Sicário: Terra de Ninguém

Por Humberto Pereira da Silva

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A ação dos cartéis que comandam o tráfico de drogas tem dado ensejo a ampla produção fílmica nos últimos anos. Os cinemas brasileiro, argentino, colombiano, mexicano não têm se intimidado com o tema e fazem dele matéria de filmes marcantes. Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, é uma das obras mais lembradas em todo o mundo quando se fala em cinema nacional e de certos aspectos da realidade do mundo das drogas em nosso país. Contando com elementos que apelam para a aceitação de público, o tema não foi descurado pelos estúdios de Hollywood: Sicário – Terra de Ninguém (2015), do canadense Denis Villeneuve, segue o filão e aborda o problema na fronteira entre o México e os Estados Unidos.

Sicário é um filme bem mais interessante naquilo que visa mostrar, sugere, indica do que se pensado como uma grande obra. Com efeito, trata-se de um filme cujo roteiro deixa lacunas, pontos sem nó que fazem a narrativa fluir de modo atordoante. Sob esse aspecto, importante frisar, a evolução dos acontecimentos se dispersa do foco, com isso personagens despontam, desaparecem ou mesmo perdem relevância sem razão notável no contexto da trama.

Mas, que história é contada em Sicário? O foco do filme é centrado inicialmente na agente do FBI Kate Macy. Na sequência inicial, ela participa de uma ação que invade de forma espetacular uma casa e desbarata uma quadrilha de traficantes perto de Phoenix, Arizona. Na casa, são descobertas dezenas de corpos cravados nas paredes. Em razão de sua participação na invasão da casa, ela e outro agente do FBI são chamados pelo Departamento de Defesa para uma empreitada mais delicada: fazer parte de uma força tarefa que busca o chefe do narcotráfico em Juarez, cidade do México na fronteira com os Estados Unidos.

O comando da força tarefa, no entanto, a mantém no escuro com respeito ao que farão para prender o narcotraficante. Ela e seu colega de FBI passam a se mover sem saber o porquê de suas ações nem por que a força tarefa lança mão de procedimentos à margem da lei. O que mais chama a atenção é seu olhar atônito, incrédulo, frente a situações que não entende. Ela procura explicações, mas seu chefe lhe responde com evasivas e a trata como se ela fosse uma ingênua literalmente perdida no meio de um tiroteio. O incômodo dela fica mais patente quando entra em cena Alejandro, interpretado por Benicio del Toro.

Alejandro é um personagem soturno, misterioso e violento. No início, sua função na empreitada é pouco definida. Aos poucos, no entanto, seu papel é revelado e ele se torna o eixo central dos acontecimentos do filme na sequência final. De modo sucinto, e relevante para a compreensão de Sicário, a relação entre Kate e Alejandro exibe polos opostos na compreensão de uma ação legal. Sem entrar em detalhes, o que se revela é que ele foi um promotor colombiano que na luta contra o narcotráfico teve a família assassinada. Sua tragédia pessoal o leva a uma postura cínica frente à legalidade institucional. Já Kate, até o final do filme, entende que a legalidade não pode ser transgredida, mesmo que justificada pela tragédia pessoal.

Em linhas gerais, essa é a sinopse de Sicário. Ocorre que outros personagens aparecem articulados de modo superficial na evolução dos acontecimentos. O mais notável é um sereno policial mexicano que joga futebol com o filho menor e que, forçado pelo determinismo social, se deixa corromper pelo narcotráfico. Como se o violento e indefinido mundo do tráfico exigisse espelhamento, do lado americano há um policial, que se envolve com Kate, trabalhando para o chefe do cartel de Juarez. O contexto em que esses personagens despontam – paralelo ao núcleo narrativo – é irrelevante, pois eles são apenas penduricalhos nas ações que envolvem Kate e Alejandro.

A se destacar, ainda, o colega de FBI que acompanha Kate. A partir de certo momento ele perde sua razão de ser e desaparece. Por fim, a prisão de um traficante em Juarez que revela como chegar ao paradeiro do chefão do cartel é espetacular, mas não vai além. Mostra apenas o sabido modo ilegal de a inteligência americana obter informações.  O que se visa aqui, de qualquer forma, é mostrar que o roteiro de Sicário se dispersa do eixo narrativo com personagens e tramas que, pouco adensadas e vagas, fornecem caricaturas. Nem de longe, como forma de expressão, Sicário propõe um painel com histórias paralelas sobre as sinuosas relações entre tráfico e agentes da polícia (a esse respeito, veja-se Traffic, de 2001, dirigido por Steven Soderbergh). Como acentuado, o filme gira em torno do confronto legalidade e ilegalidade, travado entre Kate e Alejandro.

Essas dissonâncias narrativas tornam Sicário um filme com enredo confuso; nesse sentido, fomenta comentários de que incita preconceitos sobre os mexicanos num momento em que o candidato republicano à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump, entoa discurso sobre a construção de um muro separando-os dos americanos. Com o suposto de exibir a promiscuidade entre agentes policiais dos dois lados da fronteira, Sicário igualmente instiga que sem o muro proposto por Trump a região fronteiriça está sob o risco de invasão de hordas mexicanas.

Se a obra Sicário revela problemas de enredo, há de se ter a devida ponderação com respeito ao que esse filme de Denis Villeneuve sugere. Ora, ao nos atermos ao desfecho desse filme, a indicação de que, na ilegalidade, se garante a segurança dos americanos. Alejandro diz a Kate que aquela é uma terra de lobos, sendo assim, cada um é lobo para o outro. Ela faria parte dos americanos que ignoram aquela realidade. Mas é da luta no escuro entre lobos que a parte da sociedade a qual ela pertence pode antever segurança, desde que, claro, a vitória final não seja do narcotráfico.

 Humberto Pereira da Silva

Humberto Pereira da Silva é professor de Filosofia no curso de Artes Visuais e de Técnicas de Pesquisa no de Economia na FAAP. Também exerce a atividade de crítico de cinema, sendo colunista regular da Revista de Cinema e do site Cinequanon. É autor dos livros “Ir ao cinema: um olhar sobre filmes” (Musa Editorial, 2006), “Pragmática da linguagem e ensino de ética: quando dizer não é fazer” (Paco Editorial, 2012) e “Glauber Rocha: cinema, estética e revolução” (Paco Editorial, 2016).