Democracia e formalismo jurídico

Eiiti Sato

 

O termo democracia pode designar muitas coisas. Por exemplo, nos tempos da guerra fria, todos os países que tinham o termo “democrático” (ou outro termo assemelhado, como “popular”) em seu nome oficial designavam ditaduras de variados matizes. Além disso, como ocorre com todas as manifestações humanas, sejam de vícios ou de virtudes, muito raramente se apresentam de forma absoluta, mas na forma de gradações e sempre associadas a outros aspectos da condição humana.

Assim, a democracia pode ter um ambiente favorável ou desfavorável ao seu florescimento. Nesse sentido, a democracia depende muito do ambiente institucional em que ocorre. Uma das relações mais essenciais da democracia com a ordem pública é por meio da qualidade da justiça. Em tempos passados, uma das funções mais importantes desempenhadas por reis e governantes em geral era a distribuição da justiça. Era comum haver pelo menos um dia da semana em que a “sala do trono” era usada pelo governante para atender as demandas dos súditos. Foi assim que Salomão dentro da tradição judaico-cristã, notabilizou-se por ter sido um rei “justo”. 

O Estado e a divisão dos poderes

Obviamente que, com o tempo, o Estado tornou-se cada vez mais complexo. Diante dessa crescente complexidade, doutrinariamente no Ocidente, a partir do século XVIII, emergiu o conceito de “divisão dos poderes”. Apesar dessa divisão de competências, o Estado não deixou de ser unitário e dependente de cada ramo de instituições que formam o Estado, que continua sendo a entidade central que organiza a vida econômica, política e social das sociedades.

Nesse quadro, se o ramo legislativo não desempenha bem suas funções produzindo leis boas e sensatas, a qualidade do Estado tende a se deteriorar. Da mesma forma, se o Poder Judiciário não julga e não distribui justiça de maneira satisfatória, o Estado perde muito de sua eficácia e, como consequência, a sociedade se vê privada de poder experimentar a satisfação que deve proporcionar uma “justiça salomônica”.

A ordem jurídica (bem como as instituições jurídicas) em qualquer país pode se deteriorar com o tempo, e um dos sinais da deterioração da ordem jurídica é o crescente formalismo jurídico, isto é, em um ambiente de deterioração das instituições jurídicas, cada vez mais as disputas jurídicas importantes são decididas por dispositivos formais da lei e não mais pelo intuito de se buscar justiça. 

O formalismo jurídico no Brasil

Neste nosso Brasil de hoje, chama a atenção a crescente importância do formalismo na justiça que, cada vez mais, se sobrepõe não apenas a indícios, mas até mesmo a documentos probatórios e a fatos registrados em gravações claras e inequívocas. Em tempos recentes o caso “Lava-Jato” foi apenas mais um caso notável de uma formalidade – neste caso, sobre foro de julgamento – prevalecendo sobre milhares de páginas de provas, de documentos e de depoimentos. Na realidade, foi uma questão cujo entendimento ganhou forma somente anos depois de o julgamento ter sido realizado por uma corte legalmente constituída. O fato desse entendimento ter ocorrido justamente às vésperas do prazo final para o registro de candidaturas às eleições de 2022, apenas contribui para desmoralizar as instituições do Judiciário.

A pergunta que inevitavelmente emerge é: como é possível ter um “Estado de Direito” em um ambiente de justiça desmoralizada? Os frutos do “formalismo jurídico” emergem nas cifras escandalosas da criminalidade no Brasil; e é também sob o “formalismo jurídico”, que se desenvolvem as variadas formas de ativismo político praticado pelas autoridades judiciárias em conluio com os políticos das diferentes tendências. Sob um ponto de vista de mais longo prazo, a deterioração da ordem política e social – sobre a qual o Judiciário tem responsabilidade direta – vai  empurrando a sociedade brasileira de forma consistente para a periferia da civilização.

Conta-se que Abraham Lincoln, ainda jovem aspirante a advogado, beneficiou-se da amizade do Juiz Bowling Green que, além de emprestar muitos livros de Direito a Lincoln, permitia que Lincoln o ajudasse nos trabalhos da corte do Condado de Sangamon. Green, como homem de fronteira, presidia os julgamentos em mangas de camisa e, em uma ocasião, quando duas testemunhas juraram que um certo porco não pertencia a Jack Kelso, cidadão do Condado, após ouvir as partes, o Juiz Bowling Green teria proferido seu julgamento: “As duas testemunhas que acabamos de ouvir juraram falso, … conheço bem esse porco e sei muito bem que ele pertence a Jack Kelso“. Obviamente, eram outros tempos e outras circunstâncias, mas o episódio ilustra a preocupação com a busca da justiça e com a verdade dos fatos, que se sobrepõe às formalidades, muito embora necessárias.

 

 

Eiiti Sato é professor do Instituto de Relações Internacionais da UnB (1983-2022). Foi diretor do Instituto de Relações Internacionais da UnB (2006-2014), e foi um dos fundadores da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI), tendo sido seu primeiro presidente (2005-2007).