreita de governantes e de governados. As boas e até santas intenções sempre se revelaram insuficientes. Na realidade, a história mostra que a maioria das tiranias teve por origem governos bem intencionados e, desde tempos imemoriais, não há tirano que não se declare legítimo defensor do povo, sobretudo dos mais humildes. No século XVII, os iluministas compreenderam essa relação entre governante lúcido e bem instruído e a felicidade e prosperidade da nação; estavam absolutamente corretos em propugnar a importância de se preparar adequadamente o rei para desvendar os enigmas da Esfinge mas, ao longo do tempo, essa prerrogativa mostrou-se difícil de ser atingida e, pior, insuficiente. Com efeito, o conhecimento pode ser ensinado, mas não há escola para ministrar virtudes, caráter e apetite para governar. Além disso, os contos de fadas sempre lembraram a cegueira da paixão (ou de sua completa ausência) que pode assumir muitas formas, mas todas elas resultando em príncipes cegos ou obcecados. Luís XVI foi um trágico exemplo dessa combinação distorcida entre legitimidade, competência e disposição para manejar o fenômeno do poder. Herdou legitimamente o mesmo governo fortemente centralizado que fez da França de Luís XIV uma nação de notável brilho, a ponto de Voltaire chamar esse tempo de “Século de Ouro”, comparando-o em brilho ao século de Péricles da Grécia Antiga, no entanto, a centralização do poder nas mãos de Luís XVI – mãos inábeis, titubeantes e pouco dispostas ao exercício do governo – deixou como triste herança o colapso da ordem e o regime de terror, além de sua própria ruína pessoal.
O fato é que em meio a avanços e recuos, incompreensões e, sobretudo, lutas sangrentas, na história do Ocidente é notável o processo de construção de instituições políticas com o propósito de reduzir as conseqüências danosas da inevitável convivência das sociedades com o fenômeno do poder, que inclui o seu lado mais sombrio. Na culinária japonesa, há um peixe chamado Baiacu, que é uma iguaria considerada fina e muito apreciada, mas que apenas uns poucos cozinheiros têm o conhecimento e a habilidade suficientes para retirar uma glândula que armazena um veneno letal para aquele que o consome. Com o poder ocorre algo semelhante: a iguaria do poder, para que não se torne um veneno letal, necessita de uma “cozinha” institucional de difícil construção.
Em nosso tempo há variadas formas de governo que refletem diferentes soluções para esse problema da convivência com a face mais obscura do fenômeno do poder, quando um governo é acometido pela “síndrome de Édipo”. Nas grandes democracias, a limitação de tempo por meio da substituição periódica dos governantes constitui traço comum, mas há muitos outros elementos que definem a maneira pela qual as nações encontraram suas formas de lidar com a possibilidade de o governo tornar-se vítima da “síndrome de Édipo”. A divisão de poderes e a descentralização política e administrativa são recursos também comuns às democracias. Com efeito, limitar o poder do governante significa também limitar os efeitos e as conseqüências de um governante inapto ou que esteja passando por uma crise como a de Édipo, onde a figura do governante está tomada pela dúvida e pela desconfiança e por carregar consigo alguma maldição, mesmo que sem culpa.
Em um regime parlamentarista típico, o Chefe de Governo (Primeiro Ministro) diante de uma crise de credibilidade, como a de Édipo, pode ser destituído de seu posto por meio de um simples “voto de desconfiança” do Parlamento, antes que a nação sofra tormentos como os descritos pelo sacerdote diante dos portões de Tebas. No Brasil, onde o poder é marcado por forte tradição centralizadora, onde os cargos de governo são entendidos como propriedade e onde autoridades “tomam posse” de seus cargos, o governante inapto ou objeto de desconfianças, que virtualmente o impedem de governar, só pode ser retirado do posto por meio de um processo jurídico longo, complicado e dispendioso e que precisam percorrer incontáveis instâncias recursais. Assim, ironicamente, retirada de um presidente acometido pela “síndrome de Édipo” só pode ocorrer em circunstâncias semelhantes ao dos ex-presidentes Collor de Melo e Dilma Rousseff que, por alguma razão obscura, trabalharam decidida e incansavelmente para sua própria destituição.
[1] Professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília
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