As teorias e as dificuldades na interpretação da política internacional
Eiiti Sato*
As teorias são construções conceituais que procuram explicar e dar inteligibilidade aos fenômenos observados na natureza e nos fatos que nos rodeiam. Por exemplo, o geólogo observa uma formação rochosa e recorre a teorias para explicar por que, quando e como formações rochosas como aquela surgiram. O antropólogo, por sua vez, pode descobrir algumas pinturas rupestres nas paredes de uma caverna e usa das teorias disponíveis em sua área de estudos para interpretar esses registros da presença humana naquele lugar. Enfim, de uma forma geral, cada campo de estudo desenvolveu suas próprias teorias que ajudam a estudar e a interpretar os fenômenos típicos de sua área do conhecimento. Este ensaio tem o propósito de discutir alguns problemas observados na formulação e no emprego de teorias nas ciências sociais, em especial no estudo da política internacional, que é o principal foco de interesse da presente reflexão.
Recentemente foi publicado um livro cujo título é bastante revelador: “O Culto da Irrelevância. O Declínio da Influência das Ciências Sociais na Segurança Nacional”.[1] Na obra, o autor que é professor de Relações Internacionais na Universidade de Notre Dame (EUA), procura explicar porque a Ciência Política virtualmente deixou de influenciar as políticas de segurança do governo americano.[2] Conforme dados reunidos pelo autor, no século XX, a influência da academia na política de segurança era bastante grande até o período da Guerra Fria. Acadêmicos conhecidos por seus estudos e reflexões sobre questões de política internacional atuavam no Departamento de Estado e no Departamento de Defesa ocupando postos de comando ou assessorando seus titulares na condução da política dos EUA no trato das questões atinentes a essas pastas. George Kennan, W. W. Rostow, Thomas Schelling, Henry Kissinger, Adlai Stevenson, Hans Morgenthau, John K. Galbraith são alguns dos nomes mais conhecidos daquela época que tinham uma profícua vida acadêmica e, ao mesmo tempo, desempenhavam alguma função ou assessoravam diretamente os governos naqueles anos. Nesse mesmo sentido, antes da Guerra Fria, também poderiam ser lembrados nomes de acadêmicos notáveis como os de J. M. Keynes, E. H. Carr, Arnold Toynbee e Alan Turing, que tiveram grande atuação no esforço de guerra da Grã-Bretanha na Segunda Guerra Mundial.
Pode-se dizer que, até mesmo em termos institucionais, o estabelecimento de amplos programas reunindo “eggheads” em torno de grandes projetos estratégicos como o de Bletchley Park, no Reino Unido, e o do Projeto Manhattan, nos EUA, foram iniciativas notáveis não apenas para as ações estratégicas dos governos americano e britânico na Segunda Guerra Mundial, mas foram importantes para a própria história da ciência em seu sentido mais amplo e abrangente.[3] Nesses projetos os governos americano e britânico recrutaram notáveis cientistas e pesquisadores nas universidades mais destacadas de seus países para atuarem nesses empreendimentos caracterizando o que na história da ciência seria chamado de Big Science. Em uma palestra na Conferência Anual da International Studies Association (ISA) em meados da década de 1990, Robert Keohane ainda usava o termo “porta-giratória” (revolving door) para designar essa contínua movimentação entre a academia e o governo na área da política internacional.
O autor de “O Culto da Irrelevância” argumenta em seu livro que a principal razão para o declínio dessa contínua cooperação entre academia e governo na área de estudos da política internacional seria o fato de que – como outras Ciências Sociais – esse campo de estudos foi seduzido pela ânsia de levar métodos de estudo utilizados pelas áreas das ciências naturais para o estudo da política. Ao tentar fazer isso, os artigos e os trabalhos de pesquisa passaram a se concentrar em fatos e em fenômenos cada vez mais restritos e específicos e, portanto, cada vez mais irrelevantes para o mundo daqueles que precisam tomar decisões na cena política. Ao orientar seus métodos de estudos nessa direção, a presunção da academia passava a ser a de que os estudos realizados segundo esses métodos tornavam-se mais precisos e, portanto, mais “científicos”. O resultado é que as pesquisas tornaram-se mais restritas e mais específicas, cabendo aos decision-makers no governo juntar os pequenos tijolos resultantes de cada estudo ou pesquisa e, com eles, formar o edifício, isto é, o cenário geral e amplo dentro do qual precisam fazer suas escolhas e tomar suas decisões políticas.
Na realidade, outra obra escrita há mais de vinte anos por D. P. Green & Ian Shapiro já criticava as limitações do emprego na Ciência Política das variantes da teoria da escolha racional, sobretudo por meio da utilização da teoria dos jogos.[4] Nessa obra os autores concentraram-se mais na análise das aplicações em temas da política como processos eleitorais e dilemas nas escolhas dos governantes e legisladores, e as críticas se referiam basicamente ao desperdício de tempo e de esforços para se construir modelos de testes empíricos para essas teorias. Uma hipótese como aquela levantada por Mancur Olson sobre a ocorrência do fenômeno do free rider numa ação política não se torna mais interessante porque algum doutorando conseguiu provar por meio de um teste empírico que em 61,09% ou algum outro percentual “preciso” das ações políticas é possível identificar a ocorrência do fenômeno dos free riders. Para quem toma decisões, para quem governa e deve fazer escolhas, argumentam os autores, a hipótese levantada por Olson é perfeitamente plausível e, por essa razão, interessante por si mesma. Para quem toma decisões políticas, é irrelevante saber que alguém desenvolveu um modelo de análise matemática que proporciona uma avaliação “precisa” das possibilidades de sua aplicação. Um estrategista militar sabe que em uma batalha a inclinação do terreno pode ser uma vantagem ou uma dificuldade adicional, e não precisa de qualquer cálculo que determine com precisão a correlação entre o grau de inclinação do terreno e suas dificuldades ou vantagens, sobretudo porque, além da inclinação do terreno, tem consciência de que há muitos outros fatores que podem interferir de forma significativa no desenrolar de uma batalha.
Michael Desch argumenta que essa tendência para desenvolver trabalhos de pesquisa de pouca relevância também se deveu à formação do esprit de corps que, inevitavelmente, acompanhou a constituição das Relações Internacionais como área distinta de estudos no âmbito da academia. Antes de se constituir como campo de estudos estruturado na academia, o estudo e as reflexões sobre questões internacionais eram desenvolvidos por diplomatas, por historiadores, por militares, por geógrafos e por outras mentes que se sentiam atraídas pelos problemas e pelas questões mais preocupantes – e mais interessantes – que emergiam do jogo da política internacional. Guerras e conflitos, construção de alianças, ascensão e declínio de hegemonias, distribuição de forças estratégicas, ou dilemas na escolha entre prioridades e objetivos estratégicos ou sociais, eram os temas dessas reflexões, que emergiam de uma academia mais atenta às questões correntes no mundo da política. Todavia, no momento em que um campo de estudo vai se estabelecendo na academia como área distinta do conhecimento, é inevitável a formação de “ritos de iniciação”, que são característicos da prática acadêmica em torno da área recém-criada: é preciso desenvolver conceitos e teorias próprias, e é preciso produzir doutorados e mestrados com suas teses especializadas para dar forma e especificidade ao campo de estudo. Depois de instalada a disciplina como nova área “científica”, qualquer um que queira oferecer suas reflexões sobre guerra e paz ou discutir a posição de seu país diante das forças em ação na cena internacional, deve mostrar que já cumpriu com sucesso os ritos de iniciação e que tem conhecimento da literatura corrente e possui capacidade de usar com sucesso as teorias ensinadas por seus mestres. Em outras palavras, argumenta Desch, o entendimento passa a ser o de que o estudo da política internacional só pode ser efetivamente uma “ciência” no momento em que possa apresentar seus próprios autores, havendo uma tendência inevitável para tornar os temas mais específicos, inclusive para abrir espaço para as centenas de candidatos a obter seu grau formal na disciplina. Nesse processo, também emerge como inevitável a introdução do entendimento de que as pesquisas deveriam conter um crescente rigor nos métodos de avaliação empírica. A partir de então, entender rigor científico como matematicamente precisos e indiscutíveis é apenas um pequeno passo, e o mais importante é que os estudos sejam realizados por pesquisadores reconhecidos por seus pares no sistema universitário.
Michael Desch mostra que a American Political Science Review (APSR) passou a adotar o sistema de “peer review” na década de 1960 e que, desde então, o emprego de análise matemática e estatística passou rapidamente a predominar entre os artigos publicados pela revista.[5] Na realidade, o próprio autor não argumenta contra o emprego de análise estatística e matemática, mas lamenta que os artigos que não se utilizam desse método praticamente tenham sido banidos da revista por não revelarem suficiente “rigor científico”. Desch mostra em um gráfico que a partir da década de 1970 os artigos “policy oriented” praticamente se reduziram a zero, indicando que o comitê “científico” passou a rejeitar sistematicamente as propostas de artigos que não se fundamentassem em algum método quantitativo, isto é, de base matemática.[6]
Um caso notável no estudo da política internacional desde que se tornou um campo de estudo distinto é o da revista Foreign Affairs, criada em 1922 pelo Council on Foreign Relations, na esteira dos dramáticos efeitos sociais e econômicos da Primeira Guerra Mundial. A revista tornou-se a principal publicação periódica na área do estudo das Relações Internacionais por trazer em suas páginas reflexões de pensadores notáveis como Arnold Toynbee, Karl Kautsky, Benedetto Croce, H. G. Wells, Isaiah Berlin, Aleksandr Solzhenitsyn e Julien Benda que, a partir de suas ricas experiências de vida e de uma densa erudição, ofereceram reflexões sobre a guerra e a paz, sobre os problemas dos nacionalismos, sobre as relações entre a política internacional e a liberdade, sobre os imperialismos e os dilemas das grandes potências, entre outros temas de grande interesse para os governos e para o público em geral. Na realidade, ao trazer reflexões desses notáveis pensadores, a revista ajudou a colocar o próprio campo de estudo das Relações Internacionais na cena do pensamento universal. Além disso, outra faceta da Foreign Affairs, foi o fato de que a publicação também se notabilizou por divulgar documentos e artigos de reconhecida importância por publicar autores que ocupavam posições tanto no governo americano quanto em governos de outros países relevantes para a política internacional. Nessa modalidade, alguns autores valem ser mencionados Elihu Root, Henry L. Stimson, Henry Kissinger, Walter B. Wriston e Zbigniev Brzezinski. Para os editores da revista essas pessoas mereciam a atenção dos leitores porque nas posições que ocupavam ou que haviam ocupado podiam observar a política internacional sob o ângulo dos que, em seu dia-a-dia como decision makers, revelavam a forma como viam, como interpretavam e como deveriam atuar em relação à evolução dos fatos na política internacional. Talvez o caso mais notável desse tipo de artigo publicado na revista Foreign Affairs, tenha sido o de George F. Kennan, que é considerado um marco no desencadeamento da Guerra Fria. Na condição de diplomata servindo na Embaixada dos EUA em Moscou não poderia tornar pública suas visões sobre a política externa da URSS, assim, seu artigo intitulado The Sources of Soviet Conduct saiu publicado na edição de Julho/1947, tendo “X” como autor. No caso do Brasil, o artigo de autoria de Janio Quadros não fora publicado no Fareign Affairs porque seus editores reconheciam a “qualidade acadêmica” do texto, mas porque informava o que o recém-eleito Presidente do Brasil pretendia fazer em termos de política externa, e o artigo tornou-se uma peça “clássica” na historiografia da política externa brasileira.[7] Obviamente que a credibilidade da publicação não se devia ao sistema de peer review e muito menos em razão da qualidade no emprego de teorias e de métodos correntes na prática acadêmica, mas pelos temas abordados, de reconhecida importância para seus leitores (decision makers) e pelos autores cuja credibilidade derivava tanto de sua cultura e erudição quanto da trajetória e da posição que ocupavam ou que haviam ocupado como figuras públicas relevantes.
Em suma, pode-se dizer que o problema com metodologias de base quantitativa é que restringem as análises a temas bastante limitados e específicos, ao mesmo tempo em que empobrecem o universo de autores. Ou seja, do ponto de vista substantivo, restringem os estudos apenas a temas que permitem o emprego de metodologias que usem dados estatísticos e construções matemáticas. Guerras, conflitos e mesmo temas como a emergência das preocupações com o meio ambiente ou com a proteção internacional dos direitos humanos, por outro lado, são temas para os quais estatísticas e outros dados quantitativos são particularmente limitados e raramente existentes a ponto de formar séries estatísticas com alguma relevância.[8] Além disso, mesmo em assuntos como distribuição geográfica de recursos estratégicos, composição etária ou regional de populações, ou mesmo análises de custo/benefício de investimentos em segurança ou de gastos com iniciativas voltadas para a promoção de temas ambientais ou de proteção de direitos humanos, demandam o entendimento de muitos outros elementos e fatores não quantificáveis que marcam a vida das sociedades e das nações. Sentimentos nacionalistas, mudanças tecnológicas, diferenças culturais ou até a morte de governantes são exemplos de fatos imponderáveis que podem ocorrer e influenciar de maneira significativa o desenvolvimento de cenários políticos tanto no âmbito doméstico quanto na esfera internacional.
Todos esses pontos são importantes, mas, provavelmente, o aspecto mais importante é que esses métodos vindos das ciências naturais são construídos sobre fatos passados e estáticos, enquanto a realidade social é um sistema complexo em contínua mutação, já que o estado de insatisfação permanente é uma das características marcantes do ser humano A Ciência da Economia, na ânsia de tornar a Economia uma ciência “mais científica”, resolveu essa dificuldade na sua área adotando o recurso do cœteris paribus: “suponha que as condições permaneçam constantes”; “suponha uma economia de concorrência perfeita”; “suponha um mercado sem a interferência do governo”; etc. Assim, para os propósitos da presente análise, afigura-se interessante trazer algumas considerações sobre a evolução do campo de estudos da Economia, que foi mais longe no emprego desses recursos metodológicos.
A Ciência da Economia, um caso ilustrativo
A ciência da economia nasceu como Economia Política e não fazia distinção entre economia doméstica e economia internacional, inclusive porque o Estado Nação ainda era uma categoria em processo de sedimentação. Os pioneiros do pensamento econômico tinham em comum uma base ampla e sólida de formação intelectual, além do fato óbvio de que era um tempo em que não existia a especialização. Esses fatos servem também para ilustrar a amplitude de interesses e a familiaridade que autores como Adam Smith, David Hume ou Stuart Mill tinham com a cultura e com os acontecimentos que se desenrolavam em áreas correlatas à produção econômica, que incluíam a esfera da prática religiosa, as edições de obras do pensamento filosófico e político e a formação de círculos literários e culturais. Vale notar que François Quesnay era médico e Adam Smith professor de moral, enquanto Thomas Malthus tornara-se pastor anglicano ao mesmo tempo em que passava a integrar várias sociedades culturais e científicas de seu tempo tais como a Political Economy Club, fundada em 1821 por James Mill, e que já incluía nomes como o de David Ricardo. Malthus fazia parte também da Royal Society of Literature e da Académie Royale des Sciences Morales e Politiques da França. Um dado curioso é que, entre os 30 membros da Political Economy Club, Malthus era um dos raros associados que ocupavam formalmente uma cadeira na academia. A maioria dos membros era composta de profissionais que se dedicavam a escrever como pensadores diletantes ou integrantes de várias outras áreas do conhecimento. A Economia era mais parecida com a Filosofia Política sobre a qual todos que tivessem algum nível de erudição tinham suas opiniões e costumavam produzir alguma reflexão a respeito. Na realidade, tal como a própria atividade econômica, que se ligava com a política, a moral e a religião, as reflexões sobre os fatos econômicos eram também parte do entendimento do quadro mais amplo dentro do qual se movem os fenômenos da vida humana.
Assim, é fácil de entender porque as obras que marcaram o nascimento da Economia foram obras notavelmente de Economia Política. Seus autores entendiam que pensar sobre a economia significava pensar as atividades econômicas como um conjunto de fenômenos intimamente associados a elementos como o poder, a religião e os códigos morais, que formam até hoje as sociedades humanas organizadas. Além disso, os pensadores econômicos preocupavam-se com o fato de que seus escritos deveriam ter consequências, isto é, que fossem lidos e que tivessem alguma utilidade para os governantes e também para os cidadãos que viviam de seus negócios e da produção de suas propriedades.
Uma obra de referência, que retrata a trajetória desse entendimento da economia, é o Palgrave Dictionary of Political Economy. O dicionário foi publicado originalmente em 1894 por R. H. Inglis. Uma edição revisada foi elaborada em 1926 por Henry Higgs que manteve o mesmo título. A denominação original permaneceu até 1987, quando a obra foi totalmente revisada por J. Eatwell, M. Milgate & P. Newman, recebendo a nova denominação: The New Palgrave Dictionary of Economics. Ou seja, pode-se dizer que, embora o termo Economics já estivesse sendo utilizada há muito tempo, foi em 1987 que substituiu “oficialmente” na literatura corrente a expressão Political Economy que havia designado a Ciência da Economia desde o século XVIII.
O fato é que, em tempos recentes, do pós-guerra até a década de 1970, os cursos de Economia ainda tinham como eixo o “desenvolvimento econômico”, ou seja, os cursos estavam concentrados na tarefa de ensinar e de discutir por que algumas nações eram ricas e prósperas enquanto outras eram pobres e pouco produtivas, e também como as nações pobres podiam tornar-se ricas e prósperas. Em suma, nos estudos de economia ainda predominava o conceito de Economia Política. Na época, faziam parte dos cursos de Economia várias disciplinas voltadas para a temática do desenvolvimento e, no núcleo dessas disciplinas, estavam as “teorias do desenvolvimento econômico”. Obviamente já se ensinavam disciplinas como a econometria e as matérias de microeconomia, mas no cerne dos cursos de Economia estava a ideia de que o desenvolvimento econômico, significando modernização e adoção de práticas econômicas melhor estruturadas e mais eficientes, era uma meta a ser buscada pelas nações e pelas organizações econômicas e que, portanto, as sociedades, por meio da ação de seus governos, deveriam desenvolver estratégias e tomar medidas para promover e dinamizar os mercados e a capacidade da nação de gerar riquezas. Nesse quadro, é fácil entender também por que houve toda uma geração de economistas oriundos das universidades, que passaram a atuar nos governos e nas agências internacionais ocupando postos importantes de comando ou de assessoramento. No Brasil, essa geração recebeu a denominação genérica de “tecnoburocratas” e entre os nomes mais notáveis estavam os de Roberto Campos, Delfim Netto, Mário Henrique Simonsen e João Paulo dos Reis Veloso, que atuaram com destaque nos governos brasileiros do período chamado de “desenvolvimentista”.
Atualmente, nos currículos dos cursos de Economia a temática do desenvolvimento econômico praticamente desapareceu. Até a década de 1970 havia sido um tema típico de Economia Política, mas que passava a ser gradualmente reduzido a umas poucas disciplinas marginais ao núcleo do ensino que passava a se concentrar basicamente na dissecação “científica” do funcionamento dos mercados e de certas variáveis econômicas como inflação, produtividade e taxas de poupança e investimento. Obviamente, o conceito e as teorias do desenvolvimento econômico referiam-se, ao quadro econômico e político do pós-guerra até meados dos anos 1970 e em seu lugar, emergiu um outro quadro econômico mundial, no qual o termo globalização tornou-se uma de suas faceta mais visíveis. Nesse quadro, novas questões de economia política emergiram no cenário econômico mundial demandando novos conceitos e novas teorizações que seriam típicas da Economia Política dos novos tempos e, em consequência, úteis para governantes e outros estrategistas dos negócios públicos e privados.
Apesar de tudo, o que emergiu nos cursos de Economia, substituindo o estudo das questões do tema do desenvolvimento econômico, foram as disciplinas de matemática e de métodos quantitativos, que se tornaram o eixo em torno do qual os cursos de Economia passaram a se organizar. Assim, os cursos de economia animados com a perspectiva de tornar seu campo de estudo mais “científico”, deixaram de se preocupar em oferecer abordagens analíticas que ajudassem a explicar e a entender a nova ordem econômica global que emergia. É evidente que tais estudos especializados têm sua utilidade inclusive para os gestores governamentais que devem monitorar e administrar o comportamento de mercados importantes para os negócios ou para a tomada de decisões de curto prazo tais como, por exemplo, aumentar ou reduzir as taxas de juros de referência administrados pelo Banco Central. No entanto, revelam-se de pouca ajuda para a formulação de estratégias sobre as quais os governantes precisam tomar suas decisões mais importantes. Governos, empresas, e mesmo a sociedade de uma forma geral, preocupam-se com questões mais amplas tais como promover o crescimento econômico dentro da nova ordem econômica mundial, construir uma estratégia de sucesso na transição para uma “economia de baixo carbono”, ou ainda, como formular políticas para reduzir as disparidades regionais indesejáveis da atividade econômica no plano doméstico e também na esfera internacional. Estas são algumas questões que emergiram dentro do novo quadro da economia mundial, para as quais o saber especializado tem poucas possibilidades de oferecer boas respostas.
Na realidade, ao procurar tornar os estudos econômicos mais parecidos com os das ciências naturais, a Ciência da Economia passou também a estabelecer seu foco no que é estático nos fenômenos econômicos, muito embora no mundo real, as atividades econômicas se caracterizem pelo dinamismo, já que não constitui exagero dizer que no mundo da economia há uma verdadeira “conspiração universal” pela mudança. Com efeito, indivíduos, organizações empresariais, governos locais, governos nacionais e instituições internacionais estão em permanente alerta para tornar as atividades econômicas mais vantajosas, mais produtivas e tecnologicamente mais eficientes e lucrativas. Ou seja, o que tem movido as economias são objetivos e temas associados a mudanças, tanto em relação a mudanças ocasionadas por fontes exógenas (guerras e outras crises) quanto em torno da velha questão de saber como realizar as mudanças necessárias para tonar mais eficiente a busca da riqueza. Com certeza, ninguém será capaz de apontar algum governo que, ao tomar posse, tenha colocado como uma das metas de seu governo manter inalterados os níveis da atividade econômica. Dessa forma, o abandono dos estudos que procurem entender as mudanças e os aspectos mais estratégicos, deixou uma grande lacuna, em especial para as instâncias governamentais, que devem estabelecer metas e reformas com o objetivo elevar os níveis de desempenho da economia do país. Particularmente nos países em desenvolvimento, nos quais os mercados não se desenvolveram, ou se desenvolveram apenas parcialmente, os benefícios de bons cursos de Economia se reduziram de forma mais significativa.
O estudo dos fenômenos econômicos internacionais por meio da abordagem da Economia Política foi recuperado por outras áreas do conhecimento, em especial, e de forma mais estruturada, pelo campo de estudo das Relações Internacionais sob a denominação de Economia Política Internacional (EPI).[9] Estudiosos como Robert Gilpin, Stephen Krasner, e Barry Eichengreen ajudaram a organizar a área de EPI enquanto autores como Charles P. Kindleberger, Jagdish Bhagwati, Mancur Olson, Amartya Sen, Joseph Stiglitz e muitos outros autores produziram análises de reconhecido valor sobre vários aspectos da globalização e sobre as questões ambientais e comerciais na ordem econômica internacional usando recursos analíticos da EPI. Apesar de tudo, a tentação de tornar esses estudos mais “científicos”, isto é, mais precisos e mais matemáticos, já tem rondado também essa área.
Uma forma bastante promissora em termos operacionais de entender a economia política na atualidade foi oferecida por Susan Strange, que também teve papel importante na formação da área de EPI no âmbito do campo de estudo das Relações Internacionais. Susan Strange argumenta que a Economia Política seria um recurso analítico que procura combinar a lógica da política com a lógica da economia.[10] Todo fenômeno econômico é movido tanto por forças de mercado quanto por forças que se movem na esfera da política tais como a busca pelo poder, da segurança e de perspectivas sociais de longo prazo, argumenta Susan Strange. A Economia preocupa-se essencialmente com o uso de recursos escassos para o atendimento de demandas que são ilimitadas. Seu ambiente natural é o mercado. A Política, por sua vez, preocupa-se com o provimento de bens públicos como ordem social, segurança, redução da pobreza, proteção de patrimônios culturais, proteção da qualidade do meio ambiente, proteção da saúde coletiva, entre outros, e seu ambiente natural é a política. No mundo real, argumenta Susan Strange, não existe fenômeno econômico que seja comandado, e seus efeitos definidos, exclusivamente pela lógica do mercado, da mesma forma que não existe fenômeno da política que não tenha uma dimensão econômica. Assim, todo fenômeno econômico é comandado por alguma combinação dessas duas lógicas. Ou seja, em alguma medida, todos os fatos econômicos trazem consigo motivações e consequências políticas, da mesma maneira que todos os fatos políticos também envolvem motivações, condicionantes e desdobramentos econômicos desejados ou indesejados. Ainda que não seja possível quantificar as motivações, as condicionantes e as consequências esperadas tanto para a atividade econômica quanto para a ordem política não significa que elas não existem. O fato é que, mesmo tendo à disposição muitas cifras e até mesmo boas séries estatísticas, tal como ocorre na Filosofia Política, é essencial um bom nível de conhecimento de áreas correlatas, em especial a História e os desenvolvimentos em curso na ordem política. Além de tudo, não se deve esquecer que os instrumentos mais decisivos das decisões econômicas mais importantes continuam sendo o discernimento, a sensibilidade e, não raro, a imaginação.
Resumindo, o que a Economia fez, ao tentar transformá-la numa ciência “mais científica”, foi retirar dela os grandes temas da economia os quais, de fato, são de interesse para os governos, para as nações e até mesmo para os indivíduos. Numa analogia, é como se toda a Ciência Policial fosse reduzida às atividades e às evidências levantadas pela Polícia Científica. Não há dúvida de que as contribuições da perícia científica são valiosíssimas. Ela coloca a serviço da atividade policial a capacidade de examinar evidências bastante sofisticadas tais como a identificação do DNA de personagens envolvidas em um crime e também os instrumentais e os métodos de coleta de dados e de evidências que podem ser decisivos numa investigação criminal. Apesar de tudo, ainda continuam essenciais os conhecimentos e, principalmente, a experiência e a sensibilidade dos Sherlock Holmes, dos Hercule Poirots e dos Irmãos Pinkerton na elucidação de assassinatos, no desbaratamento de quadrilhas de malfeitores e na investigação de quaisquer transgressões da lei onde os criminosos se escondem espertamente atrás de álibis e de argumentos aparentemente inquestionáveis.
Revisitando os paradigmas nas ciências
Ao tratar de um assunto como o do presente ensaio, é impossível não refletir, ainda que superficialmente, sobre a velha dicotomia entre ciências naturais e as ciências que estudam o ser humano em seu comportamento em sociedade. Em meados da década de 1990, George Modelski escreveu um artigo que resultava de um seminário organizado para debater o conceito de paradigma no âmbito das Ciências Sociais.[11] Nesse artigo, Modelski argumentava que as Ciências Sociais, diferentemente das Ciências Físicas, têm a característica de terem que conviver com paradigmas cujo horizonte de tempo é de apenas algumas décadas, por vezes até mais breves. Com efeito, nas Ciências Sociais, quando se pensa que se conhece um pouco melhor algum fenômeno, geralmente a sensação é a de que esse conhecimento já está ultrapassado diante de uma realidade em constante transformação. Nas Ciências Físicas é muito diferente. Por exemplo, na geologia, o granito ou a água do mar têm suas propriedades e suas características dentro de um horizonte de tempo de muitas centenas de milhões de anos. Formações geológicas, como os Alpes ou o Grand Canyon podem ter dezenas e até centenas de milhões de anos. De forma semelhante, na biologia também os paradigmas são contados em milhões de anos. Espécies de animais e de insetos podem surgir ou desaparecer, mas são ocorrências que duram milhões de anos, como os dinossauros que as teorias científicas correntes atribuem seu desaparecimento a um evento cataclísmico ocorrido há 65 milhões de anos.
O que pode mudar nesses paradigmas são os estudos feitos a respeito desses fenômenos do mundo físico. Obviamente que fenômenos geológicos continuam ocorrendo tais como erupções vulcânicas e acomodações de placas tectônicas provocando terremotos e tsunamis, mas o que mais se percebe desses fenômenos são os eventuais efeitos desastrosos para as populações atingidas e não para a configuração do perfil geológico da Terra. Novas observações e descobertas ocorrem basicamente devido a avanços nos instrumentais tecnológicos de observação disponíveis, ou seja, são os entendimentos que podem mudar sobre o mundo físico que, na essência, permanece “como sempre foi”. Por exemplo, a astronomia ensinada por Ptolomeu resultava das observações empíricas e matemáticas vindas da Antiguidade tendo sido depois retomada no mundo medieval cristão europeu. Era um conhecimento limitado pelo sentido da visão humana e da inteligência matemática que ia pouco além da aritmética, da geometria e da álgebra bastante elementares. Essa visão passou a ser contestada somente na Renascença e, nesse processo de mudança de paradigma, teve grande impacto a construção do telescópio feita por Galileu, que permitiu observar a Lua e ver que era um corpo celeste feito de rochas, planícies, montes e de vales bastante semelhantes às da Terra, muito embora sem sinais de vida. Dessa forma, no mundo moderno, os paradigmas científicos do mundo físico têm evoluído substancialmente pelo conhecimento que passou a dispor de instrumentais tecnológicos cada vez mais poderosos, que passaram a permitir “ver” a distâncias impensáveis, a realizar experimentos com partículas invisíveis à visão humana e a permitir o surgimento de novos campos como o da nanotecnologia que nos proporciona o entendimento e o controle da matéria em nano-escala, isto é, em escala atômica e molecular.
No caso dos paradigmas sociais e culturais, os horizontes de tempo dos fenômenos são substancialmente mais curtos. Por exemplo, o Estado Nacional como forma de arranjo institucional de governança das sociedades começou a tomar forma há pouco mais de 500 anos e o meio internacional, tendo o Estado Nacional como categoria política central, tem somente pouco mais de um século. Outro exemplo bastante ilustrativo é o fato de que foi apenas depois da Segunda Guerra Mundial que o meio internacional tornou-se uma verdadeira “sociedade internacional” com uma extensa e variada rede de instituições formalmente constituídas, que passaram a articular a convivência política, social e econômica de quase duas centenas de nações estruturadas na forma de Estados Nação.[12] De fato, antes da Segunda Guerra Mundial não existiam organizações como a ONU, o FMI, o Banco Mundial, o GATT e nem as dezenas de outras organizações internacionais e regionais que formam hoje o meio internacional. Vale notar que, até o início do século XX, uma Europa integrada institucionalmente não passava de uma quimera de pensadores sociais e que a própria CEE, criada em 1957, teve uma duração de menos de quatro décadas, sendo transformada na União Europeia que, por sua vez, já é posta em questão como revela a ocorrência de uma iniciativa como a do Brexit.[13] Da mesma forma, o GATT nasceu em 1947 para organizar o comércio internacional e, ao final da Rodada Uruguai em 1994, foi transformado em Organização Mundial do Comércio (OMC) na esperança de que essa transformação pudesse acomodar melhor as forças em ação no comércio internacional.
Na natureza, pode-se descobrir novas propriedades e aplicações para a sílica, mas a sílica com suas características e propriedades já estava na natureza há muitos milhões de anos. Nas questões humanas, no entanto, a convivência social é um processo em contínua construção e transformação. Até mesmo algo tão ancestral como a família, muito embora não tenha deixado de existir, qualquer análise sociológica mostra que os vínculos familiares de hoje são muito diferentes do que eram há algumas décadas atrás. Além disso – mostram os antropólogos – desde tempos imemoriais, as características e até a própria natureza dos vínculos familiares sempre variaram de povo para povo.
Essa diferença no horizonte de tempo dos paradigmas sociais e culturais em relação aos paradigmas físicos das ciências naturais, entre outras coisas, mostra quão pouco promissoras são as tentativas de se levar para as Ciências Sociais os métodos científicos praticados nas Ciências Físicas. O que as ciências do mundo físico da natureza fazem é descobrir elementos e propriedades presentes nessas manifestações da natureza e, eventualmente, por meio da ação humana, isolá-las, modificá-las e colocá-las a seu serviço. No caso dos fenômenos sociais e culturais, são processos sempre em mudança, na verdade em construção, uma vez que neles os seres humanos são, ao mesmo tempo, os agentes e os objetos desses fenômenos. Como verdadeiros filhos de Prometeu – ou de Adão e Eva na tradição judaico-cristã – os homens são seres permanentemente inquietos e curiosos e sempre dispostos a “provar do fruto proibido”. É parte da sua natureza o impulso para mudar seu meio e mudar seu modo de viver. É o que os “paradigmas evolutivos” de George Modelski procuram explicar.
Nessa perspectiva, a grande diferença entre as Ciências Físicas e as Ciências Sociais é que estas são ciências morais. Na introdução da obra Princípios de Economia Política e Considerações Sobre sua Aplicação Prática (1820), Thomas Malthus afirma “a ciência da Economia Política assemelha-se mais às ciências éticas do que à ciência da Matemática”. Trata-se de uma afirmação que pode ser estendida às Ciências Sociais de uma forma geral. Esse fato de que as Ciências Sociais são ciências morais, que busca objetivos em torno dos quais cria mecanismos, estabelece tratados e constrói instituições, é possível ser observado, por exemplo, no campo do comércio internacional. Com efeito, desde o surgimento da Economia como campo de estudo moderno no século XVIII, as teorias do comércio procuravam proporcionar explicações, isto é, relações de causa e efeito para os fluxos de comércio entre as nações. Assim sendo, as teorias do comércio se desenvolveram procurando identificar causas e fatores que podiam explicar porque alguns países ou regiões tendiam a exportar certos bens e serviços enquanto, por outro lado, tendiam a importar outros tipos de bens e de serviços.
O fato é que, principalmente após a experiência da Grande Depressão e das políticas de reconstrução e desenvolvimento na esteira da Segunda Guerra Mundial, a elaboração de “teorias para o comércio” foi perdendo interesse e sentido. Com efeito, diante dos acordos comerciais em grande número, diante da formação de arranjos regionais e do estímulo a medidas e a políticas governamentais que passaram a estabelecer controles e condições para o comércio, fazia pouco sentido procurar razões que explicassem os fluxos de comércio no comportamento dos mercados. Além da multiplicação de acordos e de tratados, uma commodity tão importante no comércio mundial como o petróleo passou a ter seu próprio mercado regulado e orientado pela vontade de uns poucos atores. Enfim, a última tentativa de largo alcance no sentido de produzir uma teoria pura para o comércio foi feita por Bertil Ohlin e Eli Heckscher a partir do livro Interregional and International Trade, publicado em 1933.[14] Na prática, as “teorias do comércio” foram substituídas pelo conceito de “regime internacional de comércio”, desenvolvido pela área de estudo das Relações Internacionais.[15] Muito embora cheio de ambiguidades e de imprecisões, o conceito de “regimes internacionais” tem sido o instrumento analítico de maior utilidade para explicar como tem funcionado o comércio internacional e as relações econômicas internacionais de uma forma geral desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Em outras palavras, numa analogia com o mundo da Física, pode-se dizer que a teoria explica que a força da gravidade faz com que as águas desçam das terras mais altas para as terras mais baixas, mas a engenhosidade e a vontade dos homens, por meio de diques de contenção, de canais e de desvios, e até de sistemas de bombeamento, mesmo um rio situado numa região mais baixa pode estar alimentando um reservatório situado numa região mais elevada. Assim, se alguém quiser entender e seguir o percurso das águas, a lei da gravidade será de pouca ajuda, o que poderá ser, de fato, esclarecedor será observar os diques, os canais, os reservatórios e outras obras do engenho humano naquela região. Ou seja, instituições, arranjos e práticas que formam os regimes internacionais ou políticas como a de substituição de importações, são formulados para “distorcer” deliberadamente as forças naturais que movem o comércio, do mesmo modo que diques, represas e canais são construídos para conter e orientar os fluxos de água e o regime das chuvas, para que não sejam destrutivas aos moradores de vales e de encostas, e que possam irrigar e trazer fertilidade para áreas que se situam longe dos cursos naturais das águas.
É possível estabelecer matematicamente a trajetória de um corpo celeste, calculando-se sua massa e sua velocidade inercial e angular, mas não é possível estabelecer com essa precisão a trajetória de algo que se move com vontade própria como é o caso dos agentes da economia. Nas discussões com R. F. Harrod, Keynes teria feito este irônico comentário: “Como se a queda da maçã (de Newton) no chão dependesse dos motivos da maçã, de saber se valia a pena cair no chão, se o chão queria que a maçã caísse, ou dependesse ainda de cálculos errados da parte da maçã acerca da distância em que se encontrava do centro da terra”.[16] Estados, organizações empresariais, organizações internacionais e até mesmo indivíduos são sistematicamente compelidos a tomar iniciativas para mudar continuamente o quadro econômico vigente.
Considerações finais
Em resumo, nas Ciências Sociais as teorias estão fadadas a serem continuamente substituídas por novas teorias, não por serem objeto de contestação por meio de verificação empírica como no mundo físico, embora esse fato possa ocorrer. Novas teorias são demandadas simplesmente porque a realidade social muda continuamente. Como já mencionado, pode-se dizer que há uma verdadeira “conspiração universal” para mudar a realidade e, em tal ambiente, a elaboração de teorias está fadada a ser sempre uma prática ultrapassada pelos fatos. Desse modo, neste mundo do século XXI, dominado pelos valores ocidentais que atribuem destacada precedência à tecnologia e à inovação em detrimento das tradições e da permanência, é natural que as teorias tenham dificuldade de servir de orientação para decisões futuras. Além disso – ou associado a esses fatos – revela-se cada vez mais importante prestar atenção nas mudanças no quadro de valores e hábitos correntes. O cigarro, por exemplo, de elemento de charme e de distinção até os anos 1960, tornou-se um vilão por motivos médicos e não em razão de eventual comportamento disfuncional dos mercados. Grandes transformações estão em curso na indústria em função de um entendimento cada vez mais disseminado de que os padrões industriais devem ser totalmente reconfigurados não apenas na substituição do petróleo e seus derivados, mas também em termos de redução de desperdícios e da produção de resíduos nocivos ao meio ambiente. Mudanças como essas não se originam do esgotamento das forças em ação nos mercados, mas de mudanças no quadro de valores das sociedades que são capazes de descartar oportunidades e até de subsidiar o desenvolvimento e a adoção de tecnologias “limpas”, além de restringir normativamente a disseminação de tecnologias consideradas danosas à saúde ou ao meio ambiente. Em suma, qualquer visão interpretativa do cenário econômico precisa levar em conta o que ocorre na esfera da política e dos fenômenos sociais mais abrangentes.
A título de reflexão final, parece oportuno lembrar o comentário de Keynes com o qual abre o livro que reúne seus ensaios abordando temas como os destinos da Índia como colônia da Grã-Bretanha, a política de retorno ao padrão ouro depois da Primeira Guerra Mundial e as decisões econômicas tomadas na Conferência de Versailles: Aqui estão reunidos os lamentos de 12 anos – os lamentos de uma Cassandra que jamais pode influenciar o curso dos acontecimentos em seu tempo. O volume poderia ser intitulado “Ensaios de Profecia e de Persuasão”, uma vez que, infelizmente, as profecias foram mais bem sucedidas do que a persuasão.[17]
Esse comentário reforça a relevância de se entender as Ciências Sociais como ciências morais que estudam fenômenos que se desenvolvem de forma dinâmica, movidos pela disposição do entendimento humano. Os lamentos de Keynes não são decorrentes de uma visão que reduz a importância das teorias, mas da percepção de que, embora úteis, a força das teorias é limitada e condicionada pelo entendimento humano expresso na opinião pública e na visão dos governantes sobre os fatos correntes. Um influente pensador como C. P. Snow afirmava que as Ciências da Natureza são ciências matemáticas, enquanto as Ciências Sociais são ciências literárias, significando que as Ciências Sociais, diferente das ciências da natureza, precisam argumentar, fazer-se entender com clareza e, finalmente, convencer.[18]
Provavelmente, seria útil rever algumas experiências do passado. A maioria dos historiadores entende que, nesse particular, a Idade Média tem sido injustamente identificada como um tempo de trevas e de obscurantismo no que se refere à ciência e ao entendimento. O fato é que foi com a escolástica que surgiram as universidades e entre os ensinamentos mais notáveis da educação escolástica estava o desenvolvimento da capacidade de pensar e de argumentar de forma lógica e, entre os produtos dessa prática, pode ser apontada a dialética – até hoje a expressão intelectual mais sofisticada do pensar democraticamente.[19]
[1] Michael C. Desch. Cult of the Irrelevant. The Waning Influence of Social Science on National Security. Princeton University Press, 2019.
[2] Diferente do que ocorre no Brasil, nas universidades dos EUA o campo de estudo das Relações Internacionais é uma sub área da Ciência Política.
[3] O termo egghead é uma gíria americana que indica pessoas inteligentes cujos interesses se concentram no estudo e no desenvolvimento de atividades intelectuais. O termo mais próximo em português seria intelectual. Bletchley Park foi um centro instalado nas imediações de Londres para dar suporte de inteligência ao esforço de guerra da Grã-Brtanha, para o qual foram convocados cientistas e pesquisadores de grandes universidades como Cambridge e Oxford. O Projeto Manhattan foi estabelecido pelo Presidente Roosevelt com o propósito de desenvolver a bomba atômica em 1942.
[4] Donald P. Green & Ian Shapiro, Pathologies of Rational Choice Theory. A Critique of Applications in Political Science. Yale University Press, 1994.
[5] Peer review é um método de trabalho editorial no qual as propostas de edição de artigos ou de livros científicos são submetidas a uma avaliação de um comitê editorial composto por especialistas da área.
[6] Michael Desch, op. Cit. Pag. 16.
[7] Janio Quadros, Brazil’s New Foreign Policy. Foreign Affairs, Oct. 1961.
[8] Por exemplo, veja-se a obra An Encyclopedia of Battles. Account over 1,560 Battles from 1479 B.C. to the Present, de autoria de David Eggenberger (Dover Publications, N.Y.1985). O autor descreve mais de 1.500 batalhas registradas na história e, pela descrição, cada batalha é única. As eventuais regularidades que pudessem ser reunidas em séries observáveis estatisticamente não apresentam relevância alguma nem para os estudos militares e muito menos para a política.
[9] International Political Economy (IPE) em inglês.
[10] Esse entendimento é formulado em Susan Strange, States and Markets, 1988.
[11] George Modelski, Evolutionaey Paradigm for Global Politics. International Studies Quarterly, vol 40(3), September, 1996. pp. 321-342.
[12] Hedley Bull, A Sociedade Anárquica. Um Estudo da Ordem na Política Mundial. IPRI/FUNAG & Editora UnB, 2002. A obra foi publicada originalmente em 1977 pela MacMillan Press (London) e um dos pontos centrais discutidos na obra é o fato de que o conteúdo anárquico do meio internacional convive de forma crescente com elementos típicos de sociedade.
[13] Iniciativas pioneiras de formação de um sistema europeu datam da época de Henry, Le Grand, e de seu Ministro, o Duque de Sully. No século XVIII Abbé de Saint Pierre escreveu o Projeto de Paz Perpétua para a Europa, que seria criticada por Rousseau como “louvável e desejável mas, infelizmente, uma quimera”.
[14] Bertil Ohlin, em 1933, escreveu “Interregional and International Trade”, mas decidiu creditar a Eli Heckscher (1879-1952) a co-autoria do modelo teórico por reconhecer que muitas das ideias haviam emergido das discussões com Heckscher, que havia orientado sua tese doutoral e de quem herdou a cadeira de Economia Internacional na Universidade de Stockholm.
[15] Regimes internacionais é um conceito que nasceu no campo de estudos das relações internacionais sendo definido como ”um conjunto de princípios, normas, regras e processos decisórios voltados para uma área das relações internacionais”, neste caso o comércio internacional (S. D. Krasner, International Regimes, Cornell University Press, 1983).
[16] Em 1922 Roy F. Harrod passou uma temporada na Universidade de Cambridge, onde desenvolveu forte amizade com J. M. Keynes com quem discutiu muitas de suas ideias. O comentário teria sido feito por ocasião da conferência feita por Harrod à Royal Economic Society em 1938 (D. E. Moggridge, As Idéias de Keynes, Cultrix, S. Paulo, 1981. P. 22).
[17] J. M. Keynes. Essays in Persuasion. W.W. Norton Inc. New York, 1963.
[18] C. P. Snow. As Duas Culturas. Publicações D. Quixote, Lisboa, 1965. Entre os pontos notáveis discutidos pelo livro o autor aponta o contraste entre os grandes sucessos nas ciências da natureza diante das grandes dificuldades de fazer avançar o entendimento entre os homens. Originalmente este livro foi publicado pela Cambridge University Press em 1959 (The Two Cultures and the Scientific Revolution).
[19] Há notáveis medievalistas, sobretudo franceses. No Brasil, como referência, vale a pena considerar a obra bastante erudita de Ruy A. da Costa Nunes, História da Educação na Idade Média (Kirion/Cedet, 2018).
Eiiti Sato é professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília
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