Esclarecendo a aparente contradição entre desemprego e escassez de mão de obra
“Antes, as habilidades não eram tão amplas. Hoje, o profissional precisa conhecer e estudar a fundo vários assuntos. Por isso, as pessoas precisam ser flexíveis para acompanhar o mercado.”
Luciano Montezzo
Muita gente tem ficado confusa ao ler as diferentes seções dos jornais, revistas e sites nas últimas semanas, o que, em minha opinião, é absolutamente compreensível. Afinal, algumas manchetes apresentam, aparentemente, enorme contradição, sobretudo quando se referem ao nível de emprego e ao mercado de trabalho.
Tal contradição resulta não apenas da complexidade da economia, mas também das oscilações que ocorrem na macroeconomia – que focaliza dados agregados – e na microeconomia, com desempenhos diferentes quando se examinam determinados setores ou regiões.
Já me referi aos dois aspectos em comentários no Podcast do Espaço Democrático: A resposta tardia do emprego, no final de julho; e Percepções diferentes na macro e na microeconomia, no início de setembro.
Retorno aos temas, abordando-os por novos ângulos, a fim de tentar explicar a aparente contradição que menciona, de um lado, o elevado desemprego e, de outro, a escassez de mão de obra que gera acirrada disputa por profissionais em alguns segmentos do mercado.
Comecemos pelo desemprego, que se elevou a partir do início da pandemia do coronavírus e permanece em patamar elevado, em torno de 14% da população economicamente ativa[1], mesmo com a reação da economia a partir do terceiro trimestre de 2020, que levou muitos especialistas a se referirem a ela como recuperação em V. Ora, se não apresentou melhora na fase mais favorável da recuperação em V, é natural que não o faça agora, quando os indicadores apontam para uma estagnação, indicada pelo colega Roberto Macedo pelo sinal da raiz quadrada – em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo.
O elevado desemprego é um dos componentes da chamada tempestade perfeita que se abate atualmente sobre a economia brasileira, resultante da combinação de uma pandemia devastadora, de uma crise hídrica tão ou mais grave do que a de 2001 e de um governo desastroso, que pode ser comparado a uma fábrica de incertezas, e que produziu, na economia, a perversa mistura de crescimento baixo com inflação alta, pondo por terra, mais uma vez, um dos postulados da teoria econômica, a Curva de Philips[2].
Como, então, pode haver escassez de oferta de mão de obra e acirrada disputa por profissionais no mercado num país marcado por elevado nível de desemprego?
Para entender essa aparente contradição, precisamos fazer a ponte entre a macro e a microeconomia. Nem tudo que vale para a macroeconomia, vale para a microeconomia, cuja análise se desloca da seara dos agregados para a dos aspectos pontuais, examinando um segmento da economia, um setor da cadeia produtiva ou uma região particular.
No presente momento, a coexistência que causa surpresa no mercado de trabalho não se estende a todos os setores da nossa economia, mas sim a um segmento específico.
Enquanto os indicadores macroeconômicos persistem sinalizando para um alto desemprego, os indicadores microeconômicos referentes às atividades ligadas à tecnologia da informação, diretamente associadas à transformação digital em curso, revelam um mercado de trabalho bastante aquecido, em que não é raro observar empresas “roubando” profissionais de suas concorrentes.
Infelizmente, o fenômeno não é generalizado. É localizado e favorece apenas a profissionais qualificados, deixando à margem a esmagadora maioria dos desempregados e desalentados, constituída por trabalhadores de baixa qualificação, vítimas, muitas vezes, das decantadas deficiências do nosso sistema educacional.
Em consequência disso, constatam-se mudanças importantes, com o enfraquecimento de algumas profissões ou ocupações tradicionais e a crescente valorização de “carreiras do futuro”, tendência que tem levado muitas pessoas a se reposicionarem, buscando diferentes formas de aperfeiçoamento em atividades relacionadas à tecnologia.
Naturalmente, as instituições de ensino correm para se adaptar aos novos tempos, alterando a oferta de cursos ou a grade curricular dos já existentes, na tentativa de atender a essa procura crescente por parte de estudantes atraídos por funções que aliam boas oportunidades e bons salários.
E que funções são essas?
Entre elas, podem ser citadas: engenheiro de dados (responsável pelo gerenciamento de captação, armazenamento e distribuição de dados em toda a empresa), arquiteto de soluções (responsável pelo desenvolvimento, adequação e integração de novas soluções personalizadas para as empresas), gestor de mídias sociais (responsável por posicionar a marca da empresa conforme seus objetivos de atrair, reter e engajar o público nesses canais), desenvolvedor full stack (responsável por desenvolver códigos para a execução das funções de uma aplicação na internet), líder de live streaming (responsável por garantir o bom funcionamento das transmissões ao vivo e pela coordenação das equipes que farão as lives), piloto de drone (responsável pelo controle da máquina para a produção de imagens e fotos aéreas para diversos tipos de empresas), especialista em machine learning (responsável pelo desenvolvimento de cálculos, simulação de cenários de decisão e avaliação dos resultados gerados pela simulação), people analytics (responsável pelo processo de coleta, análise e geração de insights baseados em dados para a gestão de pessoas) e pentester (responsável pela execução de testes de segurança em uma infraestrutura para prevenir invasões e exposições de dados).
Com salários médios que variam de R$ 5,5 mil a R$ 13 mil, são algumas das funções que começam a ser mais requisitadas no mercado de trabalho. Elas serão, certamente, acompanhadas por novas designações à medida que a inteligência artificial e a tecnologia de informação evoluem num ritmo cada vez mais acelerado.
Referências e indicações bibliográficas e webgráficas
FRANK, Malcolm, ROEHRIG, Paul e PRING, Ben. O que fazer quando as máquinas fazem tudo: como ter sucesso em um mundo de IA, algoritmos, robôs e big data. Tradução de Eveline Machado. Rio de Janeiro: Alta Books, 2018.
MACEDO, Roberto. PIB – do V ao símbolo da raiz quadrada. O Estado de S. Paulo, 21 de outubro de 2021. Disponível em (https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,pib-do-v-ao-simbolo-da-raiz-quadrada,70003874577.
MACHADO, Luiz Alberto. A resposta tardia do emprego. Disponível em https://espacodemocratico.org.br/podcasts/a-resposta-tardia-do-emprego/.
_______________ Percepções diferentes na macro e na microeconomia. Disponível em https://espacodemocratico.org.br/podcasts/percepcoes-diferentes-na-macro-e-na-microeconomia/.
PEREIRA. Renée. TI e dados ditam profissões do futuro. O Estado de S. Paulo, 24 de outubro de 2021, p. B1.
_______________ Com mão de obra restrita, mercado disputa profissionais. O Estado de S. Paulo, 24 de outubro de 2021, p. B3.
[1] O que equivale a pouco mais de 14 milhões de pessoas.
[2] A teoria econômica não admitia a existência desse fenômeno, dado que a crença era no domínio da Curva de Phillips original, que estabelece uma relação inversa entre as taxas de desemprego e de inflação. Se o desemprego fosse alto, a inflação seria baixa, e vice-versa. Supondo a validade dessa relação inversa, recomendava-se que as políticas econômicas adotassem medidas inflacionárias para combater o desemprego e medidas recessivas, causadoras de desemprego, para combater a inflação.
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