Ópera bufa

 

Que País é este?

 

“Assim, sob qualquer ângulo que se esteja situado para considerar esta

 questão, chega-se ao mesmo resultado execrável:o governo da imensa

maioria das massas populares se faz por uma minoria privilegiada.

Esta minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-á de operários.

Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem

governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários

e por-se-ão a observar o mundo proletário de cima do Estado; não mais

representarão o povo, mas a si mesmos e suas pretensões de governá-lo.

Quem duvida disso não conhece a natureza humana.”

Mikhail Bakunin

(Anarquista russo do século XIX, 1814-1876)

 

Confesso que tinha me programado para escrever sobre outro assunto, mas a seqüência e possível encadeamento de acontecimentos que tiveram lugar da quarta-feira, dia 22 até domingo, dia 26, foi de tal ordem que acabei deixando o tema inicialmente planejado para uma das próximas semanas.

Como o assunto que trato neste espaço é o da economia, vale destacar já de início que não existe nenhuma contradição ou interesse meu em invadir espaços alheios ao abordar alguns dos assuntos tratados a seguir. Há uma série de linhas de pesquisa na teoria econômica que chamam a atenção para a estreita relação entre a economia, o direito e a política, algumas das quais já abordadas por mim nesta mesma coluna, tais como a teoria da escolha pública, a teoria neoinstitucionalista (ou nova economia institucional) e a teoria do capital social. É com base nessa sustentação teórica que me arrisco a fazer os comentários que se seguem.

1º Ato – Assisto a um dos últimos capítulos da minissérie JK, transmitida pela Rede Globo, no qual são reproduzidas as sessões de interrogatório conduzidas por membros do Exército, nos vários IPMs (Inquérito Policial Militar) a que o então ex-presidente foi submetido. A truculência dos inquisidores e o desrespeito à dignidade humana mostrados pela televisão chocaram-me profundamente e me levaram a pensar: “Ainda bem que os tempos são outros e deixamos para trás esses tristes momentos em que a democracia não existia, os direitos humanos não eram respeitados e a sociedade não tinha como se fazer representar adequadamente perante os poderes constituídos”.

2º Ato – Imediatamente após o encerramento do capítulo, assisto à edição daquela noite do Jornal da Globo e fico sabendo que os dois deputados julgados naquele dia pelo envolvimento nos esquemas de corrupção já amplamente divulgados, Wanderval Santos (PL-SP) e João Magno (PT-MG), foram absolvidos pelo plenário da Câmara, embora tivessem suas cassações recomendadas pela Comissão de Ética. Protegidos pelo instituto do voto secreto, centenas de parlamentares votaram pela absolvição, não dando a menor atenção ao anseio da esmagadora maioria da sociedade – e, portanto, de muitos de seus eleitores, amplamente favoráveis à cassação do mandato de todos os envolvidos com os esquemas que se tornaram conhecidos como Mensalão, Valerioduto, Caixa 2 etc. Veio-me à cabeça o seguinte pensamento: “Será que as coisas mudaram mesmo tanto quanto eu havia imaginado? Que poder tem a sociedade de se fazer representar diante de tamanho desrespeito às suas opiniões por parte de seus pseudo-representantes?”

3º Ato – Para completar o escárnio, a deputada Ângela Guadagnin (PT-SP), que desde o início dos processos assumiu a condição de anjo da guarda dos deputados corruptos, saiu dançando pelas dependências do Plenário da Câmara assim que tomou conhecimento do resultado da votação de seu colega parlamentar. Senti aquilo como um verdadeiro tapa na cara. A cena, lamentável e grotesca, foi amplamente divulgada por todos os meios de comunicação, provocando, como não poderia deixar de ser, revolta em parcela considerável da população brasileira, que ficou indignada diante de tamanha desfaçatez e desapreço pela cidadania. Não bastasse o triste espetáculo por ela proporcionado, a referida deputada ainda ousou, no dia seguinte, debochar da inteligência dos brasileiros, dizendo em suas entrevistas que ela não havia dançado na véspera, havia apenas tido uma reação espontânea de contentamento na hora de cumprimentar seu “afortunado” colega de Parlamento. Pensei comigo: “Seria cômico se não fosse trágico”.

4º Ato – Tomo conhecimento de que a doméstica Angélica Aparecida de Souza Teodoro, de 18 anos, mãe de uma criança de dois anos de idade, foi finalmente libertada, depois de permanecer presa por mais de quatro meses no Cadeião de Pinheiros, onde foi mantida ao lado de presas acusadas de crimes hediondos e submetida a todo tipo de humilhação e violência psicológica. Sua prisão ocorreu no dia 16 de novembro do ano passado, quando foi detida em flagrante pela Polícia Militar, após ser descoberta pelo dono de um pequeno mercado furtando um pote de 200 gramas de manteiga, no valor de R$ 3,10. Na ocasião, ao ver o filho de 2 anos chorando de fome e a mãe doente, ela havia saído de casa disposta a “voltar com o café da manhã da família”. Dispunha de apenas R$ 20,00, e como o dinheiro não era suficiente para adquirir o mínimo de que necessitava, resolver roubar o pote de manteiga, ocultando-o sob o boné. Enquanto isso, parlamentares que confessadamente meteram a mão em milhões de reais não só não são presos, como ainda são beneficiados com a preservação de seus mandatos. Pergunto-me: “Onde está aquele princípio constitucional que afirma que todos são iguais perante a lei?”

5º Ato – Vem a público a notícia de que a Câmara dos Deputados aprovou reajuste de 15% a seus servidores e aumentou em 25% o número de funcionários por gabinete, num total de mais de 2.500 novas vagas, a um custo adicional de R$ 400 milhões/ano, numa avaliação bastante conservadora. Obviamente, essa conta terá de ser paga, mais cedo ou mais tarde, pelos contribuintes, pois como bem alertou Milton Friedman, o grande expoente da Escola de Chicago que ganhou o Prêmio Nobel de Economia de 1976: “Não existe almoço grátis”. Pego um gancho e fico imaginando: “Não é em razão de medidas como essa que a carga tributária não pára de crescer, batendo sucessivos recordes de arrecadação? Será que os contribuintes, eleitores, cidadãos (?) foram consultados sobre a real necessidade desses novos funcionários?”

6º Ato – Depois de mais de uma semana sem dar as caras em público, o ministro Antônio Palocci compareceu à solenidade de posse da nova diretoria da Câmara Americana de Comércio, na sexta-feira, dia 24 (três dias antes, portanto, de apresentar sua carta de afastamento). Em seu pronunciamento, disse, aparentando a maior inocência do mundo, não entender como era possível, com a economia voando em céu de brigadeiro, ele, o comandante da política econômica, estar atravessando momentos dignos do Inferno de Dante. Na mesma data, o caseiro da casa alugada em Brasília pelos antigos assessores de Palocci, batizada de “República de Ribeirão Preto”, depois de ter seu sigilo bancário quebrado ilegalmente por funcionários graduados da Caixa Econômica Federal, era submetido a interrogatório por suposto enriquecimento ilícito e provável lavagem de dinheiro. Não pude deixar de pensar na inversão de valores, até me deparar com o oportuno comentário do jornalista André Petry: “O governo do operário ético (Lulla) faz com o caseiro (Francenildo) tudo o que o governo corrupto desvairado (Collor) não ousou fazer com o motorista (Eriberto)”.

Foram tantas e tão seguidas as provações da semana, que não agüentei e resolvi aceitar a sugestão de minha mulher e passar um fim de semana longe de todas essas contradições que mexem com a cabeça da gente, num lugar bem aconchegante na deliciosa estância de Santo Antônio do Pinhal.

Lá, por mais que me esforçasse para me desligar de tudo, foi inevitável ouvir comentários e piadas, aqui e acolá, a respeito desses episódios, desses políticos, desses ministros, e até desse presidente, que apesar de tudo isso, segue firme liderando as pesquisas eleitorais para a Presidência da República.

Na missa dominical na Paróquia de Santo Antônio do Pinhal, o padre foi quem melhor resumiu a situação, no encerramento de seu sermão. Depois de confrontar o tratamento dispensado à jovem mãe citada no acontecimento 4 e o dispensado aos deputados citados no acontecimento 2, ele parodiou o falecido Renato Russo e disparou: “Que País é este?”

Referências e indicações bibliográficas

GIANNETTI DA FONSECA, Eduardo. Vícios privados, benefícios públicos?: a ética na riqueza das nações. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

MACEDO, Roberto. E prossegue a orgia dos gastos públicos. O Estado de S. Paulo, 23 de março de 2006, p. A 2.

NORTH, Douglass C. Custos de transação, instituições e desempenho econômico. Tradução de Elizabeth Hart. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1994.

Referências e indicações webgráficas

DINIZ, Arthur Chagas. A dança do elefantinho. Disponível em http://www.institutoliberal.org.br/.

MACHADO, Luiz Alberto. James Buchanan e as escolhas públicas. Disponível em http://www.lucianopires.com.br/iscasbrasil/iscas/abre_isca.asp?cod=318.

______________ Douglass North e o neoinstitucionalismo. Disponível em http://www.lucianopires.com.br/iscasbrasil/iscas/abre_isca.asp?cod=695.

______________ Capital social – combustível para o desenvolvimento. Disponível em http://www.lucianopires.com.br/iscasbrasil/iscas/abre_isca.asp?cod=648.

Referências musicais

Que País é Este? Letra e música de Renato Russo. Disponível em http://www.legiao.org/l_3_que.asp.