Em ano de PIB mundial em baixa, erra quem subestima a China
Fernanda Magnotta*
Há tempos acompanhamos o debate sobre a transição do poder hegemônico no sistema internacional. No alvorecer do século XXI, enquanto os Estados Unidos se debruçavam sobre a crise do 11 de setembro, a China era descrita como um dos BRICS, o acrônimo originalmente criado pelo banco de investimentos Goldman Sachs, e que também englobava Brasil, Rússia e Índia, além de incluir, mais tarde, a África do Sul.
De forma bastante simplificada, a tese subjacente ao agrupamento destes países indicava que os seus desenvolvimentos econômicos gerariam significativos impactos no mundo. Consequentemente, seriam necessárias reorganizações dos fóruns mundiais voltados à formulação de políticas públicas.
Aproximadamente vinte anos se passaram desde a primeira vez que a expressão “BRICS” foi utilizada. Dados recentes do FMI mostram que, no ano passado, a China já ultrapassou os Estados Unidos em tamanho do PIB, tornando-se a maior economia do mundo. Embora a estimativa dê conta de que o montante será de pouco mais de US$ 15 trilhões – menor, portanto, do que o PIB nominal norte-americano -, quando o assunto é paridade do poder de compra, a China chega a mais de US$ 24 trilhões contra US$ 20,8 trilhões dos Estados Unidos.
Também do ponto de vista econômico, segundo estatísticas da ONU divulgadas nesta semana, a China se tornou, em 2019, a maior solicitante de patentes internacionais, e aumentou a diferença para os norte-americanos no contexto da pandemia.
Com o governo Trump omisso durante boa parte da crise de Covid-19, Pequim se moveu rápido para preencher vácuos de poder deixados pelos Estados Unidos. Como boa parte do que se demanda para combater o coronavírus é fabricado na China, o país tornou-se central no fornecimento de assistência material para o mundo: primeiro com máscaras e equipamentos de proteção individual em geral, depois com respiradores e, por fim, por meio de ativos farmacêuticos necessários para produzir medicamentos utilizados em infecções secundárias e, claro, vacinas. No meio tempo, também empreendeu uma ampla campanha diplomática para compartilhar práticas de combate à Covid-19, mobilizando instituições regionais asiáticas e incluindo também países de outros continentes.
Em 2020, a China ultrapassou os Estados Unidos, tornando-se o principal parceiro comercial da União Europeia. No Brasil, isso já havia acontecido muito antes, ainda em 2009. A presença chinesa na América Latina e na África é, aliás, objeto central de inúmeros estudos nas últimas décadas.
A China tem a maior população do mundo. É o segundo país em métricas relacionadas a gastos militares. Do ponto de vista econômico, mesmo no contexto da crise internacional, em que os números são os mais modestos desde 1976, as informações da OCDE reportam que a China poderá ser a única potência com crescimento positivo no planeta em 2020: aproximadamente 2,3%.
Com o desenvolvimento como prioridade máxima, o país adotou a chamada “going out policy”. Trata-se de uma estratégia para incentivar as empresas chinesas a investirem no exterior, com apoio dos bancos estatais (os chamados “big four”), do Banco Chinês de Desenvolvimento e de bancos multilaterais.
Além disso, sob a gestão do presidente Xi Jinping, a China lançou, há alguns anos, a iniciativa “Belt and Road”, que visa renovar a antiga rota da seda por meio da construção de corredores terrestres e marítimos. O megalomaníaco projeto de infraestrutura abarca mais de 60 países, cerca de 65% da população mundial e 1/3 do PIB global. Envolve a criação de novas estradas, portos, estruturas ferroviárias, oleodutos, gasodutos, linhas de transmissão de energia e parques industriais. Com isso a China tem a intenção de consolidar sua influência no exterior imediato e projetar setores específicos como telecomunicações, transportes e indústria pesada.
Ao mesmo tempo, a China também promove o “Made in China 2025”, um plano que visa fortalecer a produção manufatureira de alto valor agregado no país. Entre os setores considerados chave pelo governo estão tecnologia da informação, equipamento aeroespacial, novos materiais, equipamentos médicos, maquinário agrícola, entre outros. O objetivo é abastecer cadeias de suprimento e promover a inovação internacional por meio de inteligência artificial e big data.
Enquanto isso, além de liderar o G-20 e participar de blocos regionais, a China também se articula para criar a Comunidade Econômica do Leste Asiático, a Parceria Econômica Regional Abrangente e a Área de Livre Comércio da Ásia Pacífico.
Está desatualizado quem ainda olha para a China como um exportador de quinquilharias ou produtos de baixo valor agregado. Também está mal informado quem assume que a China simplesmente almeja emplacar o comunismo mundo afora. A China desse século trabalha para se consolidar como potência tecnológica. Está interessada em não perder o bonde da revolução 4.0 e das oportunidades que dela derivam. Para isso, aposta em uma política de pragmatismo total.
Subestimar a China é o maior erro estratégico que um país pode cometer nessa era.
*Fernanda Magnotta é doutora e mestre pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP/ UNICAMP / PUC-SP). É especialista em Globalização e Cultura (FESP-SP) e bacharel em Relações Internacionais (FAAP). Professora e coordenadora do curso de Relações Internacionais na FAAP, é senior fellow no Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI) e autora do livro As ideias importam: o excepcionalismo norte-americano no alvorecer da superpotência (2016).
Artigo publicado em Notícias UOL, em 4 de março de 2021.
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