O tempo e a economia IV
Parece que o tempo voa
“A maioria dos homens persegue o prazer com tão
afobada pressa que passa por ele sem perceber.”
Søren Kierkegaard
(Filósofo dinamarquês,
1813 – 1855)
“Nossa, parece que o tempo voa. Nem parece que já se passou um ano desde o reveillon passado”. Ouvi de diversas pessoas expressões dessa natureza na passagem de ano, o que me fez pensar imediatamente em mais este artigo nessa série sobre o tempo e a economia.
Começo chamando a atenção para um fato não necessária ou exclusivamente ligado à economia. A questão da percepção que cada um de nós tem a respeito de diversos fenômenos. No caso do tema dessa série de artigos, o tempo. A rigor, o tempo é um só, e suas dimensões são medidas através de uma escala que inclui segundos, minutos, horas, dias, meses e anos. Entretanto, a percepção que temos a respeito da passagem do tempo deixa-nos com a sensação de que ele anda mais rápida ou mais lentamente, dependendo de uma série de circunstâncias, muitas delas de caráter pessoal. Trata-se, portanto, de uma questão de percepção, definida por Floriano Serra, um dos brasileiros pioneiros no estudo da criatividade como:
PERCEPÇÃO – em Psicologia, a Percepção refere-se à “consciência das sensações, acrescida dos significados que lhe são atribuídos como conseqüência de experiências pessoais anteriores”. Na prática, e de modo muito simplista, a percepção pode ser definida como a capacidade de “ver” o implícito, de interpretar o subjetivo; de obter dados a partir de impressões e sentimentos. Enfim, é a sensibilidade para captar informações a partir do intangível e do abstrato.
Como fica claro por essa definição, a sensação de que o tempo voa é uma percepção individual e subjetiva e, nesse sentido, o andar mais ou menos rápido do tempo é determinado pelas impressões e sentimentos de cada um de nós.
No entanto, não resta dúvida de que essa sensação de que o tempo anda cada vez mais rápido é uma das características da economia globalizada, fato que vem sendo observado por diversos analistas que se ocupam do tema da globalização, entre os quais o professor Eduardo Giannetti da Fonseca, que assim se referiu ao fenômeno:
A hipérbole é inimiga da precisão. Mas é difícil resistir a uma sensação de assombro e vertigem diante da velocidade com que o mundo vem mudando de alguns anos para cá. Não é a primeira vez, é verdade, que isso acontece. Já na primeira Revolução Industrial, por exemplo, era lugar-comum afirmar-se que “na era da eletricidade e do vapor, a década substitui o século”. A diferença é que agora estamos trocando semanas por minutos e dias por segundos.
Efetivamente, conforme observou o próprio professor Eduardo Giannetti na seqüência do aludido artigo: “A vertiginosa aceleração do tempo no mundo contemporâneo se faz sentir das mais diversas maneiras”. Peter Drucker, o grande guru da administração da segunda metade do século XX, falecido no final do ano passado, também não deixou de registrar esse aspecto, focalizando mais especificamente o seu efeito no segmento do comércio e dos negócios em geral. Disse ele:
Na nova geografia mental criada pela ferrovia, a humanidade dominou a distância. Na geografia mental do comércio eletrônico, a distância foi eliminada. Existem apenas uma economia e um mercado. Uma conseqüência disso é que toda empresa precisa se tornar competitiva em nível global, mesmo que produza ou venda apenas dentro de um mercado local ou regional. A concorrência já deixou de ser local. Na verdade, não conhece fronteiras. Toda empresa precisa tornar-se transnacional na forma de ser administrada.
Na mesma linha, Jean Bartoli observa em seu instigante livro Ser executivo: um ideal? uma religião?:
Se as empresas e os executivos devem sobreviver e ter sucesso num mundo submetido à mudança permanente, um dos critérios de excelência será o desenvolvimento de uma visão capaz de enxergar para onde está evoluindo a economia dirigida pelo mercado e como tirar partido das oportunidades oferecidas pelo caos aparente. O que se entende por visão? É o que permite entender o cenário competitivo e formular a missão, a estratégia e os objetivos da empresa.
Confirmando a observação de que os efeitos desse fenômeno podem ser sentidos de diversas maneiras, pode-se constatar inclusive a tentativa de se criar uma nova terminologia para definir o mundo fortemente influenciado por essa (e algumas outras características). Um dos termos utilizados com esse objetivo é “hipermodernidade”, que tem no filósofo francês Gilles Lipovetsky um de seus mais reconhecidos intérpretes. O texto que se segue revela como essa questão da aceleração do tempo é enfatizada por ele:
A partir dos anos 80 e (sobretudo) 90, instalou-se um presentismo de segunda geração, subjacente à globalização neoliberal e à revolução informática. Essas duas séries de fenômenos se conjugam para “comprimir o espaço-tempo”, elevando a voltagem da lógica da brevidade. De um lado, a mídia eletrônica e informática possibilita a informação e os intercâmbios em “tempo real”, criando uma sensação de simultaneidade e de imediatez que desvaloriza sempre mais as formas de espera e de lentidão. De outro lado, a ascendência crescente do mercado e do capitalismo financeiro pôs em xeque as visões estatais de longo prazo em favor do desempenho a curto prazo, da circulação acelerada dos capitais em escala global, das transações econômicas em ciclos cada vez mais rápidos.
Contundente em sua análise, Lipovetsky conclui de forma categórica:
Na hipermodernidade, não há escolha, não há alternativa, senão evoluir, acelerar para não ser ultrapassado pela “evolução”: o culto da modernização técnica prevaleceu sobre a glorificação dos fins e dos ideais.
Seria irreal e ilusório, porém – e sempre há um porém –, imaginar que num artigo que procura relacionar o tempo e a economia as posições fossem todas consensuais e lineares. Evidentemente, não é o caso. Contradições, controvérsias e paradoxos existem, como não poderia deixar de ser. E uma das mais interessantes foi indicada pelo próprio professor Eduardo Giannetti noutro texto de sua autoria:
A globalização não é apenas a palavra da moda, mas a síntese das transformações radicais pelas quais vem passando a economia mundial desde o início dos anos 80. Suas dimensões básicas, que estão revolucionando a atividade produtiva e o modo de vida neste fim de milênio, são a aceleração do tempo e a integração do espaço. O paradoxo é que embora façamos as coisas que desejamos em cada vez menos tempo, falte também cada vez mais tempo para fazer aquilo que desejamos. Quanto mais economizamos tempo, mais carecemos dele.
De fato, é cada vez mais comum nos queixarmos – ou ouvir alguém se queixando – de que o dia tem só 24 horas. Agendas carregadas constituem a tônica não só de empresários e altos executivos, mas de trabalhadores e cidadãos comuns, que se sentem mais e mais pressionados pelo enorme acúmulo de obrigações e afazeres que assumem como sendo parte normal de suas responsabilidades. E o pior é que isso tem começado cada vez mais cedo. As crianças têm hoje muito menos tempo disponível para as brincadeiras típicas das diferentes etapas de seu crescimento, uma vez que seu dia está repleto de obrigações: além das exigências escolares, há as aulas de inglês, natação, judô, computação e outras do gênero, cujo objetivo, nem sempre declarado, é de absolver as consciências dos pais que estão com seu próprio tempo tomado por outras prioridades.
A conseqüência inevitável disso é que tanto pessoas, como empresas, e até mesmo nações acabam entrando num tremendo frenesi, cujos resultados nem sempre são os mais desejáveis. Esse estado de ansiedade permanente faz com que muitas vezes se confunda o que é urgente com o que é importante. Se fizermos uma breve retrospectiva do que se ouve nos diferentes veículos de mídia, constataremos a enorme quantidade de depoimentos de autoridades quer do setor público quer do setor privado referindo-se a ações destinadas à solução de problemas urgentes. Enquanto isso, muitos dos problemas mais importantes, quase sempre de caráter estrutural e de solução mais complicada, continuam tendo seu enfrentamento adiado indefinidamente.
Se o amigo internauta tiver alguma dúvida, basta prestar um pouco de atenção. Ou não é o caso da medida urgente de tapar buracos, estranhamente só percebida quando o presidente da República teve que fazer uma viagem terrestre, dando conta, então, do terrível estado de manutenção da esmagadora maioria das nossas estradas?
Infelizmente é isso que se constata em muitas de nossas empresas, de nossas cidades, de nossos estados e, por que não, de nosso país. Uma sucessão de ações emergenciais para solucionar problemas urgentes. E uma completa falta de estratégia para as questões fundamentais que põem em xeque não apenas o nosso presente, mas, lamentavelmente, também o nosso futuro.
Encerro o presente artigo lembrando de um alerta que era feito freqüentemente pelo professor Waldir Pagan Peres, um dos mais importantes técnicos dos bons (e velhos) tempos do basquete brasileiro. Nos treinos, pondo em prática parte dos conhecimentos adquiridos em cursos e clínicas nos Estados Unidos, ele costumava insistir: “quickly, but not hurry”. Sabiamente, o que ele queria nos dizer a respeito do jogo de basquete, é algo que se aplica aos diversos ramos da nossa vida. Fazer rápido (e bem) é muito diferente de fazer depressa (e, normalmente, mal).
Aliás, nada mais apropriado a respeito disso do que recomendar a leitura de Devagar, o incrível livro de Carl Honoré que relata como um movimento mundial está desafiando o culto da velocidade.
Referências e indicações bibliográficas
BARTOLI, Jean. Ser executivo: um ideal? uma religião? Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2005.
Cairncross, Frances. O fim das distâncias: como a revolução nas comunicações transformará nossas vidas. São Paulo: Nobel, 2000.
DRUCKER, Peter. Comércio Eletrônico, O futuro já chegou, O maior pensador contemporâneo do mundo dos negócios desvenda a nova economia. Exame, 34 (710): 118, 22 de março de 2000.
GALBRAITH, John Kenneth. A economia e a arte da controvérsia. Tradução de Gilberto Paim. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1959.
GIANNETTI DA FONSECA, Eduardo. Globalização, transição econômica e infra-estrutura no Brasil. Texto preparado para o Seminário “Competitividade na infra-estrutura para o Século XXI”, promovido pelo Instituto de Engenharia, São Paulo, realizado em 24/09/96, reproduzido em Idéias Liberais, Ano IV, N° 62, 1996.
______________ A globalização e a aceleração do tempo. Publicado em Folha de S. Paulo, 10/4/94. Reproduzido em As partes & o todo. São Paulo: Siciliano, 1995, pp. 95 – 98.
HONORÉ, Carl. Devagar. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005.
LIPOVETSKY, Gilles, com Sébastien Charles. Os tempos hipermodernos. Tradução de Mário Vilela. São Paulo: Barcarolla, 2004.
SERRA, Floriano. E por que não: despertando o pensamento criativo e a motivação para mudanças. São Paulo: Editora Gente, 1992.
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