O tempo e a economia I

 

O tempo não pára

 

“Que é o tempo? … É o tempo uma função do espaço?

Ou vice-versa? Ou ambos são idênticos? Não adianta

 prosseguir  perguntando. O tempo é ativo, tem caráter verbal,

“traz consigo”. Que é que traz consigo? A transformação.”

Thomas Mann – A Montanha Mágica

 

Como professor de economia – e, mais especificamente, de história do pensamento econômico – tive sempre uma preocupação com a relação entre a economia e o fator tempo.

Sendo assim, e mesmo reconhecendo que não seria possível abordar todas as facetas dessa relação num artigo dessa natureza, decidi escrever pelo menos sobre alguns aspectos desse tema por considerá-lo interessante tanto para economistas como, sobretudo, para não economistas.

Tomada a decisão, vou abordá-lo a partir de quatro óticas: a da evolução do conhecimento e suas implicações teóricas; a da obsessão pelo futuro; a do tempo como variável fundamental para ganhos ou perdas num tomada de decisão; e, por fim, a relacionada à questão da intertemporalidade.

A primeira abordagem diz respeito a um aspecto que não se circunscreve à teoria econômica, mas que é válida para qualquer área do conhecimento e que pode ser resumida no reconhecimento de que todo conhecimento é limitado às condições de sua época. Para ilustrá-la vou me valer de uma observação de John Kenneth Galbraith em A era da incerteza. No primeiro capítulo do livro (e da série de TV produzida pela BBC) Galbraith compara dois modelos econométricos de épocas completamente distintas, afirmando que o Tableau Economique de François Quesnay pode ser considerado um ancestral distante da Matriz Insumo-Produto de Wassily Leontief. O primeiro instrumento foi concebido pelo principal expoente da Escola Fisiocrata, cuja influência jamais extrapolou os limites da França, em meados do século XVIII, época em que a economia não havia sequer se emancipado tornando-se uma área específica do conhecimento, o que só viria a acontecer com Adam Smith, alguns anos depois. Já o segundo, foi responsável pela concessão do Prêmio Nobel ao economista russo em 1972. Ambos, no entanto, partem de um mesmo princípio, qual seja, mensurar a participação de cada classe social (no caso de Quesnay) ou de cada insumo (no caso de Leontief) no produto de uma economia. A influência do fator tempo é evidente. Enquanto Quesnay desenvolveu seus cálculos com base nos instrumentos de cálculo relativamente rudimentares daquela época, Leontief já utilizou a tecnologia dos computadores, o que lhe permitiu incorporar um número muito maior de variáveis em suas análises, com uma rapidez incomparavelmente maior. Como assinala Eduardo Giannetti da Fonseca, num artigo de 1994,

“Há 45 anos, quando a econometria engatinhava, uma regressão múltipla requeria o trabalho de um operador qualificado, meses de cálculo e 40 horas do computador mais avançado de grande porte. Hoje em dia, essa mesma regressão pode ser feita por qualquer aluno de graduação, no seu micro, em menos de 30 segundos”.

Efetivamente, a Matriz de Leontief transformou-se num modelo de planejamento amplamente utilizado pelas economias socialistas defensoras da centralização das decisões econômicas.

Umbilicalmente ligado a esta primeira abordagem encontra-se o fato aludido no título deste artigo – em inspirada interpretação de Cazuza – que diz respeito ao caminhar inexorável do tempo. Como o tempo não pára, torna-se irremediavelmente falsa a expressão muito comum que diz que “a história se repete”. Por mais semelhante que um dado acontecimento ou uma dada situação possa parecer com outro acontecimento ou outra situação, jamais poderá ocorrer no mesmo momento e, assim, as pessoas envolvidas nos dois acontecimentos ou nas duas situações jamais serão as mesmas. Ou por já terem desaparecido ou por estarem em momentos diferentes de suas respectivas vidas, tendo, em conseqüência disso, outros desejos, necessidades e motivações. Nelson Motta e Lulu Santos, numa música que fez muito sucesso na interpretação do segundo, descrevem com precisão esse aspecto:

“Nada do que foi será

de novo do jeito que já foi um dia

tudo passa

tudo sempre passará

a vida vem em ondas

como um mar

num indo e vindo infinito

tudo que se vê não é

igual ao que a gente viu há um segundo

tudo muda o tempo todo no mundo

não adianta fugir

nem mentir pra si mesmo agora

há tanta vida lá fora

aqui dentro sempre

como uma onda no mar!”

A segunda abordagem refere-se ao desejo inerente ao ser humano de se antecipar ao próprio tempo, fazendo previsões de toda sorte. Recorro uma vez mais a John Kenneth Galbraith, só que desta vez a um trecho de outro de seus livros, Pensamento econômico em perspectiva, para exemplificar este tipo de abordagem:

“Todos haverão de concordar que a economia, da maneira como é praticada, preocupa-se obsessivamente com o futuro. A cada mês nos Estados Unidos, homens e mulheres reputadamente cultos e inteligentes espalham-se pala nação para apresentarem suas opiniões sobre as perspectivas econômicas, e também sobre o panorama político e social. Milhares lhes darão ouvidos. Os administradores e suas empresas pagarão caro pelo privilégio de conhecerem estas visões e, se forem sábios, tratarão os conhecimentos assim adquiridos com inteligente descrença. A qualificação mais comum dos prognosticadores econômicos não é o saber, mas sim o não saberem que nada sabem. Seu maior trunfo é que todas as previsões, certas ou erradas, são logo esquecidas. Há por demais delas e, se o lapso de tempo for suficiente, não só a memória do que foi dito terá desaparecido, como também um número apreciável daqueles que fizeram ou ouviram tais prognósticos. Como observou Keynes, “A longo prazo estaremos todos mortos”.”

De fato, não se pode negar que a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos, também no Brasil ou em qualquer outro país, empresas e outros tipos de organizações costumam gastar muito dinheiro pagando – caro, diga-se de passagem – por previsões realizadas, na maior parte das vezes, por alguns dos nomes mais destacados da profissão. O problema é que, como em qualquer outro campo de conhecimento ou de ação, é muito mais fácil explicar como as coisas aconteceram do que fazer previsões sobre como as coisas virão a acontecer. Obviamente, quando os economistas tentaram passar da condição de explicadores do que tinha acontecido para prognosticadores do que viria a acontecer, a margem de erro cresceu significativamente, sendo, portanto, bastante razoável considerar que os erros nas previsões feitas por nomes destacados tenham se constituído num dos principais motivos para a perda de prestígio da profissão num determinado momento. A esse respeito, vale lembrar uma observação de Eduardo Giannetti da Fonseca no artigo Por que a economia não é a física?, publicado na Folha de S. Paulo (06/11/94) e depois reproduzido no livro As partes & o todo: “A meteorologia é o consolo do economista”.

A terceira abordagem está relacionada à questão de se tomar ou não uma decisão no momento certo, o que pode significar a diferença entre ganhar ou deixar de ganhar significativo montante de dinheiro. Tal abordagem, que considera a variável tempo uma variável fundamental da análise econômica só foi incorporada definitivamente à teoria econômica – com a ênfase que lhe é devida – pelas Escolas Marginalista e Neoclássica na segunda metade do século XIX. Desde então, torna-se mais do que verdadeira a expressão “time is money” (“tempo é dinheiro”). A importância deste tipo abordagem do tempo na economia ficava bastante clara no longo período em que nós brasileiros tivemos que conviver com elevadas taxas de inflação. Mesmo considerando que a indexação servia para neutralizar consideravelmente o impacto da inflação, este atenuante beneficiava apenas a parcela da população que tinha acesso ao sistema financeiro formal, o que não é o caso da esmagadora maioria da população brasileira que, por anos e anos, padeceu com o que nós economistas chamamos de imposto inflacionário. Alijados do sistema financeiro e desprotegidos da indexação, milhões de brasileiros perdiam dinheiro a cada dia que deixavam de consumir os bens que compunham a sua cesta de consumo, uma vez que os preços desses bens eram reajustados com uma freqüência cada vez maior, chegando até a diariamente nos meses em que a inflação atingiu patamares mais elevados. Nesse sentido, não é difícil entender a razão pela qual a estabilidade rendeu tanto prestígio (e votos) àqueles que ficaram identificados como sendo os responsáveis por sua conquista.

A quarta e última das abordagens que eu gostaria de focalizar neste artigo refere-se à questão da intertemporalidade e foi estupendamente utilizada pelo Prof. Eduardo Giannetti da Fonseca no recém lançado O valor do amanhã, cuja resenha será objeto de um de meus próximos artigos para esta coluna. O trecho que se segue, extraído da quarta capa do referido livro, e com o qual encerro o presente artigo, dá bem uma idéia do significado desta intertemporalidade (além de, provavelmente, deixar o amigo internauta com água na boca pela sua leitura, ou de sua resenha numa das próximas semanas):

“Desfrutar o momento ou cuidar do amanhã? […] O cérebro humano é formado por circuitos modulares que não estão perfeitamente integrados. A perspectiva concreta de gratificação imediata de certos desejos ativa uma região do cérebro – o sistema límbico – que demanda pronta satisfação, sem se importar com o amanhã. Mas a impaciência de curto prazo não é tudo. O primata impulsivo que nos agita em segredo tem um adversário à altura: o córtex pré-frontal, que pondera os prós e os contras de diferentes escolhas e não se deixa levar com facilidade pela sedução do momento. Se a atração pelo prazer do momento […] ata-nos ao presente, os cuidados com o amanhã imaginado […] elevam-nos ao futuro.

No sempre renovado embate entre a impulsividade da cigarra límbica e o calculismo prudente da formiga pré-frontal, o resultado não está dado de antemão.”

 

Referências e indicações bibliográficas

BRAGA, José Carlos de Souza.  Temporalidade da Riqueza: teoria da dinâmica e financeirização do capitalismo. Campinas, SP: UNICAMP. IE, 2000. (Coleção Teses)

GALBRAITH, John Kenneth. A era da incerteza. Tradução de F. R. Nickelsen Pellegrini. 6ª ed. São Paulo: Pioneira, 1984.

______________ Pensamento econômico em perspectiva: uma história crítica. Tradução de Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Pioneira/Editora da Universidade de São Paulo, 1989 (Coleção Novos Umbrais)

GIANNETTI DA FONSECA, Eduardo. Por que a economia não é a física? Em As partes & o todo. São Paulo: Siciliano, 1995, pp. 132 – 134.

______________ A globalização e a aceleração do tempo. Em As partes & o todo. São Paulo: Siciliano, 1995, pp. 95 – 98.

______________ O valor do amanhã: ensaio sobre a natureza dos juros. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

LEONTIEF, Wassily. A economia do insumo-produto. Apresentação de Carlos Geraldo Langoni; tradução de Maurício Dias David. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Economistas)

QUESNAY, François. Quadro econômico dos fisiocratas. Apresentação de Roberto Campos; tradução de João Guilherme Vargas Neto. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Economistas)

 

Referências e indicações webgráficas

MACHADO, Luiz Alberto. Altos e baixos nos 50 anos da profissão de economista no Brasil. Trabalho apresentado no IV Encontro de Economistas de Língua Portuguesa, realizado em Évora, Portugal, em outubro de 2001. Disponível em http://race.nuca.ie.ufrj.br/PaperArquivo/machado7.doc.

 

Referências musicais

O tempo não pára. Cazuza e Arnaldo Brandão.

Como uma onda. Lulu Santos e Nelson Motta.