Diplomacia

Por Humberto Pereira da Silva[1]

Diplomacia

Um dos nomes mais representativos do movimento de renovação do cinema alemão nas décadas de 1960 e 1970, Volker Schlöndorff se consagrou com a Palma de Ouro obtida em Cannes em 1979. A premiação de O Tambor, adaptado de livro homônimo de Günter Grass, realça a preocupação de cineastas daquele período com as feridas da Segunda Guerra. Schlöndorff, ao lado de Werner Fassbinder, toca num ponto delicadíssimo: a consciência da sociedade alemã frente ao nazismo e, com o fim da guerra, a necessidade de cauterizar as feridas.

Trinta e cinco anos depois, Schlöndorff volta a esse tema indigesto para o orgulho alemão com Diplomacia. Baseado numa peça do dramaturgo Cyril Gely, o filme trata do avanço das tropas aliadas para libertar Paris, portanto já no fim da guerra. Com a libertação eminente, o general que comanda Paris ocupada recebe ordens de Hitler para destruir completamente a cidade.

O episódio já havia sido retratado em filme anterior, Paris está em chamas? (1966), do francês René Clément. Faz um bom tempo; de qualquer forma, a novidade agora é para o olhar alemão. Um dado importante no filme atual está justamente no hiato temporal: por que recontar o evento tanto tempo depois? Os alemães ainda ressentem-se da tragédia nazista?

Diplomacia exibe um general alemão em suas dúvidas de consciência num momento crucial da guerra. Schlöndorff humaniza-o; mais que isso, desloca o drama coletivo com os horrores da guerra para o drama privado: a desobediência às ordens do führer traria consequências terríveis para sua família na Alemanha.

Esse modo de ver não necessariamente condiz com os acontecimentos. Razões pragmáticas nunca suficientemente esclarecidas podem ter demovido o general do intento de destruir Paris. O filme, contudo, traz à tona que a escalada da guerra impôs decisões que confrontavam a racionalidade burocrática do Reich e a consciência individual. A questão da culpa no plano dos indivíduos, portanto o sentimento de que estariam fazendo o mal, gera e gerará infindas polêmicas. Na filosofia o caso mais famoso foi abordado por Hannah Arendt em seu Eichmann em Jerusalém.

Se Diplomacia torna a um assunto delicado à alma alemã é porque de tempos em tempos faz-se imperioso recordar e reavaliar o que foi o nazismo. Todavia, o que se põe agora não é tanto a necessidade de revisionismo, mas alertar para a consciência de que a guerra envolveu muito mais que a expressão de bestialidade desmedida; ou seja, nossos instintos animalescos. Diplomacia não teve a fortuna crítica de O Tambor – os tempos são outros –, mas deve ser visto com toda a atenção porque, com foco na guerra, atualiza a discussão que opõe civilização e barbárie.

De fato, em Diplomacia praticamente não há cenas de embate. Algumas poucas são exibidas de modo indireto e, numa escolha feliz, em preto e branco. O centro da trama se dá no quartel general do militar que comada a cidade prestes a ser libertada. Nele, o encontro do militar belicoso incumbido de destruir a cidade e um improvável cônsul sueco. Não há registro histórico daquele invulgar encontro na situação do filme; conquanto valha frisar que a Suécia, para todos os efeitos, estava neutra na guerra.

Se não houve o encontro entre o comandante alemão em Paris e o cônsul sueco, isso não é relevante para se entender que ambos tratam do sentido da civilização frente às razões da guerra. O general justifica a destruição de Paris como uma espécie de retaliação ao que o exército vermelho fez com grandes cidades alemãs, inclusive Berlim. Para ele, é o preço a ser pago numa situação de guerra, visto que a insanidade humana não conseguiu evitá-la.

Na linha argumentativa do general, não só o dever se impõe, mas principalmente ele tenta mostrar que todos têm parcela de culpa num contexto em que a escalada dos acontecimentos faz dos atores no cenário de guerra meros fantoches. O cônsul, por sua vez, argumenta sobre a inutilidade da destruição de Paris, uma vez que a guerra estava perdida para os alemães. E o cônsul vai além, toca a consciência do militar para o fato de que Paris sendo destruída lhe caberia, enquanto indivíduo, prestar contas à história. Vale dizer: findada a guerra, com a Alemanha derrotada, ele seria o responsável pela destruição da cidade mais esplendorosa do mundo civilizado.

O vigor artístico em um filme como Diplomacia está na carga dramática com que os diálogos são encenados. Sabemos o resultado de antemão – o general cederia –, mas seu fundo moral reside no sentido da civilização e no acerto de contas com a história. Sob esse aspecto, Schlöndorff toma a catástrofe nazista para refletirmos sobre civilização e barbárie nos dias de hoje. Paris, que transpira ares de cultura e civilidade, foi alvo recente de atentados. Os posts que simbolizam a cidade não foram afetados, mas setenta e tantos anos após a Segunda Guerra é sintomático que esta cidade instigue atos que a levem à destruição.

Na terrível situação da Segunda Guerra, algo como uma contradição às avessas e a civilização venceu. Esta me parece ser a mensagem mais latente em Diplomacia. Não obstante, assistimos hoje a novos tempos nebulosos. Nesses novos tempos, símbolos do mundo civilizado estão em risco. Creio ser essa uma boa maneira para se apreciar mais uma guinada de Schlöndorff na cena histórica. A se lamentar que Diplomacia não tenha tido a repercussão a que faz jus.

[1]Humberto Pereira da Silva é professor de Filosofia no curso de Artes Visuais e de Técnicas de Pesquisa no de Economia na FAAP. Também exerce a atividade de crítico de cinema, sendo colunista regular da Revista de Cinema e do site Cinequanon. É autor dos livros Ir ao cinema: um olhar sobre filmes (Musa Editorial, 2006), Pragmática da linguagem e ensino de ética: quando dizer não é fazer (Paco Editorial, 2012) e Glauber Rocha: cinema, estética e revolução (Paco Editorial, 2016).