A gastrodiplomacia, a economia criativa e o Brasil

 “A gastrodiplomacia tem o envolvimento direto de governos, que procuram expor a gastronomia de um determinado país como atrativo de destino turístico. […] Com isso, movimentam toda uma cadeia, não só turística, mas de alimentação, que envolve logística, produção, toda a parte de distribuição, consumo e exposição desses produtos a um público externo.”

Robert Kenzo Falck

Joseph Nye, um dos mais consagrados teóricos das relações internacionais, tornou conhecida mundialmente a expressão soft power, que pode ser traduzido por poder brando (ou poder suave) e que se contrapõe ao hard power, o poder que um país obtém graças ao uso da força, expresso na maioria das vezes pelo seu poderio militar.

No livro Soft Power: The means to success in world politics, publicado em 2004, Nye explica o termo como sendo a construção de uma imagem positiva de um país sem o uso da força. Podemos citar, por exemplo, a cultura (como a Coreia do Sul e seu k-pop), os filmes de Hollywood (largamente utilizados pelos Estados Unidos para disseminar o american way of life), ou heranças civilizacionais riquíssimas, como as da China e da Índia, expressas por meio da popularização de práticas como yoga, ayurveda ou tai chi (enfatizando ser necessário o homem respeitar e integrar-se com a natureza). Tais exemplos de imagem positiva transformam-se, com o tempo, em influência política. Em alguns casos, resultam também em ganhos econômicos.

A gastronomia vem ganhando espaço cada vez maior entre as estratégias adotadas por diferentes países para projetar internacionalmente seus valores e sua cultura, dando origem inclusive a uma nova expressão para designá-la: a gastrodiplomacia.

No artigo Gastrodiplomacia: o poder da comida nas relações internacionais, Arina Ferraz e Fernanda Bassi explicam que “o termo gastrodiplomacia – ou diplomacia gastronômica – é usado desde os anos 2000, quando foi popularizado pelos pesquisadores da área de diplomacia pública Paul Rockower e Sam Chapple-Sokol”.Em um artigo de 2014, Rockower descreveu a gastrodiplomacia como a maneira de “conquistar corações e mentes por meio do estômago”. Segundo ele, “assim como a música, a comida trabalha para criar uma conexão emocional para ser sentida além das barreiras de linguagem”. Em resumo, “a gastrodiplomacia procura criar uma conexão emocional, através da diplomacia cultural, por meio da comida”.

Não é por outra razão que também diversos especialistas em economia criativa passaram a considerar a gastronomia como sendo parte integrante de sua área de abrangência. Evidência disso é que a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), incluiu a gastronomia como uma das sete categorias da Rede de Cidades Criativas, criada em 2004 com o objetivo de promover a cooperação internacional entre as cidades comprometidas em investir na criatividade como forma de estimular o desenvolvimento sustentável, a inclusão social e o aumento da influência da cultura em todo o mundo.

Destaques da gastrodiplomacia

Projetar a imagem de um país por meio de uma manifestação cultural não é tarefa fácil e exige um significativo esforço de marketing, notadamente no que se refere à construção e consolidação de uma marca, como ocorre com qualquer produto ou serviço.

Não canso de mencionar dois exemplos que revelam a elevada capacidade da Colômbia nesse sentido: o primeiro deles, que mostra como bem desenvolver uma marca pode ser identificado no “café de Colômbia”. Embora não seja o maior produtor mundial, a Colômbia conseguiu imprimir ao seu café uma imagem de alta qualidade que faz com seja o mais desejado em diversas partes do mundo; o segundo, típico de uma forma positiva de explorar a economia criativa, refere-se ao sistema de bibliotecas que se vê em importantes cidades colombianas como Bogotá e Medellín. Esse aspecto não passou despercebido por Mario Vargas Llosa, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 2010, que a ele se referiu da seguinte forma no magnífico Dicionário Amoroso da América Latina:

O prefeito de Bogotá, Antanas Mockus, cuja origem lituana ninguém considera “lesiva à colombianidade” (assim se escreve?), em vez de pôr abaixo estátuas de conquistadores, inventar bandeiras chibchas, está modernizando e embelezando a cidade de Bogotá – nisso continua a política de seu antecessor, o prefeito Enrique Peñalosa, aprimorando seu sistema de transporte (já excelente) e estimulando sua vida cultural e artística de maneira irretocável. Por exemplo, incrementando a rede de bibliotecas – Bibliored – que o ex-prefeito Peñalosa plantou nos bairros menos privilegiados da cidade. Dediquei toda uma manhã visitando três delas, a do Tintal, a do Tunal e especialmente a invejável Biblioteca Pública Virgilio Barco. Magnificamente desenhadas, funcionais, enriquecidas com videotecas, salas de exposições e auditórios onde se realizam, sem cessar, conferências, espetáculos teatrais; rodeadas de parques, essas bibliotecas se converteram em algo muito mais importante que centros de leitura: são autênticos eixos da vida comunitária desses bairros humildes, aonde vão as famílias em suas horas de lazer, porque, nesses locais e ao seu redor, velhos, crianças e jovens se divertem, se informam, aprendem, sonham melhoram e se sentem participantes de uma iniciativa comum.

No que se refere à gastrodiplomacia, Peru, Tailândia, Coreia do Sul e Malásia são os países que mais se têm destacado nos últimos anos no plano internacional, graças a estratégias inteligentes que contam, muitas vezes, com apoio governamental[1]. Com isso, passam a ter sua culinária e seus chefs mais renomados disputando a preferência de amantes da boa comida com os representantes de países tradicionalmente reconhecidos como de excelência, como são os casos da França e da Itália.

O Brasil na gastrodiplomacia

Embora seja a categoria em que conta com o maior número de representantes na Rede de Cidades Criativas da UNESCO[2] e que a cidade de São Paulo seja, reconhecidamente, um dos mais diversificados centros gastronômicos em todo o mundo, o Brasil não é citado como exemplo de gastrodiplomacia, em mais um exemplo típico de desperdício de oportunidade de ocupar papel de protagonismo, a exemplo do que acontece com a própria economia criativa e com a economia de baixo carbono[3].

Trata-se, a meu juízo, de uma situação que pode ser perfeitamente solucionada desde que seja encarada como uma prioridade de política externa e objeto de um trabalho inteligente de marketing institucional. Com a diversidade existente no Brasil, decorrente da multiplicidade de sua fauna e flora, as condições estão à nossa disposição. Tradição também não nos falta. Lembro, a propósito, que durante um bom tempo a Varig, por muitos anos a principal companhia aérea brasileira, era famosa por “ganhar o passageiro pelo estômago”. Para tanto, não bastava enorme generosidade das porções de comidas e bebidas. Uma boa dose de contribuição era dada pelos cardápios recheados de pratos que privilegiavam produtos e temperos genuinamente nacionais.

Vale destacar que uma das preocupações da UNESCO é que ao entrar para a Rede de Cidades Criativas, a cidade não mire apenas no segmento em que está inserida, mas que busque a transversalidade, fazendo projetos que dialoguem com os outros segmentos[4]. A esse respeito, vale a pena conhecer os relatos feitos por Ignácio de Loyola Brandão, no livro O mel de Ocara: ler, viajar, comer (São Paulo: Global 2013) sobre as inúmeras experiências por ele vividas nas feiras e festivais literários de que participou em várias partes do mundo, nos quais teve possibilidade de praticar o diálogo da leitura com outros segmentos da economia criativa, tais como arquitetura, artesanato, design, folclore, gastronomia, moda e música.

Eis, portanto, mais uma tarefa para a outrora tão decantada diplomacia brasileira.

 

Referências e indicações bibliográficas e webgráficas

BRANDÃO, Ignácio de Loyola. O mel de Ocara: ler, viajar, comer. São Paulo: Global, 2013.

COUTO PEREIRA, Maria Rita Martins do. Gastrodiplomacia: o uso da gastronomia como fonte de soft power por Tailândia, Peru, Coreia do Sul e Malásia. Artigo científico apresentado ao Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia como Trabalho de Conclusão de Curso para obtenção do grau de Bacharel em Relações Internacionais, sob orientação do Prof. Dr. Aureo de Toledo Gomes.

DAVILA, Anapaula Iacovino; MACHADO, Luiz Alberto; PAULA, Mauricio Andrade de; SANTOS, Sonia Helena. Economia + Criatividade = Economia Criativa. São Paulo: Scriptum, 2021.

FERRAZ, Arina; BASSI, Fernanda. Gastrodiplomacia: o poder da comida nas relações internacionais. Disponível em https://www.poder360.com.br/internacional/gastrodiplomacia-o-poder-da-comida-nas-relacoes-internacionais/.

MADEIRA, Mariana Gonçalves. Economia criativa: implicações e desafios para a política externa brasileira. Brasília: FUNAG, 2014.

NYE, Joseph S. Soft Power: The means to success in world politics. New York: Public Affairs, 2004.

TOTA, Antonio Pedro. O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. 2ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

VARGAS LLOSA, Mario. Dicionário amoroso da América Latina. Tradução de Wladir Dupont e Hortencia Lancastre. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

[1] Na Tailândia, o governo lançou o programa “Global Thai”, em cujo texto de lê Goste da cozinha, goste do país”. Em 2004, o país lançou o “Thai Kitchen of the World”, para dar apoio a restaurantes tailandeses no exteior, que serviriam como uma espécie de centros de promoção do país. No Peru, o Ministério do Comércio e do Turismo lançou, em 2006, a campanha “Peru, mucho gusto”. Desde então financiou festivais gastronômicos no Peru e no exterior, publicou livros de culinária e assessorou a abertura de restaurantes peruanos pelo mundo. O governo do Peru também financia a participação da gastronomia peruana em feiras e eventos globais, mesmo que não sejam sobre comida. Na Coreia do Sul, em 2009, o governo investiu US$ 77 milhões em uma campanha apelidada de “Diplomacia Kimchi”.

[2] A Rede de Cidades Criativas da UNESCO engloba sete segmentos: artesanato e artes folclóricas; artes midiáticas; cinema; design; gastronomia; literatura; música. A cada dois anos a UNESCO realiza reuniões da Rede de Cidades Criativas e, nessas ocasiões, são admitidas novas integrantes da Rede. Em 2020 e 2021, por conta da pandemia, a reunião não foi realizada. A Rede conta atualmente com 246 cidades que funcionam como um laboratório de ideias e de práticas inovadoras.

[3] Ver, a respeito, meu artigo Duas janelas de oportunidades para 2022 , também publicado pelo Espaço Democrático (https://espacodemocratico.org.br/artigos/duas-janelas-de-oportunidades-para-2022/).

[4] Na reunião de 2018, 17 cidades brasileiras se candidataram, sendo duas escolhidas: Belo Horizonte, no segmento gastronomia, e Fortaleza, no segmento design. Com isso, o Brasil possui atualmente 10 cidades integrando a Rede de Cidades Criativas: quatro em gastronomia (Paraty, Florianópolis, Belém e Belo Horizonte); três em design (Brasília, Curitiba e Fortaleza); uma em cinema (Santos); uma em música (Salvador); e uma em artesanato e artes folclóricas (João Pessoa). Portanto, só em dois segmentos, literatura e artes midiáticas, o Brasil não possui representantes na Rede de Cidades Criativas.