O mito de Cassandra e a credibilidade da ciência
Eiiti Sato
A mitologia conta que Cassandra e seu irmão gêmeo Heleno Apolo, ainda crianças, costumavam brincar no Templo de Apolo. Ambos eram filhos de Príamo, rei de Troia, portanto irmãos de Heitor e de Paris, que seriam importantes protagonistas da Guerra de Troia. Certo dia, os gêmeos brincaram até ficar demasiado tarde para voltarem para casa e, assim, foi-lhes arranjada uma cama no interior do templo. Na manhã seguinte, a ama encontrou as crianças ainda a dormir, enquanto duas serpentes passavam a língua pelas suas orelhas. A ama ficou aterrorizada diante da cena, mas as crianças estavam tranquilas e ilesas. As serpentes haviam deslizado sobre os louros sagrados de Apolo e, dessa forma, tornaram os ouvidos dos gêmeos tão sensíveis que lhes permitiam escutar as vozes dos deuses.
Com o tempo, Cassandra tornou-se uma jovem de grande beleza e devota servidora de Apolo. Diz a lenda que Cassandra foi de tal maneira dedicada e sua beleza tão grande que o próprio deus se apaixonou por ela, ensinando-lhe os segredos da profecia. Cassandra tornou-se, assim, uma profetisa, mas quando se negou a dormir com Apolo, o deus, contrariado, lançou-lhe a maldição de que ninguém jamais viria a acreditar nas suas profecias. Como consequência, Cassandra passou a ser considerada louca ao tentar comunicar à população as suas previsões sobre a guerra e a desgraça que haveriam de se abater sobre o reino de Troia.
Após anos de guerra sem resultados expressivos, os gregos comandados por Agamenon pareciam bater em retirada e Cassandra fez sucessivas tentativas no sentido de alertar o rei Príamo para que destruísse o cavalo de madeira que Ulisses mandara construir deixando-o como presente aos troianos. Diante da falta de credibilidade das profecias de Cassandra, os troianos levaram em triunfo o grande cavalo de madeira para o interior da cidade murada, conforme havia engendrado o astuto Ulisses. A rejeição das profecias de Cassandra também contribuiu para que os troianos não mantivessem a vigilância e não tomassem as providências necessárias para evitar a queda e a consequente destruição de Troia. Com a cidade já tomada pelos gregos, Cassandra refugiou-se no templo de Atena, onde teria sido descoberta e violada por Ájax, filho de Oileu. Na partilha do butim de guerra, Cassandra foi dada a Agamenon, que a levou em seu navio, na viagem de volta a Micenas, onde ele seria assassinado por Egisto, amante da rainha Clitemnestra, esposa de Agamenon.
Mais tarde, diz a lenda, Cassandra fugiu de Micenas indo para a Cólquida, de onde saiu com Zakintio para fundar uma nova cidade, pois ele alegava ter recebido uma mensagem dos deuses para que fundasse uma cidade, com alguma mulher que também pudesse ser sacerdotisa, assim como Cassandra havia sido. Com efeito, como registram os achados arqueológicos expostos no Museu de Arqueologia de Atenas, Cassandra não foi morta em Troia ou em Micenas, mas realmente teria ajudado na fundação de uma nova cidade, deixando uma descendência de trinta gerações.
Os psicólogos e outros cientistas têm utilizado a expressão “complexo de Cassandra” como metáfora para simbolizar a falta de confiança entre os seres humanos. Todavia, dentre as muitas interpretações possíveis da figura de Cassandra, uma das mais óbvias e mais abrangentes é a da falta de credibilidade que pode tornar nula uma predição, um vaticínio ou mesmo uma previsão construída pelas ciências na modernidade.
O cientista substitui os sacerdotes e videntes
Desde a Antiguidade, nas mais diferentes culturas de que se tem notícia, a prática da profecia aparece desempenhando uma função social relevante, embora pouco lembrada pelos estudiosos das culturas e das sociedades. Videntes e sacerdotes tidos como dotados de meios para comunicar-se com os deuses, com habilidades para ler os astros ou para interpretar sonhos e runas místicas, eram objeto de temor por parte das pessoas comuns e de reconhecimento e até de reverência por parte dos poderosos.
As previsões ou profecias podiam referir-se a tudo aquilo que importava para as pessoas e as profecias que mais recebiam a atenção eram, obviamente, aquelas que afetavam um número maior de pessoas tais como pragas, guerras, secas prolongadas ou descendência de famílias reais. Dessa forma, ao nascerem, os príncipes geralmente eram objeto de profecias e reis, quando coroados ou quando estavam diante de uma guerra iminente, não deixavam de consultar seus videntes, seus oráculos. As pessoas comuns, por sua vez, mesmo na sua simplicidade, recorriam a videntes – como muitos continuam a fazer até hoje – para tentar desvendar os mistérios que o futuro lhes reserva, se serão felizes no matrimônio, se terão um futuro de prosperidade ou se devem precaver-se de algum infortúnio.
O interesse em saber sobre o futuro, portanto, não pode ser visto apenas como um interesse exótico de pessoas excêntricas ou incultas. Ma realidade, esse interesse vai muito além da simples curiosidade. A história revela que o interesse em prever o futuro, em muitos sentidos, eleva-se ao nível de verdadeira necessidade inerente à natureza humana, que se angustia diante do incerto e do desconhecido. Ao longo da história, aplacar essa angústia acerca do futuro foi, por muito tempo, um importante papel desempenhado por sacerdotes e videntes, não importando o tipo de recurso ou de ritual utilizado e, em certa medida, não importando até mesmo o quanto esses vaticínios fossem verdadeiros. Os planejadores governamentais, confiando nas ciências modernas como a economia, a administração e as ciências da política, têm seus fundamentos no princípio de que objetivos desejados serão atingidos se certas providências forem tomadas e se certas ações forem realizadas no tempo certo. Esses planejadores modernos, na verdade, pensam que podem evitar desgraças e construir um futuro desejável, indo além do vaticínio. As profecias dos antigos frequentemente diziam que se o rei quisesse sair vitorioso numa guerra, deveria cumprir algum tipo de ritual ou executar algum sacrifício exótico e até cruel para o juízo dos homens de nosso tempo. No plano individual, a maioria das pessoas tem suas próprias receitas e códigos de conduta que acreditam importantes para a construção de um futuro favorável e próspero. Em outras palavras, é da natureza humana angustiar-se diante do desconhecido e do futuro, que é sempre incerto, causando apreensão e temor. Pode-se dizer que, para a maioria das pessoas, sobretudo em ambientes de incerteza e de mudança, as previsões emergem como a água que sacia a sede do viajante que caminha sob o sol escaldante do deserto.
Na modernidade, esse papel social de aplacar as angústias geradas pelas incertezas em relação ao futuro e ao desconhecido foi, em larga medida, assumido pela ciência e há muitas razões para que isso ocorresse. A ciência desvendou total ou parcialmente muitos dos fenômenos e anseios que eram vistos como mistérios cuja compreensão ficava em algum lugar entre o céu e a terra. Por exemplo, os alquimistas, que eram uma espécie de mistura entre o vidente que perscruta o futuro e o cientista moderno em constante procura de fórmulas capazes de equacionar respostas para os anseios humanos, jamais conseguiram seu intento de transformar o chumbo em ouro e de descobrir o elixir da longa vida. No entanto, é possível dizer que, na modernidade, os avanços nas ciências têm permitido produzir riquezas em escala impensável para os alquimistas, enquanto o elixir da longa vida vem sendo ministrado, ainda que gota a gota, pelas ciências médicas e pelos estudiosos da farmacologia e da fisiologia humana e animal, além das ciências agrícolas que tornaram a alimentação abundante para substancial parte da humanidade.
É notável como a ciência, por meio de suas aplicações, permitiu que uma substância pegajosa e de aparência muito pouco atraente como o petróleo se transformasse em verdadeiro “ouro-negro”, responsável pela produção de uma parte substancial da riqueza mundial. A ciência permitiu também que o silício, um dos elementos mais abundantes na crosta terrestre – muito mais abundante do que o chumbo – viesse a se tornar a matéria-prima básica da fantástica indústria da eletrônica nas últimas décadas. Quanto à longevidade, em toda parte a ciência tem avançado criando medicamentos, tratamentos e cirurgias cada vez mais complexas e criando tecnologias agrícolas capazes de produzir alimentação farta para bilhões de pessoas. Dessa forma, a longevidade tem avançado a ponto de tornar-se, em muitas sociedades, um verdadeiro problema social e econômico. Em países como a Alemanha, a França, os Estados Unidos e até mesmo em algumas sociedades emergentes, a substancial elevação da expectativa de vida nas últimas décadas tem produzido acalorados debates sobre os custos da concessão de aposentadorias e de outras formas de previdência social para uma população que permanece cada vez mais tempo na condição de aposentado.[2] Ou seja, embora não tenha sido possível atingir literalmente os intentos dos alquimistas, em muitos aspectos, pode-se dizer que os cientistas modernos foram substantivamente mais longe do que os alquimistas em suas conquistas. O fato mais notável é que sacerdotes e videntes jamais conseguiram a credibilidade e o reconhecimento que o mundo moderno passou a depositar na ciência e nos cientistas.
Assim, parece bastante natural que a ciência tenha substituído a leitura dos astros, a interpretação das runas, ou a observação das vísceras dos animais, no entanto, apesar de todos os feitos da ciência, o problema da credibilidade não deixou de existir, apenas assumiu outras formas. Com efeito, se, de um lado, reis e outros poderosos costumavam tratar astrólogos, profetas e videntes com alta consideração, de outro, a grande desgraça para esses perscrutadores do futuro era ter, como Cassandra, suas visões ou previsões frequentemente desacreditadas. A Bíblia, no Livro do Gênesis (37-50), narra a trajetória de José no Egito e sua notável ascensão em virtude de sua capacidade de interpretar os sonhos do Faraó. Por sua credibilidade, José torna-se conselheiro do Faraó e autoridade em comando na administração das terras do Faraó. Na França do século XV, Joana D’Arc ouvia vozes dos céus, de São Miguel e de Santa Catarina, e a credibilidade que inspirava levou aquela pobre e iletrada camponesa, mal saída da adolescência, a liderar os exércitos da França em batalhas decisivas que levaram à expulsão dos exércitos ingleses do território francês e à coroação do rei Carlos VII no local onde Clóvis Merovíngio e São Luís haviam sido ungidos reis com o óleo sagrado.[3] O mito de Cassandra mostra a situação oposta. Pela lei criada pelos próprios deuses, um deus podia dotar um mortal de talentos e de dons especiais, mas depois de concedidos, esses dons não mais poderiam ser retirados. Assim, Apolo ao ser rejeitado, não retira de Cassandra o dom da profecia, mas retira dela a credibilidade anulando, dessa forma, a utilidade de sua capacidade de interpretar os sinais que antecipavam o futuro. Ao contrário de José do Egito e de Joana D’Arc, Cassandra tem suas profecias desacreditadas e seus avisos ignorados, sendo ao final taxada de louca e abandonada à sua própria sorte.
A ciência e o problema da credibilidade
Embora na ciência moderna a previsão seja apenas uma dimensão da pesquisa e da observação científica, a preocupação com o uso do conhecimento para prever problemas e construir um futuro de prosperidade e de abundância continua tão viva quanto sempre foi desde os tempos antigos. Não há governo que não se preocupe em formular “políticas de ciência e tecnologia”, mesmo que seja apenas no discurso, como forma de oferecer alguma satisfação à sociedade que, instintivamente, aposta no conhecimento para construir seu futuro. Ou seja, nenhum governante em nossos dias, em seu juízo normal, ousa desafiar abertamente o poder da ciência de colocar o conhecimento a serviço do futuro das sociedades.
Prever e controlar os efeitos de desastres naturais é apenas uma das preocupações da ciência, na realidade acredita-se que todo o mundo futuro, todo o modo de vida no futuro, está irreversível e irremediavelmente associado ao avanço do conhecimento. Não há governo de país considerado “civilizado” que não destine vultosas somas de recursos em investimentos em laboratórios, especialmente em áreas do conhecimento consideradas vitais para o futuro dos negócios, para a melhoria da saúde pública, para a redução da pobreza, ou para qualquer outro objetivo considerado social e politicamente desejável. Mais recentemente, constatou-se que muitos dos sucessos trouxeram consigo também grandes problemas como novas doenças, poluição, deterioração da qualidade de vida em áreas metropolitanas, velhice desprovida de propósitos etc. Em face dessa constatação, a ciência passou a preocupar-se também com a construção de um “mundo que queremos”.
O problema da credibilidade na ciência moderna se manifesta de muitas maneiras. Na forma, bem ilustrada na conhecida fábula O Pequeno Príncipe, escrito por Antoine de Saint-Exupéry, na qual o astrônomo turco descobre a existência do minúsculo planeta onde vivia o personagem, mas é desacreditado no congresso científico em razão das roupas que usava, que eram típicas de sua cultura, mas inadequadas para o círculo dos “cientistas”.[4] Isto é, para ter credibilidade, a ciência precisa apresentar-se de forma adequada e deve também ser expressa em “linguagem apropriada”.
Em alguns casos essa preocupação com a credibilidade acabou por distorcer a própria ciência. Na Economia, por exemplo, a ideia de transformar a ciência da economia numa ciência exata foi uma tentação praticamente irresistível em vista de tantas variáveis do mundo da economia que podem ser expressas em quantidades e valores numéricos bastante precisos. No substrato dessa preocupação havia o pressuposto de que hipóteses a respeito do crescimento econômico, sobre o temor de um processo inflacionário ou sobre variações nos níveis de emprego teriam mais credibilidade se fossem expressas em linguagem matemática, em valores precisos e em equações que ligassem causa e efeito de forma indiscutível. Obviamente, dados numéricos são sempre úteis e a estatística tem proporcionado ajuda significativa ao aprimoramento das ciências, inclusive da Economia, a distorção surge quando, na tentativa de restringir as explicações dos fenômenos econômicos a expressões matemáticas, fatos e desenvolvimentos essenciais que ocorrem na vida das sociedades são postos de lado por não poderem ser expressos em cifras. Uma discussão teórica muito interessante das tentativas de matematização da análise econômica pode ser lida no artigo de Antonio Maria da Silveira intitulado ”A indeterminação de Senior”.[5] Antonio Maria chamava de “vício ricardiano” à prática de se construir arquiteturas teóricas bastante sofisticadas, mas construídas sobre um terreno cheio de incertezas e imprecisões. Por que algumas sociedades tornam-se ricas e poderosas enquanto outras fracassam, geralmente mergulhadas em guerras e disputas intermináveis, ou simplesmente em decorrência de políticas ineficazes. Estas são questões essenciais da economia que têm ocupado a atenção de gestores, políticos e analistas e, apesar do amplo conhecimento das teorias econômicas, dos números e de grandezas das economias nacionais e dos valores agregados internacionais, as respostas oferecidas a essas questões continuam sendo não apenas objeto de controvérsias insolúveis, mas crises continuam ocorrendo e a pobreza continua sendo uma condição que atinge parcela substancial da humanidade.
A credibilidade das previsões e suas versões modernas
A falta de credibilidade de uma profecia, como no caso de Cassandra, que fazia previsões corretas, mas que ninguém acreditava, podia ter por origem a voz e a aparência da profetiza que, por alguma razão, não inspiravam confiança, ou a maneira de formular suas previsões, que não convencia. Embora a mitologia nada diga a respeito, ao ser rejeitado, Apolo pode muito bem ter adicionado à beleza de Cassandra algum traço, algum elemento que a tornava uma figura pouco agradável, pouco confiável e até suspeita. Os economistas tentaram transformar a ciência da economia numa ciência “exata”, mas, com isso, retiraram das formulações dessa ciência muitas ocorrências e fenômenos essenciais da vida econômica das sociedades como guerras, ideologias e políticas governamentais, além de fatores culturais que, embora difíceis de serem transformados em cifras, movem a maioria dos impulsos que orientam e dão sentido ao comportamento econômico. Não é incomum legisladores e pensadores sociais falarem de maneira arrogante, usando palavras pomposas ou desnecessariamente especializadas provocando o efeito oposto ao desejado. Se forem palavras escritas provocam o desinteresse do leitor, se forem ditas de viva voz, podem tornar-se pedantes e tediosas para os ouvintes. Em qualquer caso, ao invés de convencer e, em certos casos, comover e inspirar, essas palavras induzem o leitor ou o ouvinte a rejeitar ou, simplesmente, a ignorar suas proposições e seus argumentos.
No final de 2015 realizou-se a Conferência do Clima de Paris (COP 21) e é interessante notar que a partir dessa conferência acirrou-se a preocupação com a demonstração científica dos problemas climáticos e de suas possíveis consequências. Hoje já existe uma crescente comunidade científica que tem se ocupado com estudos climáticos e, a maioria deles, procurando relacionar fenômenos geológicos e ambientais com as atividades econômicas de produção industrial e de consumo. Por algum tempo, houve controvérsia a respeito da confiabilidade dos dados apresentados pelos cientistas que passaram a ser reunidos nos relatórios do IPCC.[6] Hoje, praticamente esse tipo de controvérsia desapareceu, prevalecendo a percepção de que a humanidade tem condições e até mesmo a obrigação de contribuir com a amenização das condições ambientais em todos os sentidos, até mesmo climáticos. Hábitos sadios de higiene e de limpeza, sobretudo nas grandes áreas urbanas, hoje dependem muito não apenas do poder público que precisa investir em sistemas de coleta e de tratamento de lixo e de esgoto, mas dependem também dos hábitos de consumo, que são, em larga medida, determinados pelos padrões de produção da indústria e da agricultura. Na realidade, muitos dos que ainda se mantém céticos quanto às manifestações de organizações como o IPCC consideram a hipótese de que talvez os “cientistas do clima” estejam se comportando de forma um tanto presunçosa ao se arvorarem em portadores da “verdade científica” sobre tema tão complexo. Entendem que, na realidade, o clima e todo o conjunto geológico da Terra formam, por si mesmo, um sistema demasiadamente grande e complexo com muitos elementos pouco conhecidos. Entendem que fenômenos geológicos são demasiadamente amplos e que são resultantes de forças e processos que ultrapassam de muito os horizontes de tempo e de dimensão da compreensão humana. Argumentam esses céticos que a Terra é uma pequena parte de um sistema ainda muito maior, que é o Universo infinito, onde os fenômenos e os ciclos astronômicos e geofísicos conhecidos pela ciência não passam de uma parte bem pequena dessa realidade imensa, conhecida apenas por vestígios deixados em formações geológicas e em depósitos de material orgânico encontrados na superfície da Terra.
Talvez o debate tenha praticamente desaparecido em virtude do fato de que mesmo aqueles que tenham continuado céticos isto é, pouco crédulos em relação às manifestações dos cientistas do clima, não deixam de reconhecer que o mal uso dos recursos naturais tem produzido enormes desperdícios e práticas muito nocivas ao meio ambiente contribuindo para a deterioração da qualidade de vida das populações em muitos aspectos e em muitas regiões, especialmente nos grandes centros urbanos. Em outras palavras, mesmo que uma economia de baixo carbono afinal acabe por não se revelar fator tão decisivo na variação das condições climáticas, está claro que os atuais padrões de produção e de consumo são insensatos e insustentáveis no longo prazo. Em outras palavras, independentemente de qualquer teoria a respeito das relações entre atividade humana e as mudanças no clima, é generalizada a percepção de que é preciso levar em conta o problema de escala dos fenômenos. Uma dezena de famílias morando à beira de um rio não altera as condições e a qualidade das águas ainda que todos os dejetos produzidos diariamente por essas famílias sejam jogados diretamente no rio. No entanto, é óbvio que se uma população de centenas de milhares de famílias jogarem os esgotos produzidos diariamente diretamente no rio, sem qualquer tratamento, com certeza acabarão por comprometer a qualidade das águas desse rio, como ocorre com a maioria dos rios que atualmente cruzam as cidades no Brasil e em muitas regiões no mundo onde se formaram grandes concentrações urbanas. O mesmo pode ser dito a respeito do consumo de matérias primas ou da queima de combustíveis fósseis.
Na década de 1950, os EUA eram a única “sociedade de consumo de massa” no mundo, hoje esse padrão econômico-social já se estendeu por dezenas de países espalhadas pelo globo, inclusive para países periféricos, onde a pobreza continua disseminada, mas onde já existem grandes bolsões de populações onde prevalece o padrão de consumo de massa. Os dados mostram que no ano de 1950 a produção mundial de veículos foi de 10 milhões de unidades, dos quais 80% haviam saído das fábricas americanas. Agora, sete décadas depois, a produção mundial de veículos se aproxima de 100 milhões ao ano, dos quais somente 8% são produzidos nos EUA. Em termos demográficos, os dados são também notavelmente expressivos. Com efeito, a população mundial levou milhares de anos, desde que foram registradas as primeiras manifestações de vida em torno de civilizações, até que se atingisse o primeiro bilhão no ano de 1800 da era cristã. O segundo bilhão foi atingido em 1930, isto é, levou apenas 130 anos; em 1975 a população mundial já havia dobrado, atingindo 4 bilhões de habitantes no planeta e a evolução de 6 para 7 bilhões levou apenas 13 anos (1999-2012).[7] É praticamente certo que essa taxa de aumento da população mundial deverá sofrer declínio nos próximos anos mas, de qualquer modo, é preciso considerar que a lógica e as motivações presentes nos padrões de produção industrial e de hábitos de consumo até nossos dias foram basicamente aquelas herdadas do século XIX e da primeira metade do século XX. As muitas inovações tecnológicas ocorridas a partir da Segunda Guerra Mundial, embora trouxessem muitos hábitos novos, apenas seguiram e ampliaram os mesmos padrões de consumo.
Assim, sob qualquer ângulo, é fácil entender a necessidade de se rever os padrões de produção, os hábitos de consumo bem como as instituições sociais e políticas que orientam a ordem doméstica dos países bem como as relações entre países.[8] Nesse quadro parece bem natural que a ideia de que a implantação de uma nova economia de baixo carbono tenha se tornado um consenso tanto entre autoridades do setor público quanto entre lideranças da iniciativa privada.
As discussões que ainda permanecem referem-se basicamente quanto ao ritmo e as prioridades estratégicas nesse processo. As expectativas são as de que por volta de 2050 o mundo tenha cerca de 10 bilhões de habitantes e, além disso, considerando que os padrões de consumo das nações economicamente mais avançadas tenderão a continuar sendo seguidos pela maioria das nações do mundo, tudo indica que é razoável supor que, a menos que novos padrões de produção e de consumo sejam implantados, haverá lugares onde os níveis de poluição e de produção de lixo e dejetos serão extremamente elevados e as necessidades de água e de alimentos acabarão sendo insuficientes para atender as demandas diárias das populações. Dessa forma, pode-se concluir que, nesse caso, não existe o problema da credibilidade, mas sim o fato de que não parece ser necessário um estudo “científico” para justificar a necessidade de políticas e de investimentos no sentido de se desenvolver sistemas energéticos e padrões industriais e de consumo menos danosos ao meio ambiente e que não sejam tão perdulários no emprego de recursos naturais.
Em outras palavras, o problema que se coloca não é o da credibilidade na ciência, mas do fato de que, mesmo diante do generalizado entendimento de que os padrões tecnológicos predominantes na indústria, na produção de energia e no consumo dos recursos naturais, devem ser revistos e que documentos de alerta como os relatórios do IPCC devam ser aceitos como válidos, a maioria das organizações ambientalistas reclama da timidez e da pouca disposição dos governos no sentido de tomar as medidas necessárias ao combate de práticas perdulárias e muito nocivas ao ecossistema humano. Dessa forma, uma possível linha de explicação pode ser o fato de que as questões relacionadas ao meio ambiente e às mudanças climáticas exibem um tipo muito especial não de falta de credibilidade, mas de indiferença, que atinge as escolhas das autoridades governamentais na maioria das vezes: a da preferência pelo atendimento das demandas de curto prazo em relação às de longo prazo.
Para as autoridades, benefícios de longo prazo em geral despertam muito menos interesse do que medidas que produzem resultados imediatos. Ainda menos atraente para os governantes se afigura restringir atividades que, no presente momento, trazem lucros, confortos e bem estar para considerável parte do povo que governam, em troca de um futuro cujos benefícios se afiguram difusos, distribuídos por todo o planeta e até incertos sob alguns aspectos. Do ponto de vista teórico, Mancur Olson formulou um paradoxo que pode ajudar a compreender esse dilema. O paradoxo de Olson, como ficou conhecido, diz que quanto maior o número e mais generalizado o interesse das pessoas por uma causa, menor deverá ser o número de pessoas dispostas a mover esforços para implementar essa causa.[9] Olson dá o exemplo da ação dos sindicatos nos EUA, que em várias ocasiões precisaram recorrer a “piquetes”, muitas vezes usando até de ações violentas, para realizar greves por aumento de salários ou melhoria das condições de trabalho. Um aumento de salários é algo que beneficia a todos os trabalhadores e, justamente por essa razão, cada trabalhador – observa Olson – tenderá a ficar à espera de que alguém arrisque perder o pagamento pelos dias parados numa greve e, por vezes, até o próprio emprego, para conseguir um aumento salarial que, no final, irá beneficiar a todos os empregados, mesmo aqueles que nada arriscaram e não participaram da greve. Esse comportamento de “carona” se aplicaria de forma provavelmente ainda mais aguda, argumenta Olson, em questões envolvendo a promoção de bens públicos como a de um possível processo de aquecimento global. As medidas requeridas implicam esforços, custos e perdas diferenciadas em favor de um benefício futuro cujos ganhos mais significativos não serão auferidos necessariamente por aqueles que mais tenham contribuído com a causa. As pessoas podem estar convencidas de que conter o aquecimento global seja algo que trará benefícios a todos, mas para a maioria dos governantes há sempre uma demanda mais imediata e mais específica daquela população a ser atendida. Além disso, essas demandas de curto prazo costumam se fortalecer com o sentimento de que outros governos não estão se esforçando tanto quanto deveriam, e principalmente, que estão despendendo menos recursos pela causa do que deveriam. Com efeito, os governantes estarão sempre mais sensíveis a demandas mais imediatas como a redução do desemprego, o aumento das exportações ou, provavelmente, muito mais sensíveis ainda a medidas que favoreçam sua própria popularidade com vistas a uma possível reeleição. Além disso, notícias ruins costumam ser mal recebidas e seus portadores tendem a ser vistos com desconfiança e rejeição.
O mito de Cassandra diz que seus vaticínios a respeito dos destinos de Troia foram desacreditados, mas talvez não seja despropositado pensar que os troianos ouviram e compreenderam muito bem as profecias de Cassandra, mas, após dez anos de guerra, marcados por tensões contínuas e por grandes sofrimentos, diante da aparente retirada dos gregos, os anseios dos troianos por uma noite de celebração eram demasiado intensos para optar pela vigília e pela continência.
[1] Professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.
[2] Dados do IBGE mostram que a expectativa de vida do brasileiro em 1940 era de 45,5 anos e que em 2018 havia atingido 76,3 anos.
[3] Na realidade a cerimônia da coroação de Carlos VII ocorreu em 1429 na nova Catedral de Reims, cuja construção se iniciara em 1211, mas que somente seria concluída no formato que hoje conhecemos três séculos mais tarde, no início do século XV.
[4] Antoine de Saint-Éxupery (1900-1944), O Pequeno Príncipe (1943), cap. IV.
[5] Revista de Economia Política, vol. 11, no. 4, Out-dez 1991.
[6] O IPCC é uma organização de base científica criada pela ONU em 1988 numa iniciativa conjunta do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e da Organização Meteorológica Mundial (OMM) com o objetivo de sintetizar e divulgar os conhecimentos mais recentes sobre as mudanças climáticas que hoje afetam o mundo. O IPCC não produz pesquisa original, mas reúne e organiza conhecimentos produzidos por cientistas de alto nível no mundo de forma independente, mas reconhecidos por governos.
[7] Dados da UN Population Division.
[8] A Arquitetura e outras ciências têm se valido da obra do biólogo D’Arcy Thompson (1860-1948) que se notabilizou com a edição de seu livro On Gowth and Form (1917) no qual explica como e porque, mesmo na natureza, as formas e as estruturas de animais e de plantas dependem do meio, mas dependem também das suas dimensões.
[9] Mancur Olson, The Logic of Collective Action. Public Goods and Theory of Groups. Harvard University Press, 1965.
Eiiti Sato é professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.
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