Trópicos utópicos

 

A que vem o Brasil, afinal como nação?

 

Trópicos Utópicos

Participando, tempos atrás, de um encontro de professores na FAAP, fui surpreendido, durante a exposição de um colega da Faculdade de Comunicação, Prof. Martin Cezar Feijó, quando ele se referiu a um livro intitulado Como falar dos livros que não lemos?

Refeito da surpresa, e percebendo que não se tratava de uma brincadeira, saí atrás do referido livro. Encontrei, adquiri, li e… nova surpresa: o livro é sério, escrito por um professor respeitável e, acima de tudo, seu conteúdo faz todo o sentido.

Pierre Bayard, o autor, aponta os diferentes graus em que podemos nos referir aos livros que lemos… e que não lemos.

Entre os primeiros, os que lemos, há os que nos marcam de alguma forma, razão pela qual nos lembramos deles com detalhes. Mas há também os que lemos e, passado algum tempo, deles esquecemos quase completamente.

Entre os segundos, os que não lemos, há alguns livros que apenas folheamos e ficamos com uma ideia vaga de seu teor. Mas há alguns que jamais chegaram às nossas mãos, porém, tanto lemos ou ouvimos referências e comentários sobre eles que acabamos podendo falar dos mesmos como se os tivéssemos lido.

Faço essa digressão em razão do recém-lançado Trópicos utópicos, de Eduardo Giannetti. O lançamento foi precedido de tantos artigos, resenhas e entrevistas com o autor, que, ao finalmente ler o livro, tinha já uma boa noção do que iria encontrar ao longo da leitura.

Vale avisar, desde logo, que todas as referências anteriores não reduziram em nada o prazer proporcionado, uma vez mais, pelo texto inteligente e pela análise abrangente e diferenciada de Eduardo Giannetti.

A exemplo do que pode ser visto em outros livros de Giannetti, há uma vastíssima coleção de fontes em que ele se baseia nas diferentes seções em que a obra se divide. Duas explicações me parecem necessárias para que se compreenda como ele consegue chegar a isso. Uma tem origem na sua sólida formação educacional e no interesse que mostrou, desde os primeiros anos de vida, pela leitura e por temas culturais.

A outra pode ser encontrada num trecho da matéria publicada no suplemento de fim de semana do Valor Econômico em sua edição de 1º de julho. Na referida matéria, a jornalista Cristiane Barbieri pergunta como é possível amarrar tantas ideias, usando, analisando e avançando sobre o sumo de pensadores múltiplos, na criação de uma obra sucinta e densa.

A resposta de Giannetti esclarece muito a respeito de seu método de trabalho e da abrangência de suas análises e teve origem durante a década de 1970 quando cursava economia de manhã e ciências sociais à tarde, ambos na USP, mas sentia que as ideias mais reflexivas e abstratas de sociologia e filosofia sumiam de sua cabeça em pouco tempo.

Um mês, dois meses depois de ter lido um livro, eu me perguntava o que tinha ficado e acabava arrasado, eu não me lembrava de quase nada. Passei, então, a anotar compulsivamente o que estava lendo, ou parafraseando ou copiando trechos muito bem resolvidos. Embora a leitura fosse lenta e penosa, eu me lembrava do texto muito tempo depois. […] Graças a Deus, comecei antes do computador!

Foi dessa forma que nasceu a coleção de cadernos, que hoje são mais de 60, que Giannetti utiliza para escrever seus livros. Como cada caderno tem um número e cada página também, ele é capaz de encontrar o que precisa e fazer a conexão das ideias de uma maneira relativamente simples. Tendo conhecimento disso, fica fácil entender como ele escreveu em 2008, O livro das citações, também publicado pela Companhia das Letras.

Caetano Veloso na quarta capa de Trópicos utópicos, afirma tratar-se de “um dos mais belos livros escritos sobre o Brasil, sem ser propriamente um livro sobre o Brasil. […] Giannetti, cujos livros, desde Vícios privados, benefícios públicos? (em que a ênfase recai sobre a interrogação), os brasileiros politizados deveriam ler antes de qualificá-lo como pertencente à malta ‘neoliberal’, chega aqui ao ápice de seu pensamento, um pensamento pacientemente desenvolvido. É uma redescoberta do Brasil que aguça a cabeça e comove o coração”.

Escrito como uma sucessão de seções – são 124 no total – o livro pode ser colocado, em minha opinião, entre as mais bem elaboradas interpretações da nação brasileira, ao lado de autores consagrados como Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro e Roberto DaMatta.

Partindo da premissa de que “o Brasil tem fome de futuro” (p.12), Giannetti divide o texto em quatro partes. Nas três primeiras, são abordados o que ele chama de “ídolos da modernidade”, respectivamente, a ciência, a tecnologia e o crescimento econômico, “e os impasses oriundos dos seus cultos”.

Nas duas primeiras dessas partes, fica nítida a sólida formação de Giannetti em filosofia, antropologia e sociologia, sem contar algumas considerações sobre biologia, o que exige do leitor não especializado uma redobrada atenção. Na terceira, Giannetti passeia, com a propriedade de quem se dedicou por muito tempo à história do pensamento econômico, pelas diferentes interpretações da economia e daquele que é, segundo Delfim Netto, seu objetivo fundamental: a promoção do crescimento econômico, indispensável para a promoção do mais amplo bem-estar social das populações. Nesse passeio, perpassa por clássicos como Adam Smith, Thomas Malthus, Karl Marx, John Stuart Mill, Alfred Marshall, chegando a autores que se debruçaram mais recentemente sobre o tema como John Maynard Keynes, Friedrich Hayek e Robert Fogel.

Na quarta parte, Giannetti desloca o foco para a questão nacional, procurando identificar a perspectiva brasileira que orienta a discussão da crise civilizatória. Também nessa parte, Giannetti recorre a intérpretes relevantes – e muitas vezes de visões conflitantes – da realidade brasileira, tais como Eugênio Gudin, Oswald de Andrade, Antonio Risério, além dos já mencionados Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro.

Na conclusão, apresentada na penúltima seção e intitulada Sonhar o Brasil, Giannetti “oferece um esboço de utopia do anacronismo-promessa chamado Brasil”.

Se o objetivo de um autor é provocar a reflexão dos leitores, Giannetti está de parabéns, pois consegue atingir seu objetivo por meio de uma crítica instigante às tentativas reducionistas e radicais de explicar um país com a complexidade do Brasil. Nada mais ilustrador dessa visão instigante do que a 124ª e última seção, intitulada A questão irrespondida: “Tupi, or not tupi that is the question” – propõe a conhecida fórmula antropofágica. “Tupi and not tupi” – eis a possível resposta.

Pelas razões aqui expressadas – e muitas outras que não caberiam num artigo dessa natureza – recomendo a todos a leitura integral do livro do Giannetti, evitando a tentação da não-leitura propugnada por Pierre Bayard. Um texto com tamanha riqueza e abrangência de ideias jamais poderá ser substituído pela leitura de artigos, resenhas ou entrevistas, por mais bem elaborados que sejam.

Referências e indicações bibliográficas

BAYARD, Pierre. Como falar dos livros que não lemos? Tradução de Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.

GIANNETTI, Eduardo. Vícios privados, benefícios públicos? A ética na riqueza das nações. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

_______________ O livro das citações: um breviário de ideias replicantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

_______________ Trópicos utópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

_______________ Utopia tropicalista. Entrevista a Jerônimo Teixeira. Veja, 29 de junho de 2016, pp. 17-21.

_______________ O profeta analítico. Entrevista a Cristiane Barbieri. Valor Econômico. Caderno Eu & Fim de Semana, 1 de julho de 2016, pp. 22-26.