A Lei de Say e o preocupante quadro fiscal brasileiro

 

“Uma das medidas essenciais para tirar o governo da rota do endividamento insustentável é a revisão das vinculações de despesas ao salário mínimo ou ao crescimento da receita.”

Marcos Mendes

 

Jean-Baptiste Say é, juntamente com Adam Smith, David Ricardo e Thomas Malthus,  um dos mais conhecidos economistas da Escola Clássica. Embora tenha diversas contribuições relevantes para a evolução da teoria econômica, sua fama se deve em grande parte à Lei dos Mercados, também conhecida como Lei de Say, cujo enunciado é: “A oferta cria sua própria procura”.

No meu livro Viagem pela economia, publicado em 2019 pelo Espaço Democrático, afirmo tratar-se de um enunciado simples e fácil de ser gravado, o que explica em grande parte, a razoável popularidade de seu autor. A meu juízo, no entanto, é muito mais do que isso. Say conseguiu, através desse enunciado aparentemente simples, tornar muito mais acessível a compreensão da tendência ao auto equilíbrio do sistema econômico capitalista, baseado no livre mercado, que permanecia obscura na complexa teoria da mão invisível de Adam Smith.

A figura 1, encontrada em diversos manuais de economia, permite visualizar – e assim compreender melhor – o significado da Lei dos Mercados, que é, em última instância, a explicação do funcionamento de um sistema econômico simples, em que a sociedade é dividida entre famílias e empresas. Na referida figura, observa-se que a economia funciona como uma interação entre dois fluxos: o real, representado pelo fluxo externo; e o monetário, representado pelo fluxo interno.

Figura 1

Interação dos fluxos real e monetário

No fluxo real, as famílias fornecem às empresas os fatores de produção que serão empregados na produção de bens e serviços a serem oferecidos para a satisfação das necessidades da população: a terra (recursos naturais), a mão-de-obra (trabalho) e o capital, que pode ser financeiro (dinheiro) ou empresarial (máquinas e instalações).

No fluxo monetário, as empresas remuneram os fatores de produção por meio de aluguéis para os donos de terras, salários para os trabalhadores, juros e dividendos para os capitalistas, gerando, assim, a renda necessária para a aquisição dos bens e serviços oferecidos às famílias.

Nessa interação dos dois fluxos, a oferta, que corresponde à análise da produção, tem um papel determinante. Se houver um aumento da produção de bens e serviços e, por conseguinte, um aumento da quantidade de fatores envolvidos na produção, mais gente estará empregada e, dessa forma, ao ser remunerada por sua participação no processo, estará auferindo renda com a qual poderá comprar uma quantidade maior de bens e serviços que estará sendo disponibilizada. Por outro lado, se houver uma redução do volume de produção, as empresas poderão ser obrigadas a desempregar fatores de produção, ocasionando uma redução do volume de remuneração das famílias e, por extensão, menos renda, suficiente apenas para a aquisição de uma quantidade menor de bens e serviços oferecida no mercado. A oferta, portanto, funciona como uma espécie de termômetro do funcionamento da economia. Quando se expande, permite uma expansão correspondente da demanda; quando se contrai, ocasiona uma contração correspondente da demanda. Dessa forma, a economia tende naturalmente à situação de equilíbrio.

Vale ressaltar dois aspectos: o primeiro é que esse modelo representa o funcionamento de um sistema econômico simplificado (que em macroeconomia é tratado como sistema de dois setores), que não considera nem o setor governo nem o setor externo (exportações e importações); o segundo é que o modelo supõe que toda a renda recebida pelas famílias será imediatamente utilizada na aquisição dos bens e serviços produzidos pelas empresas, de tal forma que o que se constitui em renda para as famílias corresponde à despesa (custos de produção) das empresas. Nesse sentido, o dinheiro vai das empresas para as famílias sob diferentes formas de remuneração dos fatores de produção, e retorna das famílias para as empresas quando cada membro dessas famílias, exercendo papéis alternativos no teatro da economia, atua como consumidor ou investidor, adquirindo os produtos oferecidos pelas empresas[1].

Em recente entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Eduardo Giannetti, um dos mais brilhantes e criativos economistas brasileiros, fez uma analogia que me pareceu muito oportuna para ilustrar o quadro fiscal cada vez mais preocupante da nossa economia. Na referida analogia, Giannetti afirmou que o Brasil “está amarrado a uma espécie de Lei de Say das finanças públicas”.

Enquanto na Lei de Say “a oferta cria sua própria procura”, na analogia feita por Giannetti para nossas finanças públicas, “a arrecadação cria sua própria despesa”.

Sendo assim, em razão das vinculações incluídas na Constituição de 1988[2] (18% da arrecadação federal está gasta obrigatoriamente em educação;  15% da receita tributária dos três níveis de governo está gasta em saúde) e do atrelamento do gasto obrigatório do governo ao salário mínimo, casos do benefícios previdenciários e assistenciais, chegamos a uma situação em que 91% dos gastos federais em 2025 é gasto obrigatório, restando apenas 9% para gastos discricionários, que incluem todo o investimento do setor público.

Em outras palavras, o dinheiro público já está gasto antes de ser arrecadado.

Da publicação do artigo de Eduardo Giannetti para cá, a situação se agravou, fato reconhecido por diversos economistas como José Roberto Mendonça de Barros, Roberto Macedo, Maílson da Nóbrega, Marcos Mendes, José Márcio Camargo, Sergio Vale, Marcos Lisboa, Felipe Salto e outros, que têm batido insistentemente na tecla de que se o Brasil não escapar dessa Lei de Say das finanças públicas, o quadro poderá ficar insustentável.

Tamanha sucessão de alertas parece estar provocando algumas ações no governo. Simone Tebet, ministra do Planejamento, tem defendido a necessidade de repensar as vinculações constitucionais e mecanismos automáticos de correção de Previdência e benefícios sociais. O próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad, percebendo que não dá para fazer frente à situação fiscal só pelo lado da arrecadação, tem se reunido com o presidente Lula com o objetivo de encontrar formas de reduzir despesas.

É  amplamente conhecida a relutância do presidente Lula em acatar sugestões relacionadas ao corte de gastos. Diante, porém, do quadro fiscal cada vez mais complicado e da notória perda de popularidade do governo, talvez saia alguma ação efetiva − ainda que a fórceps − para minimizar o problema.

 

 

Referências

GIANNETTI. Eduardo. ‘Quadro fiscal parece cada vez mais preocupante’. Entrevista a Luiz Guilherme Gerbelli e Ricardo Grinbaum. O Estado de S. Paulo, 19 de maio de 2024, p. B4.

MACHADO, Luiz Alberto. Viagem pela economia. São Paulo: Scriptum, 2019.

 

[1] Esses dois aspectos conduzem a dois corolários que foram depois fonte de contundentes críticas à Lei dos Mercados. O primeiro aspecto supõe que o mercado é capaz de evitar uma crise geral da economia, já que o sistema econômico seria dotado da capacidade de se equilibrar automaticamente. A Grande Depressão da década de 1930 foi uma dura demonstração da possibilidade do contrário. O segundo aspecto supõe que o dinheiro (ou moeda) é simplesmente um meio de troca, não tendo influência direta no processo de produção e circulação. O economista inglês John Maynard Keynes foi um dos que melhor demonstrou as limitações da Lei dos Mercados, chamando a atenção para três vazamentos que impedem, na vida real, que a economia funcione em equilíbrio automático, como supunha Say, a poupança, os impostos, e o excesso de gastos com importações relativamente às receitas com exportações.  A partir desses vazamentos, propôs a mão visível do Estado para desempenhar o papel que a mão invisível do mercado não foi capaz de desempenhar satisfatoriamente.

[2] Os problemas decorrentes da vinculação de recursos estabelecida constitucionalmente foram  previstos por Ney Prado, secretário-geral da Comissão Afonso Arinos, conhecida como “comissão de notáveis”, criada em 1986 para elaborar um anteprojeto de Constituição nos livros Os notáveis erros dos notáveis e Razões das virtudes e vícios da Constituição de 1988.