O empreendedorismo e a construção do poderio econômico americano

Eiiti Sato*

A figura do empreendedor

A publicação deste trabalho nasceu de conversas com Aurélio Macedo, que observava que um fator importante da vitalidade das economias era a capacidade de empreender e de inovar dessas economias[1]. A partir dessa observação, a consequência inevitável foi pensar na trajetória da economia americana, que se notabilizou pelo empreendedorismo e pela capacidade de produzir inovações. A grande surpresa foi constatar que figuras como Rockefeller, Ford, e Carnegie apareciam na literatura frequentemente associadas com a expressão “barão ladrão” e só depois associadas à criatividade, à capacidade de tomar iniciativa e à vontade de vencer, que são as principais marcas que distinguem esses personagens, que foram capazes de deixar um traço marcante na trajetória dos EUA como nação e como grande potência mundial. É óbvio que, como empresários capazes de realizar grandes feitos – em especial, enriquecer – são figuras controvertidas bastante semelhantes aos construtores de impérios como Alexandre, o Grande, Carlos Magno, ou Napoleão Bonaparte.

A História mostra que figuras que realizaram grandes feitos, na maioria das vezes, foram alvos de incompreensão e de controvérsias. Talvez a melhor imagem de figuras como Rockefeller, Vanderbilt e Andrew Carnegie esteja representada no poema alegórico Prometeu e Epimeteu escrito por Carl Spitteler (1845-1924). No poema, esses dois poderosos titãs viviam isolados, segundo suas próprias regras, decididos a viverem de forma “diferente dos muitos que pululam no montão comum … pois se conformarmos a nossa maneira de viver com o exemplo comum, seremos de preço comum e nunca mais desfrutaremos nobres alegrias nem aquelas dores que enriquecem a alma”. E assim – canta o poema – os dois titãs viviam isolados do restante dos homens. Quando, de longe em longe, o acaso ou mesmo o desejo de se aproximarem dos homens, à chegada de Prometeu e de Epimeteu, a conversa emudecia e os jogos cessavam entre os que viviam nas cidades. Os velhos à porta de suas casas confortáveis, incomodados, cochichavam: “de onde vêm estes? Têm ar exótico, falta-lhes qualquer coisa cuja ausência muito lastimo” dizia um, enquanto completava o outro: ”… e há neles também qualquer coisa demais, que muito me desagrada …”.[2]

De fato, homens como Vanderbilt, Henry Ford e Rockefeller eram indivíduos bastante diferenciados, completamente fora do montão comum, na expressão de Carl Spitteler. Eram visionários pois viam oportunidades, onde a maioria via apenas dificuldades; eram corajosos à beira da temeridade, diante de opositores e de concorrentes ferozes; e eram capazes de correr riscos mesmo diante da descrença generalizada. Pessoas com esse perfil despertam a admiração, mas costumam despertar também a inveja e, por vezes, até mesmo a ira. Desse modo, não parece nada estranho que seus nomes apareçam associados à ganância, à sede de poder e, frequentemente, ao desprezo pelo homem comum. Por outro lado – seja por peso na consciência, por sentimentos religiosos ou cívicos, ou até mesmo simplesmente para associar seus nomes com legados de benemerência e de generosidade – criaram fundações e programas para promover ações em favor de causas sociais, culturais e políticas de larga envergadura capazes de influenciar a nação e também o meio internacional.

O fato é que não se pode compreender a ascensão do poderio econômico americano sem considerar o papel central desempenhado por figuras como Andrew Carnegie, J. P. Morgan, Henry Ford, Cornelius Vanderbilt e John D. Rockefeller. Estes foram os “magnatas empreendedores” mais conhecidos, mas houve muitos outros que, embora não tenham ganhado tanta notoriedade e tanta riqueza, tiveram papel importante da trajetória do empreendedorismo nos EUA tais como Jay Gould, William Boeing, Walter Chrysler, Thomas Edison, Pierre S. Du Pont, Nikola Tesla, Philo Farnsworth, entre muitos outros. No Brasil, também houve grandes empreendedores como o Barão de Mauá e a geração de industrialistas como Francisco Matarazzo e outros líderes empresariais que fizeram de São Paulo um grande centro industrial, comercial e financeiro. Apesar de tudo, enquanto nos EUA continuam aparecendo figuras como Bill Gates, Jeff Bezos e Elon Musk, no Brasil das últimas décadas, a ausência do espírito empreendedor se reflete no baixo dinamismo da atividade industrial e empreendedora. Nestas duas primeiras décadas do novo milênio a economia brasileira voltou a ser predominantemente agro-exportadora, deixando de ser destaque em qualquer ramo industrial e a economia brasileira como um todo tem crescido, infelizmente, a taxas inferiores à média mundial[3].

A sociologia e a economia do empreendedorismo

O conceito de empreendedorismo no sentido econômico e sociológico disseminou-se a partir das reflexões de Joseph A, Schumpeter (1883-1945) que, arguto observador da história e dos acontecimentos à sua volta, em 1942, publicou o livro Capitalismo, Socialismo e Democracia.[4] Nessa obra reuniu suas observações extraídas particularmente do empreendedorismo na história econômica americana, e formulou a Teoria da Destruição Criativa que, no entender de Schumpeter, constitui um fato essencial que orienta a lógica do capitalismo. Para o autor, a lógica da destruição criativa, que valoriza a inovação e o empreendedorismo, estabelece o ambiente de estímulos e de desafios dentro do qual toda empresa tem de viver e de criar seus produtos e serviços por meio dos quais definem seu sucesso ou seu fracasso.

Para Schumpeter, a economia cresce e se transforma por meio da sucessão de ciclos econômicos caracterizados por padrões dominantes no consumo de produtos e de serviços produzidos utilizando determinados métodos e formas de organizar e de realizar a produção desses bens e serviços. Dessa forma, Schumpeter concluiu que, depois de algum tempo, tanto os produtos quanto a forma de produzi-los tendem a se disseminar por toda a economia, e tendem também a formar estruturas institucionais como monopólios e sindicatos (patronais e de trabalhadores) que, por natureza, são forças conservadoras no sentido de que são forças econômicas e políticas que procuram, a todo custo, manter seus ganhos, seus empregos, e seus padrões de negócios produzindo, dessa forma, um ambiente de baixo crescimento tendente à estagnação. Nesse quadro, o empreendedorismo emerge como a força capaz de romper o ambiente de estagnação ao introduzir inovações ousadas, fora dos padrões predominantes. Tais inovações podem ocorrer na criação de novos produtos e serviços, na caracterização e na qualidade de bens e serviços a ponto de poderem ser considerados distintos dos tradicionais, ou podem ainda ser inovadores na maneira de produzi-los com novos métodos, com novos equipamentos ou insumos e, sobretudo, com novos patamares de eficiência econômica.

Vale notar que Schumpeter foi um leitor voraz de Karl Marx porque, entre outras razões, tal como Marx, ele próprio tinha uma visão de que o capitalismo poderia chegar ao esgotamento e ao colapso e, incomodado, procurava possíveis respostas que pudessem evitar esse colapso. Assim, torna-se compreensível o fato de que a expressão “destruição criativa” tenha sido uma expressão criada por Karl Marx, mas reinterpretada por Schumpeter, que afirma: “esse processo de destruição criativa é o fato essencial do capitalismo. O capitalismo consiste nesse processo e é nele que toda empresa capitalista tem que viver”.[5]

Considerando esse fato, pode-se entender também por que Schumpeter foi quem percebeu o potencial teórico contido no trabalho realizado por Nikolai Kondratiev (1898-1938) que, apesar de ter sido detido após a Revolução de 1917 por ter sido colaborador do regime de Kerensky, Kondratiev revelou-se partidário dos bolcheviques e, assim, pôde prosseguir sua carreira de professor e de teórico do planejamento econômico[6]. Foi assim que desenvolveu de forma pioneira seu conceito de “ciclos econômicos” como parte de seus trabalhos de pesquisa e de aplicação da estatística econômica no Instituto de Conjuntura de Moscou e no programa NEP (New Economic Policy) criados por Lênin (1870-1924). Os biógrafos de Lênin observam que suas crenças se aproximavam das visões de Kondratiev no sentido de que o coletivismo poderia, de alguma forma, se combinar com as leis de mercado. No entanto, em fins da década de 1920, o conceito de ciclos econômicos que, na essência, em termos teóricos estendia as perspectivas de duração do capitalismo, iria se revelar perturbador para a linha mais ortodoxa dos bolchevistas. Com efeito, sua teoria dos ciclos econômicos foi motivo de grande controvérsia no âmbito do NEP e do Instituto de Conjuntura de Moscou e, entre os opositores, estavam os economistas do Partido Comunista mais à esquerda, além de algumas importantes lideranças como Leon Trotsky (1879-1940), que tinham suas próprias teorias e explicações sobre o colapso do capitalismo. O fato é que Kondratiev “caiu em desgraça”, sendo preso em 1930 e executado em 1938.

Schumpeter foi quem resgatou esse trabalho de reflexão e análise de Kondratiev e deu ao conceito de “ciclos econômicos” as dimensões que depois assumiu na trajetória do pensamento econômico. Na realidade, ao associar esse conceito com o de empreendedorismo, Schumpeter foi além, preenchendo uma lacuna teórica e doutrinária para os debates sobre o funcionamento e as perspectivas de longo prazo do capitalismo e da própria democracia, que estavam sendo postos à prova pela grande crise econômica desencadeada em 1929. Com efeito, uma das interpretações da crise era aquela oferecida pelo marxismo tradicional, que dizia que o colapso do capitalismo se daria por uma crise generalizada de superprodução. Os capitalistas, proprietários dos meios de produção, produziriam quantidades crescentes de bens, mas o povo, isto é, o mercado, cada vez mais empobrecido, não teria recursos para adquirir esses bens e, de fato, se forem tomadas as cifras do período, efetivamente, nos primeiros anos da década de 1930, de um lado, nos mercados de commodities, formavam-se grandes estoques de excedentes de produção enquanto, por outro lado, o desemprego de fatores era crescente nas principais economias do mundo.

No curto prazo, pode-se dizer que os efeitos da crise foram atenuados pela adoção de medidas pelos governos inspirados pelo emergente pensamento keynesiano na economia, procurando incentivar a demanda ao invés de tentar controlar a oferta de bens, uma vez que, no início dos anos 1930, na maioria das economias boa parte da produção se transformava em crescentes estoques. Apesar de tudo, no longo prazo, a prática iria mostrar que as visões de Schumpeter sobre os ciclos econômicos e o empreendedorismo é que comandariam o crescimento e as transformações mais essenciais e duradouras nas economias. De fato, os programas de desenvolvimento patrocinados com recursos públicos ajudaram na reconstrução econômica nos primeiros anos do pós-guerra, mas foi a massa de inovações tecnológicas introduzidas nas economias que afastou de vez a perspectiva de uma crise com amplitude e profundidade capazes de ameaçar a sanidade das economias de mercado e o próprio destino do capitalismo. As primeiras ondas de inovação tecnológica resultaram da própria mobilização provocada pela Segunda Guerra Mundial e se estenderam por sucessivas ondas de inovações estimuladas pelo ambiente do pós-guerra cujas demandas por consumo eram crescentes e pelas iniciativas de aplicar materiais e recursos tecnológicos utilizados na guerra.

Adicionalmente, pode-se dizer que a inovação e o empreendedorismo, em razão de sua sistemática associação com o aumento da produção e da produtividade, contribuíam sistematicamente para reduzir a ameaça do colapso do capitalismo. Nesse aspecto, um dos casos mais notáveis do empreendedorismo americano foi, sem dúvida, o de Henry Ford que, em 1913, ao implantar o sistema de fabricação de seu Ford Modelo T, inspirado no processo de fabricação dos revólveres Colt e das máquinas de costura Singer, implantou a “linha de montagem” e a “produção em série”, provocando uma verdadeira revolução na indústria automobilística. Ao implantar esse processo de fabricação, a produtividade aumentava e os custos se reduziam de forma substancial e, como resultado, os preços do automóvel puderam baixar a ponto de torná-lo um bem praticamente acessível até mesmo para seus operários o que, de certa forma, contestava na prática o pressuposto marxista de que no capitalismo os operários fabricavam bens que jamais teriam condições de usar e de consumir.

O lado institucional do empreendedorismo

No quarto de século que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial as ondas de inovações tecnológicas contavam a seu favor com o reforço representado pelo fato de que apenas a sociedade americana era, efetivamente, uma sociedade de consumo de massa e, assim, havia uma enorme quantidade de produtos, como os eletrodomésticos, que ainda não faziam parte do modo de vida das pessoas na grande maioria dos países[7]. Dessa forma, havia na economia mundial um enorme potencial de expansão de mercado representado tanto pelas economias europeias e japonesa, que se recuperavam rapidamente da destruição provocada pela guerra, quanto pelas nações periféricas, que começavam a ser chamadas de “países em desenvolvimento”, e que estavam ansiosas pela modernização representada pela incorporação dos padrões de consumo da sociedade americana.

O fato é que a parte mais visível do empreendedorismo aparece na forma de criação de produtos e de serviços, que passam a tornar-se parte do modo de vida das pessoas. Nesse sentido, o empreendedorismo americano foi responsável por transformar substancialmente o modo de vida na modernidade em toda parte introduzindo uma enorme variedade de bens de consumo no cotidiano das sociedades. Esse fato pode ser visto em áreas como a cultura, por exemplo, sobre a qual houve o enorme impacto resultante do desenvolvimento da indústria do cinema e da popularização de bens como o telefone, o rádio e, em seguida, a televisão. Foi o empreendedorismo americano que influenciou de forma notável o comportamento social ao introduzir conceitos como o de fast food e de shopping mall, e ao popularizar, por meio da tecnologia, o turismo e as viagens aéreas, além das construções de grandes edifícios para abrigar escritórios, hospedagens e moradias. Também na esfera do cotidiano, a influência dos empreendedores americanos aparecia na forma de disseminação no uso do automóvel e de eletrodomésticos como as máquinas de lavar roupas, os refrigeradores e os fornos de micro-ondas, além de uma miríade de produtos como pasta de dentes, loções diversas, secadores de cabelo etc., que hoje fazem parte do uso diário das pessoas em toda parte. Nos anos mais recentes, esse empreendedorismo, liderado pelas fábricas de tecnologia do “Vale do Silício”, continuou trazendo modificações profundas no comportamento e no cotidiano das pessoas ao introduzir a vasta gama de novos produtos e de novos serviços associados à eletrônica, às tecnologias das comunicações e à economia digital. Claramente nesse processo, embora outras sociedades no mundo tenham passado a participar ativamente também das inovações, em larga medida, o epicentro do empreendedorismo ainda tem permanecido nos EUA.

Nesta breve reflexão, no entanto, pareceu importante incluir também uma faceta do espírito empreendedor manifesto em aspectos sociais e institucionais que, embora não sejam tão visíveis quanto as viagens de avião e os telefones celulares, talvez ajudem a compreender melhor essa centralidade das inovações na sociedade americana. Durante a Revolução Industrial sob a liderança britânica, a inovação tecnológica ocorria basicamente por um processo muito dispendioso tanto do ponto de vista econômico quanto social. Uma nova tecnologia era implantada pela criação de uma empresa que se dedicaria a explorar as vantagens decorrentes da invenção de um novo produto ou de uma nova máquina, cuja patente dava ao seu criador o direito de exclusividade na exploração das vantagens e ganhos dessa nova tecnologia. O surgimento de uma nova invenção que tornasse obsoleta a tecnologia corrente, inevitavelmente, resultaria na falência de empresas associadas à tecnologia que acabava de ser superada. Obviamente, o resultado desse processo não era danoso apenas para os proprietários de fábricas que eram levados à falência, mas era danoso também para os trabalhadores que perdiam seus empregos e, por vezes, danoso até para a cidade, que sentia os efeitos do colapso daquela grande indústria.

Nesse ambiente de grande competição pelo futuro dos mercados, as grandes empresas industriais dos EUA inovaram também ao trazer a função inovação tecnológica para dentro da empresa, criando departamentos de pesquisa e desenvolvimento (P&D). Assim, esses departamentos de P&D eram, na verdade, laboratórios experimentais equipados com amplos recursos, que incluíam equipamentos para testes variados e, principalmente, pessoal altamente preparado e especializado, na realidade verdadeiros cientistas da Física, da Matemática, da Engenharia, e de outros campos do conhecimento. Esses laboratórios deveriam trabalhar para aprimorar e para desenvolver produtos e processos em seu campo de produção industrial. Em outras palavras, essas empresas industriais não ficariam à espera de que alguém (no país ou fora dele) desenvolvesse um processo de produção mais eficiente ou um produto com melhores características do que as de sua própria fábrica. Assim, a inovação tecnológica deixava de ser processada por meio do nascimento e morte de empresas ineficientes ou tecnologicamente ultrapassadas por empresas novas e mais eficientes. As empresas deveriam se renovar continuamente e serem, elas próprias, verdadeiros agentes de mudança.

Um caso emblemático foi o de Karl Steinmetz (1865-1923), que ficou mais conhecido como Charles Protheus. Ele era muito mais cientista do que engenheiro. Foi contratado pela General Electric em 1893 e trabalhou o resto de sua vida nessa indústria. Steinmetz deixou mais de 200 patentes registradas e foi o cérebro por trás da tecnologia da produção de grandes geradores e de dispositivos que passaram a equipar sistemas que demandavam a produção e o manejo de eletricidade em grande escala, tais como iluminação pública, indústria pesada, sistemas de transporte etc. Tanto nos EUA quanto em outros países, gradativamente, a percepção de que a pesquisa tecnológica deveria ser incorporada pelas próprias empresas industriais foi ganhando espaço e, com o tempo, a prática de estabelecer departamentos de P&D passou a ser adotada em toda grande indústria como parte do processo de produção industrial. Era a forma mais segura de manter a indústria no mercado, que se tornava cada vez mais competitivo em termos de tecnologia. Algumas empresas americanas notáveis que estabeleceram departamentos de P&D foram: Bell Telephone (1877); Du Pont de Nemours (1885); Union Carbide (1891); Colgate (1897); Dow Chemicals (1897); General Electric (1900); Westinghouse (1902); US Steel (1908).

Também foi nos EUA que surgiram os primeiros laboratórios organizados na forma de empresas especializadas no desenvolvimento, no manejo de tecnologias e na assistência à indústria em matéria de metrologia e de normas técnicas. Thomas Edison (1847-1931) foi uma figura pioneira e emblemática nesse processo. Em 1875, Thomas Edison adquiriu um lote de terras em Menlo Park, na Califórnia, onde construiu sua casa e, ao lado, construiu as instalações laboratoriais para realizar seus estudos e experimentos. Nessas instalações pôde desenvolver seus trabalhos no campo da eletricidade, que incluía a telegrafia e o rádio, além dos experimentos pioneiros com a fotografia, o fonógrafo e o cinema. Quando faleceu, em 1931, Thomas Edison tinha mais de mil patentes registradas. Em certa medida, Nikola Tesla (1856-1943) desenvolveu algo parecido, mas não de forma tão estruturada e tão organizada como fizera Thomas Edison. Na realidade, como suas atenções estavam centradas na produção e no aproveitamento da eletricidade, por um certo tempo trabalhou para Thomas Edison, antes de tornar-se um competidor formidável, uma vez que suas visões sobre corrente contínua e corrente alternada diferiam bastante das teorias de Thomas Edison.

A ideia de que a tecnologia podia ser tratada como um business útil e até lucrativo prosperou nos EUA e uma das iniciativas mais notáveis foi a que resultou, por exemplo, no Battelle Memorial Institute (Columbus, Ohio). No início da década de 1920 o industrialista Gordon Battelle, interessado em metais e, de forma mais ampla, na tecnologia dos materiais, começara a desenvolver pesquisas sistemáticas nesse campo, sob contrato com grandes empresas. Sua mãe Annie Maude Battelle – uma ativista atuante de causas políticas e sociais – foi, na verdade, a figura chave na criação do Battelle Memorial Institute. Com efeito, ao falecer em 1925, deixou uma considerável fortuna que serviria de base para a criação de um laboratório científico e tecnológico. Assim, em 1929, oficialmente o Battelle Memorial Institute abria suas portas como uma empresa laboratorial capaz de, sob contrato, oferecer serviços de pesquisa e desenvolvimento (P&D) em áreas científicas emergentes e seus potenciais desdobramentos em novas tecnologias. Hoje, o Battelle Memorial Institute é um laboratório científico e tecnológico reconhecido mundialmente e oferece serviços em muitas áreas que vão dos estudos ambientais, energias renováveis a áreas de saúde e de tecnologias na agricultura.

Ainda explorando a existência nos EUA de uma disposição para um empreendedorismo ativo, criativo e sobretudo sensível às demandas de um ambiente de negócios extremamente dinâmico, vale lembrar que, no mundo financeiro, foi nos EUA que nasceram as organizações voltadas para o estudo e o monitoramento dos negócios e do comportamento financeiro dos governos. A sanidade e, consequentemente, a confiança no mercado financeiro constitui uma faceta importante para o empreendedorismo e para o processo de inovação tecnológica. As agências de monitoramento de risco financeiro, apesar de terem sido criadas entre os fins do século XIX e início do século XX, começaram a se popularizar no mundo somente após as consequências financeiras internacionais trazidas pela crise do petróleo da década de 1970, mas tornaram-se realmente conhecidas, principalmente, após a grande crise financeira de 2008, que ficou conhecida como a crise do subprime, tendo sido desencadeada pela “bolha financeira” do mercado imobiliário americano.

Um ambiente de negócios feito de empreendedores que investem e arriscam suas poupanças e seus recursos financeiros, necessita de serviços de monitoramento da situação financeira e das tendências observáveis no comportamento das empresas, dos mercados e também dos governos, que podem exercer alguma influência sobre as preferências e sobre os riscos envolvidos nos negócios. Desse modo, tendo em vista essas preocupações, era natural que surgissem no mercado financeiro americano as agências de classificação de riscos financeiros, como empresas privadas e independentes, que se propõem a estudar os riscos envolvidos nos ativos comercializados nos mercados financeiros e dar alguma segurança para ajudar o investidor (empresa ou indivíduo) a escolher onde vai colocar suas poupanças. Além disso, nos EUA desenvolveu-se bastante a prática de acordos genericamente denominados joint ventures que, como a própria expressão diz, uma empresa se junta com outra empresa para explorar futuros negócios, que podem ser para lançar conjuntamente um novo produto, para expandir mercados, para extrair vantagens e explorar possibilidades de inventos etc. Em outras palavras, há muitas circunstâncias nos dias de hoje em que o melhor conhecimento do ambiente de negócios e das entidades que nele atuam constitui fator crucial para o sucesso de qualquer empreendimento, especialmente em se tratando de algum empreendimento inovador.

Na realidade, as empresas de classificação de risco financeiro começaram como empresas que coletavam dados estatísticos sobre o comportamento de ações e de outros ativos financeiros publicando-os de forma organizada. Os registros mostram que a prática de organizar os dados coletados na forma de ratings teve início em 1924 por iniciativa de John Knowles Fitch. As empresas de classificação de risco mais conhecidas e mais antigas são americanas e são chamadas de Big Three. A mais antiga delas (Standard & Poor’s) tem suas origens na década de 1860, quando publicou dados e análises sobre as Railroads Companies; em 1906 Luther Lee Blake fundou a Standard Statistics Bureau, até que em 1941, Paul T. Babson adquiriu a Poor’s Publishing criando, finalmente, a Standard & Poor’s Co. A segunda empresa do ramo é a Moody’s Investors Service. Mais conhecida simplesmente como Moody’s foi fundada em 1909 por John Moody com o objetivo de produzir estatísticas sobre o comportamento de ativos financeiros e, em 1975, foi reconhecida pelo U.S. Securities and Exchange Commission como organização nacional de financial rating, tornando-se uma empresa independente apenas no ano 2000 depois de ter feito parte, por anos, da companhia Dun & Bradstreet. A Fitch Ratings foi fundada nas vésperas do Natal de 1914 em Nova York por John Knowles Fitch, sob a denominação de Fitch Publishing Company, mas a sua denominação atual só viria em 1989 e, na década seguinte, a empresa passou a contar também com uma sede em Londres.

O fato é que, hoje, os trabalhos dessas agências são importantes e reconhecidos globalmente avaliando os riscos e estabelecendo graus de investimento para agentes econômicos privados, especialmente bancos, fundos de investimentos e outros agentes que atuam nos mercados financeiros. Para os agentes privados, as preocupações tendem a se concentrar nas tendências de ganhos e de riscos de perdas possíveis no comportamento dos ativos financeiros. Recentemente, no entanto, tendo em vista a crescente participação de atores estatais nos mercados financeiros, essas agências de rating também se tornaram elementos importantes na avaliação de empresas e instituições públicas e até de governos que atuam de forma ativa nos mercados de ativos financeiros internacionais. Neste caso, a preocupação mais relevante refere-se principalmente à capacidade dessas entidades públicas (incluindo governos) no sentido de honrar compromissos financeiros assumidos, seja nos mercados financeiros privados ou junto a outros governos e junto a organizações internacionais que operam linhas de crédito como o Banco Mundial.

Por que o empreendedorismo se desenvolveu mais nos EUA?

A resposta mais tentadora, embora imprecisa, poderia ser a de que o empreendedorismo e a inovação estariam no “DNA” da sociedade americana. Mesmo que uma afirmação como essa não possa ser feita “cientificamente”, é fato que na história americana muitos acontecimentos parecem sugerir que uma percepção nessa direção não seria um exagero ou uma afirmação vazia. Além dos muitos casos de grandes empreendedores que inovaram e reconfiguraram a indústria e os mercados, como os já relatados ao longo da presente análise, vale lembrar que houve várias decisões e iniciativas cruciais na esfera da política nas quais o conteúdo foi notavelmente inovador e ajudaram a conformar o modo de vida e os padrões de comportamento da sociedade americana, e do mundo.

Em primeiro lugar, a história política mostra que não seria exagero afirmar que o próprio governo americano, desde sua concepção, trazia em si a marca da inovação. Os conceitos e as ideias de democracia e de república foram formulados e já haviam sido amplamente discutidos por notáveis pensadores desde a Antiguidade, mas a concepção de uma república democrática presidencialista surgiu, de fato, apenas na constituição promulgada em 1787, na qual se criava o primeiro Estado Nação governado por um sistema presidencialista moderno. Da mesma forma que na indústria, onde muitas inovações tecnológicas notáveis surgiram de combinações e de arranjos inéditos de elementos presentes na natureza desde o início dos tempos, é possível dizer que, na esfera da sociologia política é um notável feito conseguir juntar, em uma solução viável na prática social e política, as inúmeras possibilidades presentes nos conceitos e nas teorias que a filosofia política denomina genericamente de democracia. Foi o que fizeram os “Pais Fundadores” ao conceber o sistema presidencialista americano que, dois séculos depois, ainda continua vivo em sua essência e, em torno do qual, se construiu os Estados Unidos da América como uma grande sociedade livre e uma incomparável potência econômica e estratégica. Na realidade, a própria formação e organização de um Estado Nação em torno de um contrato formal – uma constituição – estabelecido sobre uma visão filosófica da ordem política foi uma notável inovação.

Sob o ponto de vista da inovação e do empreendedorismo, um elemento importante presente na constituição americana é o fato de que, ao se concentrar em princípios e não em disputas e questões sobre fatos correntes, a constituição não favorece a judicialização da convivência social ou mesmo das disputas no âmbito da ordem política. Trata-se de um aspecto importante, uma vez que a judicialização, em qualquer lugar, opera como um obstáculo a qualquer iniciativa, especialmente daquelas cujo conteúdo pode ser mais inovador. Em toda parte, processos judiciais tendem a ser lentos e complicados, e esse fato já seria suficiente para que a judicialização opere como elemento complicador para o desenvolvimento dos negócios, para os quais tempo, prazos e oportunidades podem ser determinantes para o seu sucesso. Além disso, implícito no fato de a constituição se concentrar em princípios gerais como liberdade e direitos individuais e coletivos, as questões judiciais tendem a se concentrar em fatos e em desdobramentos observáveis na prática e não em probabilidades e em possibilidades potencialmente presentes em qualquer iniciativa. Obviamente esses aspectos também dependem das forças que comandam as instituições e as próprias autoridades judiciárias que, no caso americano, em larga medida, estão ancoradas na tradição que coloca o interesse público em primeiro lugar.

Um caso notável de inovação na política pelo governo dos EUA foi a decisão de promover a industrialização da nação. É bastante conhecida a história de que Alexander Hamilton (1757-1804), por solicitação do presidente George Washington (1732-1799), produziu o Report on the Subject of Manufactures (1791), no qual argumentava que a indústria moldaria o futuro das nações, a começar pela segurança estratégica, e que, além disso, a prosperidade era mais fácil de ser alcançada com a industrialização mesmo para uma nação agrícola, rica em recursos naturais, como era o caso dos EUA. Tratava-se de uma proposta realmente inovadora pois, nos fins do século XVIII, a indústria no mundo ainda dava os seus primeiros passos e o pensamento predominante na economia era a fisiocracia que valorizava a natureza e a centralidade da terra como fator de produção[8]. Somente a Guerra de 1812 contra os ingleses, a expansão para o Oeste e, mais tarde, a Guerra Civil (1861- 1865), iriam reforçar de forma substancial a ideia de que, sob qualquer ângulo, a industrialização era realmente uma componente estratégica de primeira grandeza para o futuro da economia e também para o poder nacional. Nesse ambiente, mesmo diante da oposição de notáveis lideranças como Thomas Jefferson, o governo de George Washington não apenas passou a não colocar obstáculos à industrialização, mas passou, de fato, a apoiar iniciativas de industrialização[9].

Outro exemplo de iniciativa governamental inovadora, que seria de grande repercussão para o ambientalismo que emergiria com força apenas um século mais tarde, foi a decisão de criar Parque Nacional de Yellowstone pelo presidente Ulysses Grant em 1872, criando o primeiro parque nacional como área natural protegida. Na história americana há muitos outros casos de decisões inovadoras que deram novos rumos à política e à sociedade, como foi a criação das primeiras leis “anti-truste”[10].  Talvez um dos casos mais notáveis em matéria de políticas públicas inovadoras tenha sido o do New Deal, que marcou o início da recuperação econômica dos EUA na grande crise da década de 1930. Nos primeiros anos da crise desencadeada a partir do colapso da Bolsa de Valores de Nova York em 1929, os governos, inclusive dos EUA, puseram em prática medidas econômicas típicas do pensamento liberal tradicional, que era predominante na época. O New Deal trazia mais do que um conjunto de medidas inéditas em matéria de política econômica, mas antecipava a própria teoria econômica. Com efeito, como já mencionado anteriormente, em 1933, em sua posse, o presidente Franklin D. Roosevelt anunciou o plano de recuperação econômica que ficou conhecido como New Deal baseado no que, mais tarde, viria a ser chamado de pensamento keynesiano. Ou seja, na realidade o New Deal foi lançado três anos antes da General Theory of Employment, Interest and Money.[11] Entre as inovações notáveis implícitas no New Deal estava a introdução do entendimento de que, além das funções tradicionais como justiça, ordem pública e segurança, o Estado deveria usar seus recursos tanto como autoridade quanto como ator econômico para desempenhar, adicionalmente, o papel de estabilizador e de agente de promoção do crescimento das economias. Apesar da crítica dos liberais, que chamavam de “intervencionismo” a política do governo Roosevelt, em larga medida, é possível dizer que foram essas políticas que evitaram a formação de partidos políticos de tendência mais extremada nos EUA, diferentemente do que ocorria em outros países na Europa e outras regiões do mundo. Com efeito, nos EUA não surgiram forças políticas socialistas de “direita” e nem o partido comunista ganhou vigor suficiente para desafiar a democracia.

 O ambiente para a inovação e o empreendedorismo: uma reflexão final  

 A comparação é uma forma de conhecimento. A afirmação de que alguém é alto ou baixo ganha sentido somente quando se estabelece algum referencial, isto é, quando se compara com alguém ou com algum grupo de pessoas. Uma pessoa com estatura de 1,80 m é mais alta do que a média brasileira, que é de pouco mais de 1,70 m, mas pode ser considerada baixa se for um jogador de voleibol, que é um esporte onde a média de estatura dos atletas nos times profissionais masculinos já ultrapassa 1,90 m. A comparação também emerge como forma de conhecimento quando se compara as dimensões das populações, das economias, da renda, da produtividade etc. Uma pessoa rica ou uma sociedade produtiva no final do século XIX não podem ser comparadas com as listas de bilionários ou com as categorizações das economias feitas em nosso tempo, mas a comparação de indicadores sociais ou a observação da evolução desses indicadores pode ser um recurso útil e revelador das características e também das prioridades presentes em uma sociedade.

Muito embora não haja estudos estruturados especificamente a respeito de explicações sobre as diferenças nos níveis de dinamismo do empreendedorismo e das inovações tecnológicas, no entanto, diante do que foi exposto nesta análise, salta aos olhos o destaque dos EUA em relação ao resto do mundo. Assim, parece oportuno e útil fazer algumas considerações sobre essas diferenças. Em primeiro lugar, o dinamismo empreendedor associado com inovações tecnológicas não é um traço que pode ser associado apenas a indivíduos, pois constitui um fenômeno de natureza social. Obviamente, em qualquer lugar pode haver indivíduos criativos, de inteligência vigorosa e sempre dispostos a tomar iniciativa diante de obstáculos ou diante de novas oportunidades. No entanto, esse espírito inovador, essa inteligência criativa e esse impulso para a ação somente tenderão a produzir resultados com a amplitude discutida nesta análise, se houver um ambiente social que possa acolher e proporcionar os meios para que esse talento ou propensão para a inovação possa realmente desenvolver e realizar plenamente seu potencial.

A conhecida afirmação de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) de que “o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe” foi contraditada por muitos pensadores, entre eles Ralf Dahrendorf (1929-2009) que entendia que a sociedade era, de fato, o meio natural em que o ser humano deve viver e será no ambiente social que esse ser humano vai se tornar bom ou mau, pacífico ou violento, generoso ou egoísta, empreendedor ou acomodado. Nesse sentido, as instituições sociais (formais e informais) – que são criações humanas – é que vão proporcionar boa parte do ambiente em que o “homem natural” de Rousseau irá crescer e definir que tipo de destino poderá dar aos seus talentos e a seus impulsos para a ação. Dahrendorf argumenta que a liberdade é um forte impulso natural das pessoas, no entanto, o avanço das liberdades tende à anarquia e à anomia, formando um ambiente destrutivo para o próprio ser humano[12]. Em um ambiente de anarquia e anomia o ser humano passa a suspeitar de tudo e, afinal, torna-se violento. Serão as instituições sociais que irão produzir a ordem capaz de reduzir as razões de suspeição e, em consequência, tornar o ser humano menos propenso à violência, podendo dedicar seu tempo a muitas outras ocupações, que podem ir desde cultivar um campo fértil, criar obras de arte, e até investir tempo e recursos na exploração dos mistérios do espaço sideral.

A grande dificuldade reside no fato de que criar instituições adequadas é uma das tarefas mais complexas, tanto quanto realizar um bom governo. As combinações de possibilidades são inesgotáveis e mexem com sentimentos, com crenças e com percepções às vezes arraigadas em costumes antigos. Na ordem democrática, por exemplo, as instituições valorizam a liberdade mas, argumenta Dahrendorf, o avanço sem medidas da liberdade leva à anarquia e à anomia que, paradoxalmente, levam à violência e à supressão da própria liberdade. Filósofos e estudiosos da política dão a pista de que “a virtude está no meio”, na moderação, mas o grande problema é encontrar esse “caminho do meio” de que se fala desde Aristóteles. As sociedades democráticas levaram à modernidade disseminando o progresso e a popularização do bem-estar mas, lembra Dahrendorf “… em algum ponto, existe um limite, além do qual o custo da modernidade começa a ultrapassar os benefícios da modernidade”.[13]

Assim, não se trata apenas de criar incentivos e instituições que favoreçam o empreendedorismo e a inovação tecnológica. Trata-se de encontrar um equilíbrio sutil e muito complexo entre as várias instituições que compõem as sociedades livres, que vai além até mesmo do que se costumou chamar de “infraestrutura de ciência e tecnologia”. Um tal equilíbrio não pode depender apenas dos recursos financeiros dos governos, uma vez que, na maioria dos casos, os investimentos em ciência e tecnologia são de longo prazo ou simplesmente não se harmonizam com o “timing” dos governos que, nas sociedades democráticas, geralmente governos e partidos políticos são eleitos para períodos de quatro ou cinco anos. Em outras palavras, ações e iniciativas de governo, especialmente aquelas que dependem de dinheiro público, estão sujeitas à vontade do governante e do partido político no poder que, em princípio, permanecem por períodos limitados no poder.

Para utilizar uma linguagem técnica, as políticas de ciência e tecnologia devem ser formuladas como políticas de Estado e não de governo. Os governos geralmente têm preferências ideológicas e objetivos políticos, significando que o poder discricionário do governante pode ser utilizado para empenhar recursos públicos a partir da discriminação de ideologias e de grupos de interesse, o que, obviamente, não condiz com a natureza da ciência e da tecnologia. Nas ciências, uma das motivações mais importantes é a curiosidade científica e as descobertas mais importantes podem ocorrer até por acidente, além do trabalho investigativo sistemático e cuidadoso. Apesar de tudo, em ambos os casos, a pesquisa científica não combina com o roteiro típico do financiamento público no qual, em primeiro lugar, uma pesquisa para receber recursos públicos, precisa ser aprovada geralmente por um comitê composto por membros “amigáveis” ao governo, que deverá exigir que a proposta de pesquisa contenha uma descrição dos custos previstos e um cronograma de trabalho que inclui um plano de desembolso dos recursos públicos que vai receber. Quanto mais detalhada for a proposta de pesquisa, mais chances terá de receber a aprovação do comitê. No entanto, por natureza, a pesquisa científica convive com a imprevisibilidade tanto no que se refere aos meios, quanto em relação aos possíveis achados tornando, dessa forma, praticamente uma contradição tentar transformar um projeto de pesquisa científica em uma proposta de trabalho com cronogramas precisos e que, afinal, se encerra com o relatório dos achados importantes e com a prestação de contas.

Na tecnologia, por sua vez, o sucesso de qualquer projeto é medido pelas patentes registradas e pelos resultados (ou perspectivas de resultados) financeiros esperados. Historiadores da C&T mostram que nos EUA, tradicionalmente, apenas ¼ dos recursos gastos em C&T têm por origem os cofres públicos, enquanto em países como o Brasil a proporção é inversa, isto é, cerca de ¾ dos investimentos em ciência e tecnologia são feitos pelos governos federal, estaduais e até municipais[14].

No Brasil, talvez a maior dificuldade esteja na constituição vigente e no próprio sistema judiciário, que valorizam o corporativismo e fomentam a judicialização. A constituição, ao detalhar e indicar formalmente mais de 120 direitos individuais, sociais, trabalhistas e até sindicais do cidadão, declarando estarem esses direitos sob a responsabilidade do Estado, praticamente torna qualquer questão passível de judicialização[15]. Por exemplo, qualquer inovação tecnológica pode ser passível de judicialização, basta que um sindicato, uma ONG, ou mesmo um indivíduo entenda que aquela inovação poderá influir nas suas condições de emprego vigentes. A valorização do corporativismo, especialmente sindical, é visível também no fato de que o Brasil é um caso raro de país com uma Justiça do Trabalho institucionalizada. Encontrar o “caminho do meio” em um ambiente desses é muito difícil e, principalmente, muito dispendioso, tanto em termos de recursos quanto em termos de desperdício de tempo. Na realidade, sobretudo em questões de inovação e empreendedorismo, o custo em termos de tempo  desperdiçado é até mais crucial do que os gastos com advogados e com as demais “custas do processo”. Para o empreendimento inovador, gastar tempo com processos judiciais representa arriscar uma das dimensões mais preciosas que é a perda da oportunidade.

Mesmo no dia-a-dia da sociedade essas dificuldades ajudam a explicar por que o nível de eficiência de quaisquer obras públicas são muito mais dispendiosas no Brasil sobretudo em termos de tempo. Para se ter uma ideia da baixa eficiência das obras públicas no Brasil vale comparar o sistema de metrô de São Paulo com o de Seul, na Coreia do Sul. Ambos inauguraram a primeira linha de metrô em 1974 e servem a uma região metropolitana de mais de 20 milhões de pessoas. Hoje, a malha metroviária de São Paulo tem um total de 105 km, com 91 estações, ao passo que o metrô de Seul se estende por 289 km de trilhos e 275 estações, sendo considerado um dos melhores sistemas de metrô do mundo. O metrô de São Paulo, apesar de ser reconhecido como de boa qualidade, é claramente insuficiente. Basta, por exemplo, comparar com o sistema metroviário de Londres tem cerca de 400 km de extensão, e com o de Nova York de  368 km. Ao se observar a Coreia do Sul, outra pergunta inevitável é, por que, apesar de todas as condições geográficas, a indústria naval no Brasil não “decolou”, enquanto a Coreia do Sul tornou-se um dos maiores produtores de navios do mundo? Ou ainda, por que nos últimos 30 anos o PIB per capita da Coreia do Sul cresceu duas vezes mais do que o PIB per capita brasileiro?[16]

Dados como esses mostram que o ambiente institucional no Brasil é claramente hostil à inovação, ao empreendedorismo e até ao progresso, mostrando que o “caminho do meio” entre um ambiente de competição feroz e predatório e um quadro institucional que protege as tradições, os valores humanos e o próprio cidadão (inclusive de si mesmo) foi abandonado no Brasil claramente em favor de instituições hostis ao empreendedorismo e à inovação.

Vale lembrar a escritora Ayn Rand (1905-1982) que, no seu romance alegórico sobre a força e o caráter dos grandes empreendedores americanos comparou-os à figura mítica de Atlas que suporta o planeta Terra sobre seus ombros. No livro, os personagens são os industriais mais importantes e mais bem sucedidos, que decidem abandonar suas fortunas e a própria nação, como reação às agressivas regulações promovidas por um governo progressista e corrupto, que decide sobretaxar e regulamentar os cidadãos mais produtivos e mais inovadores, além de limitar as ações de suas empresas passando, dessa forma, a regular e a conter ostensivamente o ímpeto criador dos grandes empreendedores. A obra constrói uma versão distópica da sociedade americana, sendo publicada em 1957 e, apesar do momento de grande otimismo que vivia a nação americana, a obra fez grande sucesso junto ao público. Apesar de tudo, também recebeu muitas críticas, uma vez que carrega muito nas tintas tanto ao retratar a figura do empreendedor quanto do governo progressista[17]. Caso a trama do livro fosse transposta para o Brasil, muito provavelmente a maioria dos leitores não acharia que a autora teria carregado demais nas tintas. Além disso, no Brasil haveria uma razão adicional mais complicada e mais arraigada na cultura brasileira para ser resolvida: enquanto nos EUA o empresariado costuma ver com desconfiança o governo e procura viver tão longe quanto possível do governo, no Brasil, ocorre o oposto. O entendimento corrente é o de que é apenas o governo que investe no crescimento econômico. Quando um empresário, seja do campo ou da cidade, diz que vai investir, está dizendo, na realidade, que vai obter alguma linha de financiamento governamental. Até mesmo o pequeno empresário (no Brasil o termo empreendedorismo ficou restrito ao pequeno empresário) também é financiado direta ou indiretamente com recursos públicos. A tradução do livro de Ayn Rand para o português ao invés do título “A Revolta de Atlas” poderia ser mais apropriadamente intitulado “O Atlas Desanimado”.[18]

 

 

1] Aurélio Macedo é formado em Administração de Empresas com larga experiência no setor público. Foi servidor público na Prefeitura de Petrolina de 1982 a 2022, onde desempenhou funções na Secretaria de Educação e Cultura sendo também chefe de gabinete na Secretaria de Finanças. Em Brasília, passou a atuar na assessoria da Câmara dos Deputados e atualmente tem trabalhado como assessor técnico na Liderança do partido União Brasil.

[2] CARL SPITTELER, Prometeu e Epimeteu. Editora Opera Mundi, 1971 (pp. 49-50) a primeira edição é de 1871. Carl Spitteler era suíço e ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 1919.

[3] De acordo com dados do SISCOMEX, os cinco produtos mais exportados pelo Brasil são minério de ferro, soja, petróleo bruto, açúcares e melaços, e carne bovina. Esses cinco produtos responderam por 43% das exportações brasileiras em 2023 (Jan-Out). O caso da EMBRAER, obviamente, é uma notável exceção e mereceria uma reflexão à parte. Conforme dados do Banco Mundial, em duas décadas (2000- 2020), a economia mundial cresceu 151,75% enquanto o Brasil cresceu apenas 125, 79%.

[4] JOSEPH A. SCHUMPETER, Capitalism, Socialism, and Democracy. Harper & Brothers, 1942.

[5] Capitalism, Socialism, and Democracy. Edição da Taylor & Francis (e-Library), 2003, p. 83.

[6] Aleksander Kerensky chefiou o Governo Provisório da Rússia de junho até início de novembro de 1917, quando os bolcheviques comandados por Lênin o removeram do poder.

[7] Entre as obras notáveis da época estava o livro de W. W. ROSTOW (The Stages of Economic Growth, 1960) que argumentava que as economias avançavam por estágios e mostrava com dados que, à época, a economia americana era a única que havia atingido o estágio de economia de consumo de massa.

[8] Toda riqueza vem da terra, ensinavam os fisiocratas, com destaque para François Quesnay (1694-1774). À época as indústrias mais importantes eram as agroindústrias (laticínio, tecidos, vinho, carnes etc.) e o grande comércio lucrativo era de cana-de-açúcar, chá, especiarias e fumo.

[9] Vale notar que a grande maioria dos integrantes da classe política era composta de fazendeiros. Além de Thomas Jefferson e James Madison, o próprio George Washington era fazendeiro.

[10] A primeira lei anti-truste foi a Lei Sherman, de 1890, para proteger a existência de um ambiente de concorrência e evitar a formação de monopólios nos negócios.

[11] A crença geral é a de que políticas econômicas são construídas a partir de teorias econômicas estabelecidas e conhecidas mas, neste caso, é importante observar que o New Deal, foi lançado por F. D. Roosevelt na sua posse em março de 1933, enquanto a famosa obra de JOHN M. KEYNES, The General Theory of Employment, Interest and Money, na qual expõe as bases teóricas de seu pensamento econômico, foi publicada somente três anos depois, em 1936 pela Palgrave Macmillan.

[12] RALF DAHRENDORF, Buscando Rousseau, encontrando Hobbes. In A Lei e a Ordem (Fundação Friedrich Naumann/Inst. Tancredo Neves, 1987, pp.47-81).

[13] Ralf Dahrendorf, op. cit. P. 49.

[14] Nos EUA esses investimentos em C&T compreendem basicamente a manutenção de organizações de metrologia, de padrões industriais e de saúde pública, serviços de monitoramento do clima etc., que estão sob a autoridade do Estado, mas a parte mais substancial vai para a área de defesa, que produz “spin offs” que podem se transformar em inovações tecnológicas na indústria civil.

[15] Artigos 5º, 6º, 7º e 8º.

[16] De acordo com o Branco Mundial, em 1990 o PIB per capita brasileiro era de US$ 3.065 e o da Coreia do Sul US$ 6.610; em 2022 o PIB per capita brasileiro foi de US$ 8.917 enquanto o da Coreia Sul atingia US$ 32.422.

[17] AYN RAND, Atlas Shrugged (Randon House, 1957). Em nova edição brasileira de 2010, a obra foi traduzida como A Revolta de Atlas (Instituto Millenium).

[18] O termo shrugged na verdade indica o gesto de “encolher os ombros” num gesto de indiferença.

 

*Eiiti Sato, Dr. é formado em Economia (FAAP); mestre em Relações Internacionais (Universidade de Cambridge, U.K.), e doutor em Sociologia (USP). É professor do Instituto de Relações Internacionais da UnB, dedicando-se ao ensino e à reflexão sobre filosofia, teoria e história das Relações Internacionais. Foi diretor do Instituto de Relações Internacionais da UnB (2006-2014), e foi um dos fundadores da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI), tendo sido seu primeiro presidente (2005-2007).

 

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