Grandes Economistas Brasileiros II[1]

 

Joaquim José Rodrigues Torres, Visconde de Itaborahy[2]

 

 

“O Brasil é o país da instabilidade; sucessos que entre outros povos demandariam anos para serem alcançados realizam-se entre nós de um dia para outro, como se constituídos na areia movediça.”

Visconde de Itaborahy

 

Desaparecimentos misteriosos

Há um mistério do qual a História é vítima, e ainda os historiadores não se debruçaram seriamente para resolvê-lo: por que grandes homens, desde estadistas até intelectuais, desaparecem da memória nacional após alguns anos do falecimento?

É verdade que muitos deles nem sequer entraram nela quando vivos – como é o caso de Mário Ferreira dos Santos, o maior filósofo brasileiro de todos os tempos – o que nos levaria a outras perguntas, desta vez sobre a incultura no Brasil.

Mas aquele insondável mistério persiste, quando se nota que notórios políticos e estudiosos do passado, plenamente reconhecidos como tais no seu tempo, de repente são legados ao esquecimento. É o caso da grande maioria de estadistas ilustres que o Brasil teve nos tempos do Imperador.

Se se perguntasse para um jornalista qualquer do final do século XIX quem foram João Alfredo Correa de Oliveira, José Bonifácio e Bernardo Pereira de Vasconcelos, ele seguramente saberia responder. Hoje em dia, um jornalista tão afamado quanto o outro responderia, se conseguisse, com dificuldade – à exceção da persona de José Bonifácio, que fatalmente remeteria à figura do nosso Boni.

Será que tais nomes não se conservaram na memória nacional pela sua desimportância atual? Uma objeção como essa seria imperdoável: num Brasil ainda assolado pela iniquidade econômica entre brancos e negros, pela manutenção do estamento burocrático e pelos decrescentes níveis de educação, quão “desimportantes” são o abolicionista da Lei Áurea, o fundador do Brasil e o criador do colégio Pedro II? Os homens do passado, com efeito, são, em grande parte, os causadores tanto das qualidades quanto dos defeitos da atualidade.

Será, por outro lado, que assim ocorreu por conta dos sucessivos golpes de Estado? Embora seja verdade que, dentre as destruições da República, uma delas foi a substituição artificial, na memória popular, dos pais fundadores do Brasil por heróis quase-míticos (como Tiradentes e Zumbi), o fato não é suficiente para explicar a permanência daqueles nomes no esquecimento – “por que ninguém os tirou de lá?”. Realmente, a questão está em aberto.

Mas voltando ao nosso jornalista do século XIX. Se perguntado quem foi Visconde de Itaborahy, ele diria, sem pestanejar: “foi o maior financista do Império”. E ele é o homenageado deste artigo.

Contexto histórico

Joaquim José Rodrigues Torres nasceu num país que estava caminhando rumo à autonomia política e econômica. O Brasil de sua geração era aquele que, tendo conquistado sua independência em 1822, vivia uma fase de afirmação como nação, de certa forma muito semelhante à de outros países sul-americanos que haviam obtido sua libertação, mais ou menos na mesma época. Diferentemente de seus vizinhos, porém, que se libertaram da Espanha, o Brasil rompeu seus laços de dominação com Portugal.

Nas mais de quatro décadas em que Itaborahy exerceu papeis importantes no Segundo Império, ocorreram alterações socioeconômicas importantes no Brasil, dentre as quais cumpre destacar:

1 – No plano econômico, cresce a importância relativa do café como principal produto da economia brasileira ao mesmo tempo em que se reduz a importância relativa do açúcar, que havia sido o produto base na maior parte do período colonial, embora entre o início da decadência do açúcar e a ascensão do café, tenha ocorrido o ciclo do ouro, responsável pelo processo de interiorização do nosso desenvolvimento, até então quase integralmente circunscrito à faixa litorânea desde o descobrimento. O tripé característico da economia brasileira ao longo do período colonial – e que se estendeu de certa forma aos primeiros anos do Brasil independente, quando prevaleceu o modelo primário-exportador (FURTADO, 2007) – era constituído da monocultura, da produção extensiva realizada em grandes latifúndios e na mão de obra escrava. Observava-se, eventualmente, alguma atividade secundária de certa importância, como a criação de gado ou a produção de couros e de fumo em determinadas épocas. No período do Visconde de Itaborahy, de acentuada influência do café, isso aconteceu com o algodão, com o cacau e, já na parte final do século XIX, com a borracha. Merece especial destaque o impacto causado nas finanças do Império por situações de anormalidade social e politica, quando as despesas dos ministérios militares atingiam picos elevados. Foi o que ocorreu ainda no Primeiro Império no fim doas anos 1820 com a Guerra Cisplatina e nos anos 1830 com as operações contra os separatistas no sul do Brasil. No início do Segundo Império, conflitos regionais também ocorreram, como a Guerra dos Farrapos, no sul do país, e a Revolução Praieira, em Pernambuco. No entanto, o fenômeno mais importante do período foi, sem dúvida, a Guerra do Paraguai, que se estendeu de dezembro de 1864 a março de 1870, quando as despesas militares atingiram 65% dos gastos totais (ABREU; LAGO, p. 34). A terceira e última passagem do Visconde de Itaborahy pelo Ministério da Fazenda foi exatamente de 1868 a 1870, em plena Guerra do Paraguai

2 – No plano político, o Visconde de Itaborahy vivenciou os altos e baixos do Segundo Império, marcado, em grande parte, pela disputa entre os dois partidos que dominaram a cena política no período: o Liberal e o Conservador. Apesar da intensa disputa, os dois partidos eram constituídos por representantes da elite e defendiam pontos de vista muito semelhantes. Cabia ao Imperador escolher o presidente do Conselho de Ministros, o que ele fazia escolhendo entre os integrantes do partido que tinha maioria na Assembleia Geral. Outro aspecto a ser realçado é a influência política decorrente das mudanças na estrutura produtiva. Como costuma ocorrer em países em que a monocultura é um dos traços dominantes, os produtores do produto mais importante adquirem considerável poder político. Nesse sentido, o Segundo Império viu crescer a importância política dos fazendeiros do café, à medida que este produto assumia papel preponderante na economia brasileira. A influência política vai além, determinando, inclusive, mudanças na geografia do poder. Assim é que a capital do Brasil colonial manteve-se em Salvador, ou seja, no nordeste, em função da importância relativa desta região durante todo o período em que o açúcar era o principal produto da economia brasileira. Com o advento da economia mineira a capital do país é transferida, em 1763, para o Rio de Janeiro, lá permanecendo a partir do fortalecimento da economia cafeeira, por sua proximidade com o novo centro dinâmico da economia brasileira. Também nesse período, o cenário político foi sacudido pelas primeiras manifestações favoráveis à transformação do Império em República, cuja proclamação viria a ocorrer em 1889.

3 – No plano social, o Visconde de Itaborahy foi testemunha e teve que lidar com a transição da mão de obra quase exclusivamente escrava, vigente até o início do século XIX, para relações de produção mais dinâmicas, típicas de um capitalismo mais desenvolvido, com destaque para a mão de obra assalariada, que veio a se consolidar apenas na fase republicana. Nesse processo de transição, duas questões merecem menção especial: a questão imigratória, com a vinda de levas de europeus que vieram ao Brasil para substituir a mão de obra escrava que começava a ter problemas para se reproduzir, e a própria questão abolicionista. Afinal, se a abolição definitiva ocorreu só em 1888 com a Lei Áurea, outras restrições foram se sucedendo nas décadas precedentes, quando tivemos a Lei Eusébio de Queiroz, de 1850, que aboliu oficialmente o tráfico de escravos no Brasil, a Lei do Ventre Livre, de 1871, que tornava livres os escravos nascidos após sua promulgação, e a Lei dos Sexagenários, de 1885, que dava liberdade aos escravos que completassem 65 anos de idade – leis, vale dizer, estabelecidas por ministérios conservadores (TORRES, 1968, pp.178-180).

Mais um engenheiro

Diferentemente da maioria de seus contemporâneos, o jovem Rodrigues Torres deixou sua casa, no então bucólico Porto de Caxias, onde prosperou seu pai como abastado fazendeiro, para estudar não Direito, mas Matemática em Coimbra (FILHO, 1986, pp. 35-37).

Graduado, voltou ao Brasil em 1826 como lente (belo nome para algo similar a professor) na Academia Militar. Ligado a ela até 1833, Torres lecionou lá matemáticas e engenharia, tendo como destacado aluno ninguém menos do que Teófilo Otoni (idem, ibidem, p. 43).

E, assim como o aprendiz, a carreira jamais o impediu de se interessar por assuntos políticos e econômicos. Notório pelo seu conhecimento dos Founding Fathers norte-americanos, Rodrigues Torres fez da livraria de Evaristo da Veiga sua grande ágora de ideias iluministas anglo-saxãs, para o encantamento de Otoni (idem, ibidem, pp. 42-45).

Por afinidade a essas mesmas ideias, foram perseguidos mestre e aluno na Academia Militar, aquele menos do que o outro (idem, ibidem, pp. 42-44). É bastante provável que esta tenha sido uma das razões para a saída voluntária de Rodrigues Torres do cargo.

Seja como for, a sua saída da Academia era, de certo modo, um fato que aconteceria mais cedo ou mais tarde: ao aproximar-se, em 1829, de Evaristo da Veiga – que reconhecia no lente um grande erudito em diversos assuntos – Torres foi introduzido no círculo dos liberais moderados que protagonizariam o período regencial.

Naqueles anos, eles contavam com a liderança de ninguém menos do que Bernardo Pereira de Vasconcelos, Diogo Feijó e o próprio Evaristo da Veiga: Minas, São Paulo e Rio de Janeiro unidos para conquistar a liberdade sem comprometê-la com a demagogia jacobina. Mal sabiam os líderes que essa forte coligação chegaria ao fim em menos de uma década, com a prematura morte de Veiga e o rompimento entre Vasconcelos e Feijó – rompimento que seria a gênese dos dois grandes partidos do Império.

Vasconcelos fundaria, então, o Partido Conservador – e, para sua felicidade, teria como aliado o gênio do futuro Visconde de Itaborahy.

 

Resumo da carreira política

 O político Rodrigues Torres foi, essencialmente, um austero. Rigorosos eram seus raciocínios; econômicos, seus discursos; desapaixonado, seu timbre; quase imóvel, sua face.

Com efeito, o Visconde era norteado por princípios morais sólidos e personalidade firme. Como puro conservador, ele sabia que, diante de uma realidade política ditada pelas circunstâncias fluidas, o embasamento e a unidade das decisões que tomava deviam estar solidificadas na prática individual dos bons costumes e no respeito à ordem social. Se assim não o fosse, o sistema estaria sempre à mercê de revolucionários, oportunistas e demagogos, cuja moral é tão somente uma distinção utilitária entre o que é bom para os objetivos do movimento e o que não o é.

Evidências da sua rigorosa e independente consciência individual são, de fato, abundantes. Caberia citar algumas:

– Em 1835, à euforia do Ato Adicional, Torres votou, sem apoio partidário e quase sozinho, contra sua redação final (idem, ibidem, p. 118);

– Conhecedor da obra de Thomas Jefferson (idem, ibidem, p. 45) e David Ricardo (GAMBI, 2015, p. 183), Itaborahy jamais se deixou impregnar totalmente pelos escritos estrangeiros, sempre priorizando a sua própria percepção individual e buscando conciliá-los com a realidade do Brasil. Como os grandes conservadores da época, nosso Visconde não se entregou ao “marginalismo das elites” – atitude identificada por Oliveira Vianna a respeito da tendência da elite brasileira se deixar absorver completamente por paradigmas, valores e problemas estrangeiros, incapaz de pensar a partir das situações propriamente nacionais (TORRES, 1968, p. XV).

– Em 1868, diante da imposição de um gabinete conservador por parte do Poder Moderador, Rodrigues Torres – o líder daquele – lidou com forte oposição da Câmara (na época, de maioria luzia[3]) e, mesmo assim, não negociou a agenda que, para ele, era a mais apropriada para o momento (idem, ibidem, pp. 95-121).

Sua personalidade firme conquistou para ele um lugar especial entre os primeiros chefes do Partido Conservador, chamados de Triunvirato Saquarema (FILHO, 1986, p. 124). Itaborahy compartilhava a liderança com outras importantes figuras políticas do Segundo Reinado: o emancipacionista Eusébio de Queirós e o erudito Paulino José Soares de Souza. Com o falecimento do fundador do Partido Conservador – anunciada pelo próprio Itaborahy (SOUSA, 1957) – e a morte mais ou menos prematura dos outros triúnviros, Rodrigues Torres se tornou por muitos anos a coluna vertebral do Partido, assegurando sua unidade pelas gerações (FILHO, 1986, p. 187).

Além da liderança dos conservadores, o Visconde também conquistou uma carreira de bastante presença nos cargos públicos, listados com as respectivas durações[4] de ofício:

– Ministro da Marinha (1831-1834), (1837-1840), (1843-1844);

– Ministro da Fazenda (1832), (1848-1853), (1868-1870);

– Deputado (1834-1844);

– Presidente da Província do Rio de Janeiro (1835-1836);

– Senador (1844-1872);

– Presidente do Conselho de Ministros (1852-1853), (1868-1870);

– Conselheiro do Estado (1854-1872).

 Protecionismo e Industrialismo

 Como fica evidente pelas datas citadas quando contrastadas com a duração média de cada gabinete, Rodrigues Torres foi o Ministro da Fazenda de maior tempo no cargo (VERSIANI, 2012, p. 876). Inegável, portanto, que a organização econômica do Brasil no Segundo Reinado é, significantemente, de responsabilidade sua. E com maestria assumiu essa missão, sendo chamado por uns de “Taumaturgo das Finanças” (FILHO, 1986, p. 121).

Com efeito, Itaborahy se envolveu em vários debates político-econômicos. Um deles foi a questão do Protecionismo no Brasil, ao qual era favorável.

Para resumir seu argumento, o raciocínio será transcrito em tópicos:

1- Seguindo o pensamento de Adam Smith (1976, p. 16), Torres afirma: “a experiência demonstra que a acumulação de riquezas é muito mais lenta nos países puramente agrícolas, do que nos manufatureiros ou comerciais” (apud FILHO, 1986, p. 133). Logo, a industrialização, acompanhada da diversificação e da especialização, é essencial para a prosperidade do Brasil.

2- Essa industrialização, todavia, dificilmente poderia ser empreendida pela iniciativa privada sozinha, pois a transferência de capital agrícola para a indústria é um processo moroso e complexo (idem, ibidem, pp. 111-112), além de arriscado e oneroso nos primeiros anos (VERSIANI, 2012, p. 876).

3- Cumpre, portanto, ao Estado colaborar ativamente com o processo de industrialização, o que significa: “incentivar novas forças produtivas, buscando obter que parte da população se aplique em fabricar alguns dos artigos de consumo recebidos do estrangeiro” (apud FILHO, 1986, p. 133); adotar “princípios de vigilância quanto ao destino do capital investido” (apud idem, ibidem, p. 112); assumir, junto à sociedade, o ônus inicial do estabelecimento de novas indústrias (VERSIANI, 2012, p. 876); e investir na infraestrutura nacional (FILHO, 1986, pp. 84-86).

Em suma, o argumento de Itaborahy era, fundamentalmente, a tese da indústria nascente (VERSIANI, 2012, p. 876), para a qual “o sistema da liberdade de indústria não servirá senão para acabar com o Brasil” (apud FILHO, 1986, p. 111) pois “nenhuma das nações conhecidas tem chegado a grande desenvolvimento industrial senão à sombra de leis protetoras” (apud VERSIANI, 2012, p. 876).

Cabe, contudo, ressaltar que o protecionismo defendido por Rodrigues Torres não era nem irrestrito nem incondicional. A proteção só se justificaria se o estabelecimento beneficiado pudesse “em prazo mais ou menos breve chegar a certo ponto de robustez, que o habilite a viver e crescer de seus próprios recursos” (apud VERSIANI, 2012, p. 876), de modo a não onerar perpetuamente os consumidores (apud idem, ibidem, p. 877).

 

 Lastro metálico contra a anarquia bancária

 Outro célebre debate do qual Torres participou com protagonismo foi o do Regime de Emissões.

À época, grande parte da classe política ambicionava tornar independente também a economia nacional – e, para tanto, fazia-se mister estabelecer um bom sistema de financiamento privado aos novos empreendimentos.

Como ele se daria? À pergunta, duas respostas antagônicas foram dadas, e a implementação político-econômica de uma ou de outra dependia de quem ocupava o Ministério da Fazenda. A caracterização dessas duas posições foi, com sucesso, exposta pelo professor Thiago Gambi, da Universidade Federal de Alfenas (2015, pp.180-182), e é nele que se baseiam, em grande parte, os parágrafos a seguir.

De um lado do debate, havia aqueles que defendiam um regime de emissão descentralizado, cuja moeda teria uma conversibilidade fraca (lastreada tanto em metais quanto em títulos da dívida pública). Estes eram chamados de Papelistas, e tinham como liderança Bernardo de Souza Franco.

 Em oposição, outros sustentavam que o regime de emissões deveria ser centralizado, de modo a garantir a mais forte conversibilidade possível (lastreando a maior quantidade de moedas em ouro). Disse-se “mais forte possível” porque o lastro integral em ouro não existiu no Brasil senão em alguns curtos períodos (idem, ibidem, p. 178). Dessa posição eram os Metalistas, cujo líder, junto a Torres Homem, era o nosso Rodrigues Torres.

As respectivas linhas de raciocínio são transcritas abaixo:

Papelismo

1- Títulos bancários não-monetários, quando emitidos, o são para efetivar uma transação comercial já ocorrida. Há, portanto, uma contrapartida real para essa operação bancária. Logo, emissão de notas bancárias não causa inflação – pelo contrário: é o aumento dos preços que causa o aumento no volume de notas emitidas.

2- Se títulos bancários não causam inflação, eles, por outro lado, são essenciais para o florescimento de novos empreendimentos, financiando tanto o capital inicial quanto o consumo dos produtos. Uma limitação artificial (não imposta pelo mercado) da oferta de notas imporia, portanto, freios à atividade econômica.

3- Mais apropriado, portanto, ao crescimento econômico do Brasil é a pluralidade das emissões: cada banco privado, conhecendo e sendo pressionado pelas informações do seu próprio mercado, deve emitir o volume de títulos que julgar necessário e conveniente. Além disso, unificar quantitativamente a política de emissões num país de grandes desigualdades inter-regionais é comprometer seu crescimento homogêneo, privilegiando algumas regiões sobre outras.

Metalismo

1- Títulos bancários não-monetários trocam de alguns donos antes do último resgatar seu valor no banco. Após a primeira troca, a qual efetiva a transação comercial previamente estabelecida, os portadores do título o utilizam como moeda para transações ainda não ocorridas. Logo, o título, ao comportar-se como moeda, segue o mesmo princípio monetário: o aumento da oferta de notas bancárias, coeteris paribus, causa inflação.

2- Embora seja verdade que a expansão da oferta monetária (tanto em espécie quanto em notas bancárias) contribua para o fomento da atividade econômica, ele será inerentemente acompanhado de crises financeiras caso aquela expansão tenha ocorrido sem contrapartida real.

3- Os títulos bancários devem ser lastreados para evitar inflação e crises financeiras, as quais desestabilizam a economia e impedem o crescimento sustentável. Dada a dimensão continental do país, a fiscalização de emissões privadas seria consideravelmente burlável. Também é importante considerar que, para um país fundamentalmente agroexportador, a estabilidade cambial é bastante desejável.

Logo, a criação de uma instituição bancária com o monopólio das emissões, seguindo o modelo inglês de Robert Peel, seria a mais adequada medida.

Caberia, ainda, considerar em mais detalhes as premissas sobre as quais Rodrigues Torres raciocina, de modo a compreender com mais propriedade seu posicionamento.

Imbuído tanto de princípios morais quanto de postulados proto-monetaristas, Itaborahy não admitia a regularização legal de notas bancárias sem lastro real, pois elas não representariam verdadeiramente crédito ou riqueza:

O que é crédito? […] crédito é senão a faculdade que uma pessoa natural ou jurídica possua para ceder a outra certo capital seu por certo prazo, […] Tratando-se de capital propriamente dito, a restrição do crédito, se imposta pelo Poder Público, seria não só incabível, mas atentatória do direito reconhecido a qualquer pessoa para fazer uso dos bens de sua propriedade como entender. Assim, […] a restrição ao crédito por via de uma lei seria realmente um atentado ao direito de propriedade.

Tratar-se-ia [a Lei 1.083[5]] de uma restrição? Não; se ela ocorresse em caso assim, deixaria de haver divergência entre nós; o honrado senador [Souza Franco] ter-me-ia em sua fileira para combater qualquer lei que restringisse o crédito. A mesma hipótese não ocorre, porém, quando pela palavra crédito se entende a faculdade de conceder amplamente a cada indivíduo o direito de emprestar, não capital, mas títulos que não podem ser convertidos em capital, que não representam de fato coisa alguma e que iludem o público chamado a recebê-los em troca de produtos reais e valiosos. Neste caso, a liberdade de crédito […] não faz mais do que estimular os estabelecimentos que dele se servem à perturbação das transações comerciais (apud FILHO, 1986, p. 126)

Além disso, Rodrigues Torres reconhecia na atividade bancária desregulada a causa das crises e depressões (idem, ibidem, p. 115; idem, ibidem, p. 161). Nesse sentido, Itaborahy reiterava, sem grandes mudanças, o ciclo econômico ricardiano: quando bancos privados de determinado país aumentam o volume de títulos emitidos sem lastro, os preços crescem de modo generalizado. Essa inflação pressiona a balança comercial rumo ao déficit, pois tanto os agentes nacionais quanto os estrangeiros vão preferir comprar fora do país. A balança comercial deficitária faz com que os recursos reais que lastreavam a moeda do país (na época, o ouro) emigrem. Com a diminuição das reservas reais, os bancos freiam a emissão de títulos e exigem o pagamento dos emprestadores. Cientes da evolução dos preços e dessa nova atitude do banco, o público, desconfiado, inicia uma corrida em massa em busca das reservas que lá depositou. A conclusão é a quebra dos bancos e dos empreendimentos financiados por aqules. Em suma, o boom financeiro é inevitavelmente acompanhado do bust (ROTHBARD, 2009, pp. 21-25).

Foi com o propósito de impedir essas especulativas e corrosivas flutuações financeiras que Rodrigues Torres criou o Segundo Banco do Brasil, em 1853, e garantiu seu monopólio de emissões. Também foi com esse propósito que Itaborahy e seus aliados metalistas fizeram passar a tão discutida Lei nº 1.083, a qual restringia a emissão dos bancos privados num tempo em que, com a ascensão de Souza Franco ao Ministério em 1857, a pluralidade havia retornado.

Com efeito, quatro anos após a promulgação da lei, o Segundo Império Brasileiro foi afligido por sua maior crise financeira, a Crise de Souto de 1864. Muito se escreveu e ainda se escreve sobre ela, com relação a suas verdadeiras causas. Alguns estudiosos corroboram o argumento papelista: a Lei nº 1.083, ou Lei das Entraves, estrangulou o sistema financeiro, impedindo que fossem emitidas notas em momentos de corrida aos bancos. Outros, porém, reiteram a posição metalista: a Lei nº 1.083, ou Lei da Prudência, mitigou os efeitos da pluralidade de emissões e do abuso do crédito, os quais teriam sido ainda mais arrasadores e maléficos se a lei não tivesse vigorado.

Os importantes estudiosos que entraram nesse debate sobre a Crise de Souto estão listados numa nota de rodapé pelo prof. Gambi (2012, p. 137). Dos citados, destaca-se, em favor da tese metalista, Sebastião Ferreira Soares – o qual presenciou a crise intimamente – e André Arruda Vilella – autor contemporâneo que, munido da estatística moderna, apresentou sua tese sobre o assunto na London School of Economics.

Em suma, Itaborahy canalizou parte de seu gênio e espírito para combater a anarquia do crédito e das notas bancárias. Embora não fosse possível o estabelecimento do padrão-ouro pleno, o Visconde sabia que um incompleto sistema de lastro, em relação à desregulação escancarada, era mais adequado para o crescimento sustentável da economia brasileira. Ele certamente não se contentaria com os atuais voos galináceos da nossa economia, sempre acompanhados da queda fatal.

Ministro Rodrigues Torres

Guiado por esses princípios econômicos, Rodrigues Torres realizou diversos atos no sentido do desenvolvimento nacional – seja como presidente de província, seja como membro do Ministério. Vale, por ora, citar alguns deles.

– Promulgação do Código Comercial de 1850;

– Criação do Banco do Brasil, o segundo banco público do Império;

– Criação da primeira Caixa Econômica e do Monte de Socorro;

– Primeiro recenseamento.

Ainda como membro de Ministério, cabe destacar sua participação naquele que foi um dos mais reconhecidamente bem-sucedidos de todo o Segundo Reinado: o Gabinete de 29 de setembro de 1848[6].

Foi esse o Ministério responsável por importantes conquistas: “acabou com a confusão no Prata (fim de Rosas), extinguiu o tráfico de escravos, fez passar o Código Comercial até hoje em vigor [parcialmente], aprovou uma importante lei de terras, talvez a mais famosa de nossa História” (TORRES, 1968, p. 68). Mais ainda, foi o Ministério que promulgou a Lei nº 641 de 1852, a qual “definiu as bases sobre as quais se estabeleceriam as ferrovias no Brasil; suas diretrizes gerais vigoraram até o final do século XIX” (SAES, 1996, p. 178).

 O maior feito de Rodrigues Torres no poder executivo, todavia – e, quiçá, em toda sua carreira – foi o mandato em plena Guerra do Paraguai. Quando assumiu o Ministério de 1868, nada conspirava a seu favor. Os desequilíbrios fiscais cresciam a níveis preocupantes: segundo as estatísticas recolhidas por Oliver Ónody (1960, p. 30), o déficit acumulado em 1865, 1866 e 1867 cresceu, aproximada e respectivamente, 34%, 22% e 31% – cifras até então inéditas no Brasil independente. Além disso, como já aludido, o congresso impunha forte e relutante oposição ao gabinete recém-formado, acusando-o de ilegítimo – e, deste modo, emperrando as medidas necessárias para combater a situação.

Contra esse impasse político quase insolúvel, O Poder Moderador teve que agir: o Congresso foi dissolvido e o Gabinete de 1868 pôde então efetivar seu plano para conter o desequilíbrio fiscal crescente. Nesse plano, o Visconde de Itaborahy, de fato, cogitou usar todas as ferramentas possíveis: venda de apólices, emissão de bilhetes do Tesouro e emissão de papel-moeda (FILHO, 1986, p. 146). Como das duas primeiras fontes pouco mais se podia esperar aparentemente, Rodrigues Torres reconheceu a necessidade de se apelar à última medida: o Decreto nº 4.232, de 5 de agosto 1868, autorizou a emissão de quarenta mil contos de réis para cobrir despesas com a guerra (idem, ibidem, p. 145). Nessa concessão ao papel-moeda, Itaborahy não traiu nem refutou seus princípios metalistas, pois, quando proclamados no Parlamento, eles sempre vinham acompanhados da seguinte ressalva: “só em caso extremo é tolerável emitir-se papel-moeda além do restrito limite preestabelecido” (apud idem, ibidem, p. 147), casos em que a dignidade e a segurança nacionais estivessem em risco.

O apelo à emissão de papel-moeda, todavia, foi no final das contas apenas uma alternativa de emergência, caso não sobrasse, realmente, nenhuma fonte razoável de recursos pecuniários. Daqueles quarenta mil contos em emissão legalmente permitidos, Rodrigues Torres apenas emitiu 28 mil contos– sendo que 11 mil foram usados para substituição de notas, não representando aumento no meio circulante (idem, ibidem, p. 149).

De fato, Itaborahy logrou evitar o instrumento emissor de papel-moeda graças à sua confiabilidade ante os agentes econômicos internos e externos[7] (idem, ibidem, pp. 147-148). No lugar da emissão, o ministro captou recursos “através da subscrição, em escalas crescentes, de títulos da dívida pública valorizados com cláusula de correção monetária” (idem, ibidem, p. 150) e adquiriu empréstimos, um de 30 mil e outro de 40 mil contos, com venda de apólices (idem, ibidem, pp. 147-150).

No final, a atuação de Rodrigues Torres como Ministro da Fazenda foi, como já se esperava, bastante exitosa: em 1868, o déficit acumulado cresceu 16%, cifra inferior aos aumentos pretéritos; em 1869, o crescimento foi de 10%, e, finalmente, em 1870, o aumento foi de apenas 0,4% (ÓNODY, 1960, p. 30). Tudo isso, vale relembrar, com poucos recursos oriundos da emissão de papel-moeda.

O que o Brasil não tinha – e continua não tendo

Apesar da inabalável disposição estadista, o Visconde não conseguiu, nem qualquer outro conseguiria, reformar tudo o que julgava desordenado na estrutura econômica brasileira.

Já em 1847 – 25 anos antes do primeiro recenseamento do Brasil, de iniciativa sua – Rodrigues Torres ressaltou a importância da estatística para os assuntos do Estado (FILHO, 1986, pp.113-114). Com efeito, quando Itaborahy compunha seus relatórios econômicos, aquele jovem amante da matemática aflorava nas tabelas transcritas.

Nem só de matemática, contudo, vivia Rodrigues Torres. Também muito lhe concernia a questão da educação nacional. Prova disso foi que assumiu voluntariamente o cargo de Inspetor Geral da Instrução Primária e Secundária da Corte, entre 1859 e 1860. Dentre suas reivindicações no quesito, destacava-se o financiamento da formação docente e da consequente multiplicação das escolas de primeiras letras (idem, ibidem, p. 85).

Por fim, Itaborahy sugeriu[8] anos antes de Sérgio Buarque de Holanda a associação que existe entre a predisposição dos brasileiros a empreendimentos de esforço mínimo e resultado rápido – aquilo que o autor de Raízes do Brasil chamou de “tipo aventureiro” – e instabilidade político-econômica. Com efeito, o Brasil é o país cujo povo persegue o sucesso à revelia da sustentabilidade. Os corriqueiros fatos de oportunismo político e despreocupação com a infraestrutura seriam manifestações dessa conduta social: “pouco importa aos que se impacientam na busca de sucessos que a pressa seja inimiga da perfeição, se neles catam interesses individuais” (apud idem, ibidem, p. 108).

Passados mais de 140 anos, o Brasil ainda enfrenta, em maior ou menor grau, os problemas acusados por Rodrigues Torres: se agora temos instituições especializadas em estatísticas, elas ainda não fornecem dados críveis e satisfatórios sobre o País, quantitativa e qualitativamente; se agora o acesso à educação é consideravelmente amplo, nossos alunos batem recordes e mais recordes de pior desempenho intelectual[9]; se agora a inflação parece estar controlada e o tripé macroeconômico razoavelmente consolidado, nossa história é ainda uma história de galinhas que sonham voar – mas que só sabem cair com a cloaca no chão.

 

Referências bibliográficas e webgráficas

 ABREU, Marcelo de Paiva e LAGO, Luiz Aranha Correa do. A economia brasileira no Império, 1822-1889. Texto para Discussão Nº 584. Departamento de Economia, PUC-RJ. Disponível em http://www.economia.puc-rio.br/PDF/td584.pdf.

 FILHO, J. L. Visconde de Itaboraí: A Luneta do Império. Rio de Janeiro: 1986.

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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[1] Todos os artigos da série Grandes Economistas Brasileiros serão elaborados em parceria com Renato Lembe, estudante de Economia da Faculdade de Economia da FAAP e editor do Projeto Saquarema.
[2] Não estando presos à rigidez das regras dos conselhos profissionais, os autores não se prenderam a exigências de registro para escolherem aqueles que, a seu juízo, desempenharam papel relevante na produção teórica da Economia ou no exercício de funções essenciais na condução da nossa política econômica.
[3] Luzia era o apelido dos liberais.
[4] As rupturas e as imediatas renomeações que ocorreram no mesmo ano não foram especificadas.
[5] Especificada abaixo.

[6] O qual permaneceu, grosso modo – desconsiderando modificações importantes – até 1853.

[7] “Nos países estrangeiros, principalmente n Inglaterra, o nome de Rodrigues Torres era repetido com entusiasmo pelos nomes mais competentes […] quando chegava a Londres a notícia de alterações ministeriais, vivia sempre uma pergunta na boca dos capitalistas: se o Torres havia subido” (apud FILHO, 1986, p. 148)

 

[8] Discurso cuja parte foi transcrita em destaque no início (FILHO, 1986, p. 108).

[9] Com efeito, é preferível, para a sanidade cultural do País, restringir o acesso e desenvolver poucos indivíduos verdadeiramente capazes a expandi-lo e criar uma geração inteira de semianalfabetos. Aqueles poucos poderão disseminar o conhecimento ao longo das gerações, enquanto que estes muitos não poderão melhorar a educação nem mesmo de sua descendência, se igualmente condicionada ao sistema educacional atual.